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Eleições no Afeganistão e o dilema de Hamid Karzai

Começa a ser claro que a nova estratégia imperial desenhada por Barack Obama para o Afeganistão pretende descartar-se de Karzai, até aqui a representar o papel de presidente do Afeganistão. A farsa eleitoral que hoje se realiza pode ser uma boa oportunidade, embora haja sempre recurso a um golpe de Estado, como o apoiado por John Kennedy no Vietnã em 1963, que levou à destituição e assassinato de Ngo Dinh Diem, presidente-marionete do imperialismo norte-americano do Vietnã do Sul.

Por M. K. Bhadrakumar*, publicado no Diario.Info

As atividades dos Talibãs estão a invadir as manchetes dos jornais, à medida que se estendem às províncias do norte e oeste do Afeganistão. O assassinato do chefe da polícia do distrito de Dasht-e-Archi em Kunduz, província do norte, na quarta-feira, que se seguiu à invasão talibã do distrito e ao assalto da sua sede no centro da cidade, serve para nos abrir os olhos. Um número considerável de "guerrilheiros estrangeiros" deslocou-se para o norte com o objetivo de atingir o Vale de Ferganá, no Uzbequistão.

A alienação dos acampamentos Pachtun no norte, a cisão entre uzbeques e tadjiques na região do Amu Dariá e a fragmentação dos Jambish, de Rashid Dostum, são fatores que ajudam os Talibãs. Ao fim e ao cabo a eleição presidencial no Afeganistão, na quinta-feira (20), adquiriu um grande significado para a geopolítica da região.

Karzai pode ser levado a um segundo turno…

Mas a eleição, cujo resultado foi já considerado inevitável, tornou-se num dilema. O Presidente Hamid Karzai enfrenta uma ameaça que vem nada menos que dos seus antigos mentores em Washington, numa altura em que a sua campanha para a reeleição entra na última semana.

Os EUA estão a travar uma guerra de desgaste de modo a impedir Karzai de assegurar uma vitória no primeiro turno, para que seja necessária um segundo. O último obstáculo imposto a Karzai é o sensacional relatório publicado pela revista alemã Stern de acordo com o qual as forças especiais britânicas confiscaram "toneladas" de ópio do grupo do seu meio-irmão. Seguiram-se furiosos desmentidos, mas o estrago está feito. É mais uma mancha na reputação de Karzai.

Uma simples "mudança de regime" está dependente duma prestação sem brilho de Karzai na primeira volta das eleições. A "degradação" sistemática do percurso político de Karzai manchou a sua reputação. Uma pesquisa de opinião financiada pelos EUA coloca Karzai com apenas 36% dos votos, muito abaixo dos 50% necessários para uma vitória no primeiro turno. O embaixador britânico no Afeganistão, Mark Sedwill, especulou publicamente em Londres, na semana passada, dizendo que poderia haver um segunda turno nas eleições. O representante da União Europeia em Cabul admitiu em privado que a Comissão Eleitoral Independente já começou a preparar o boletim para a segunda volta.

Simultaneamente, o intenso ataque dos média a Karzai continua. Elizabeth Rubin, do The New York Times, citou um agente de informação do Ocidente que disse "A família Karzai tem ópio e sangue nas mãos … Quando a história analisar este período e olhar para esta família, revelará um rol extenso de corrupção que foi tolerado porque o Ocidente tolerou esta família".

Anthony Cordesman, um antigo analista de política externa do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais que visitou recentemente o Afeganistão para assistir o general norte-americano Stanley McChrystal na preparação da análise da situação atual, escreveu no Times que o governo de Karzai é "corrupto, excessivamente centralizado, com falta de capacidade e virtualmente ausente em grandes áreas do Afeganistão". Num artigo no Washington Post na semana passada, o embaixador norte-americano no Afeganistão, Karl Eikenberry, distanciou ostensivamente os EUA de Karzai.

David Kilcullen, antigo conselheiro de contra-insurgência no Iraque do General David Petraeus, chefe do Comando Geral, num discurso na semana passada no Instituto da Paz, o influente grupo de reflexão de Washington, após uma visita ao Afeganistão, disse que Karzai lhe lembrava o Presidente do Vietnã do Sul, Ngo Dinh Diem, que foi destituído e assassinado em Saigon em 1963, num golpe militar com o apoio dos EUA, durante a administração de John Kennedy.

Sublinhando a possibilidade de um golpe pós-eleitoral, Kilcullen, que está talhado para se juntar à equipa de McChrystal, afirmou: "Ele [Karzai] é visto como ineficaz; a sua família é corrupta; ele alienou uma parte muito substancial da população. Parece paranóico, delirante e deslocado da realidade. Isto é o tipo de coisas que se disseram do Presidente Diem em 1963".

Ora isto é de fato explosivo. Kilcullen está ligado ao establishment militar norte-americano. Na verdade, McChrystal, que deveria ter apresentado esta semana ao Presidente dos EUA o seu relatório de situação sobre a estratégia AfPak [N. do T.: Afeganistão e Paquistão; o neologismo foi criado pelos EUA para designar os dois países como um mesmo teatro de operações] foi convocado para uma reunião "secreta" na Bélgica na semana passada, com o Secretário de Estado da Defesa Robert Gates e o Chefe do Estado Maior do Exército, o Almirante Mike Mullen e foi-lhe dito que demorasse mais tempo e fizesse o seu relatório só depois das eleições de 20 de agosto.

É claro que o caleidoscópio afegão gira a uma velocidade estonteante. Desde que regressou a Cabul, McChrystal deu uma entrevista em que exagerou a situação no Afeganistão em termos quase apocalípticos. Um animal político de primeira categoria – como talvez devessem ser todos os bons soldados – pareceu estar a preparar a opinião pública norte-americana para algumas decisões difíceis.

…enquanto os EUA patrocinam os seus adversários

O que é bastante aparente é que os candidatos preferidos dos EUA na arena das eleições afegãs são o antigo funcionário do Banco Mundial e ministro das finanças Ashraf Ghani e o antigo ministro dos estrangeiros Abdullah Abdullah.

Ghani é um aristocrata com uma longa linha de antepassados originários da tribo Ahmadzai, uma das maiores e mais poderosas tribos Pachtun. O avô de Ghani levou o Rei Mohammad Nadir Shah (pai do Rei Zahir Shah) ao poder no princípio do século 20. O seu irmão Hashmat Ghani é o atual grande chefe tribal dos Kuchis e é representante tribal de aproximadamente um quarto de toda a população afegã.

Deste modo, Ghani deve com certeza dividir os votos que iriam para Karzai, como aconteceu na eleição de 2004. Os Pachtun constituem perto de 45% da população.

Do mesmo modo, Abdullah, que é meio tadjique e ajudou a aniquilar o comandante da Aliança do Norte, Ahmad Shah Massoud, está bem posicionado para dividir os votos da Aliança do Norte, que Karzai esperava acumular graças à sua escolha dos candidatos à vice-presidência Mohammed Fahim e Karim Khalili. Abdullah é um candidato um pouco inesperado, já que era essencialmente um homem de relações públicas do círculo pessoal de Massoud e não tinha o apoio das bases entre os Panjshiri. Mas era o "menino bonito" de Massoud, meio tadjique e carismático. A sua capacidade para aguentar Fahim é discutível e, por outro lado, os Panjshiri estão hoje divididos.

Mais uma vez, Rashid Dostum, líder afegão uzbeque, que apoiou Karzai, foi pressionado pelos americanos para não regressar da Turquia a Mazar-i-Sharif para juntar os seus apoiantes. Na sua ausência, os Jumbish estão a derrapar e Abdullah espera tirar disso dividendos. Resumindo, Abdullah está a caçar apoiantes alegremente entre os grupos da Aliança do Norte e os antigos Mujahidin que, caso contrário, teriam apoiado Karzai-Fahim-Khalili.

A estimativa americana é que se Karzai for forçado a um segundo turno, os votos contra ele irão reunir-se, especialmente com Abdullah. As organizações de mídia financiadas pelos EUA já começaram a fazer crescer o apoio a Abdullah.

Um comentário elogiava: "Com muitos afegãos a expressar o seu desapontamento com a ineficácia e a corrupção que minaram o governo de Karzai, Abdullah candidata-se sob uma bandeira de «esperança e mudança» e mantém firme a confiança de que pode mudar as coisas… Abdullah projecta a imagem de um afegão moderno à vontade com o seu passado “jihadi” e com a sua integração no mundo moderno. Pessoas que trabalharam com ele elogiam a sua liderança e diplomacia… Graças a uma máquina política formidável, Abdullah é considerado o homem mais capaz… de levar Karzai a uma segunda volta".

É possível um cenário idêntico ao do Irã

Sem surpresa, Abdullah ofereceu-se para nomear Ghani para o novo governo como um primeiro-ministro de fato, na linha da mudança política que Washington pretende (Karzai fez uma oferta semelhante mas Ghani ridicularizou-a publicamente).

Do mesmo modo, Washington conta com a diplomacia de Abdullah para avançar na reconciliação com os Talibã. Ele dirigiu a delegação afegã na paz regional Afegã-Paquistanesa, a “jirga”, em 2007 e é aceitável para Islamabad. Abdullah, que é meio-Pachtun, foi perspicaz o suficiente para perceber a tempo que o seu futuro político pós-2001 dependeria do apoio norte-americano e da aceitação paquistanesa e, como tal, jogou as suas cartas com destreza, enquanto foi ministro dos estrangeiros de 2002 a 2006.

Karzai percebeu as ambições crescentes de Abdullah e o demitiu – para choque dos americanos – quando estava de visita a Washington em 2006 a convite da então Secretária de Estado Condoleezza Rice. A carreira política de Abdullah parecia ter terminado prematuramente. Mas ele permaneceu na sombra para ser novamente chamado para a ribalta pelos americanos, que o convidaram a regressar aos EUA em 2008 como um ressuscitado estadista afegão, e foi celebrizado pelos grupos de reflexão e "policy makers". Tornou-se claro que os americanos, que então se haviam desencantado com Karzai, estavam à procura de talentos e a coreografar cautelosamente a reentrada de Abdullah na boca de cena do teatro político afegão.

Deste modo, Abdullah pôs fim ao seu relacionamento próximo com Karzai (cujo nome foi proposto em primeira instância na conferência de Bonn, em dezembro de 2001 enquanto substituto do presidente do Afeganistão) e tornou-se um dos críticos vigorosos de Karzai. Para além disso e mais importante, também abandonou o seu legado como peça chave na resistência anti-talibã nos anos 1990 e reinventou o seu papel como devoto entusiasta da reconciliação talibã, em linha com a mentalidade dos EUA e do Paquistão.

Em comparação, os candidatos de Karzai à vice-presidência Fahim e Khalili que estão próximos da Rússia e do Irã, permanecem céticos em relação a supostos Talibã "moderados". Num momento em que os EUA exercem pressão com a expansão da Otan e a sua estratégia de contenção em direção à Rússia (e à China) na região da Ásia Central provoca fricções, Washington não pode tolerar uma expansão da influência russa e iraniana em Cabul. Houve uma tentativa de assassinato bem planejada de Fahim. Fahim provoca fortes sentimentos de antipatia em Islamabad, dada a sua firme postura anti-talibã, a sua preparação militar e de informação e a sua rede de capital regional.

Temos portanto um período de extrema instabilidade à nossa frente. É certo que Karzai se recusa a atirar a toalha ao chão apesar dos contínuos ataques das mídias ocidentais. É aqui que está o problema. O flanco de Abdullah ameaça criar um "cenário idêntico ao do Irã" em Cabul se Karzai sair vitorioso logo no primeiro turno em 20 de agosto. Se a violência for detonada, a segurança afegã, dominada pelos tadjiques, será fortemente pressionada para controlar a situação e as forças estrangeiras podem ter que intervir, o que é altamente controverso.

Por outro lado, se um segundo turno for necessário, será preciso agendar uma data para isso, que não poderá ser antes do fim de Outubro. Entretanto, o acordo entre Abdullah e Ghani, com o encorajamento tácito dos EUA, pode desafiar a legitimidade de um governo de Karzai, mesmo antes do seu mandato chegar ao fim em 20 de agosto. Mas Karzai irá certamente opor-se a qualquer exigência de demissão.

Por trás de tudo isto há a triste realidade de uma política afegã desesperadamente dividida em etnias. A campanha eleitoral agravou a terrível polarização étnica. Qualquer questão política tem hoje repercussões étnicas. Os EUA deveriam ter antecipado isto e tomar a iniciativa de criar um plano de igualdade, mas em vez disso concentraram-se apenas em tirar Karzai do seu lugar. Deste modo, não há hoje um árbitro – nem os EUA, nem as Nações Unidas nem a Otan – para garantir que os contendores aceitam pacificamente os resultados das eleições. Nos bazares os afegãos parecem convictos de que os EUA estão de algum modo a preparar o desfecho das eleições de acordo com as suas prioridades.

Entretanto, o papel dos serviços de informação paquistaneses permanece um sombrio mistério. Para Islamabad o jogo é de alto risco. Ghani desfruta de grande proximidade com o Paquistão, já que uma parte significativa dos Ahmadzais vive na parte sudeste da Linha Durand no Waziristão. Ele e Abdullah foram também educados no Paquistão. Sempre que o Paquistão mostra uma indiferença estudada perante os desenvolvimentos do Afeganistão, como está acontecer atualmente, há razões para preocupação.


* M. K. Bhadrakumar foi diplomata de carreira da União Indiana e é colaborador habitual da revista Ásia Times. Este texto foi publicado
www.atimes.com/atimes/Front_Page.html. Tradução: André Rodrigues P. Silva para ODiario.Info.