The Economist chia em editorial: "De que lado está o Brasil?"
A revista britânica The Economist, Bíblia Sagrada do capitalismo sem freios nem retoques, homenageou o governo Lula com um editorial de venenosa crítica na edição desta semana. O título é De que lado está o Brasil?; e o subtítulo: "Está na hora de Lula defender a democracia em vez de abraçar autocratas". O ataque é uma lição para os brasileiros, que têm todos os motivos para não ficar do lado da Economist. Veja por que.
Por Bernardo Joffily
Publicado 14/08/2009 01:24
The Economist foi fundada 1843. Proclamou então como objetivo "a defesa do livre-comércio, do internacionalismo [burguês] e da mínima interferência do governo, especialmente nos negócios de mercado". Mantém até hoje esses princípios. Apoiou Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher no Reino Unido, assim como a agressão americana nos EUA e as ditaduras militares latino-americanas, da brasileira à chilena.
Isto fala muito da coerência de classe da revista, que se dirige para o topo da elite econômico-social, dos dois lados do Atlântico Norte. E fala mais ainda de sua obtusa negativa em enxergar um mundo em transição, e uma crise capitalista que levou à lona a sua Santíssima Trindade editorial – privatização, desregulamentação e liberalização.
A velha senhora indigna
Porém a velha senhora indigna prefere perder os vínculos com o mundo real a abdicar do pedantismo supostamente onisciente. No editorial contra o Brasil, dita conselhos a Lula como se sua ideologia não estivesse em farrapos desde o crack de outubro passado.
Por vários motivos, opostos à intenção do editorialista, o texto da revista merece ser conhecido do internauta brasileiro. Ele ajuda a entender o novo lugar e o novo papel do Brasil no mundo. E evidencia as virtudes da política externa de Lula, que concentra 100% dos ataques do editorial.
O primeiro ataque é pedagógico inclusive por destacar um tema pouco discutido no Patropi – a política nuclear. Porém nem um só dos elementos da diplomacia brasileira fica incólume: dos votos na ONU às relações com a China e Cuba, ou a próxima visita de Ahmadinejad a Brasília.
As críticas à integração sul e latino-americana merecem destaque num capítulo à parte. The Economist vê nelas "uma marca tácita de antiamericanismo", o que para ela, embora britânica, é a suprema infâmia. Reclama das boas relações do Brasil com a Venezuela de Hugo Chávez, a quem chama de "velhaco". Justifica, com cândida hipocrisia, o golpe em Honduras. Acha que é coisa de "paranóico" considerar as anunciadas bases militares americanas na Colômbia como uma ameaça à Amazônia – emboa a mais próxima delas fique a apenas 50 km da fronteira com o Brasil.
"Nova Guerra Fria" latino-americana?
Como contribuição original ao pensamento estratégico da extrema direita latino-americana, The Economist trabalha com o conceito de uma potencial "nova Guerra Fria" na região. O termo inicialmente aparece entre aspas, mas a seguir é repetido sem elas, e diz tudo sobre como a Bíblia ultracapitalista encara esta parte do mundo.
Não resistiremos a reproduzir abaixo, com fins pedagógicos, a íntegra do editorial. Nele, o internauta atento há de identificar a matriz dos discursos dos Eduardo Azeredo, os Fernando Henrique Cardoso e os Cesar Maia daqui (o Brasil já foi conhecido como a "Terra dos papagaios").
Porém não menos interessante é a longa e laudatória introdução do editorial, antes de começar a ensinar "de que lado" devemos ficar. Além dos compreensíveis elogios à política econômica tucana, e à parte dela que Lula não ousou desmontar, há nessa primeira parte toda uma confissão de que a política externa brasileira está dando certo.
É evidentemente uma confissão a contragosto. O editorialista distila fel antibrasileiro até quando elogia. Exemplo: "Parece que nenhum fórum internacional, seja ele para discutir a reforma financeira ou a mudança climática, está completo sem Lula"…
Esta é a parte que os papagaios do Patropi costumam não repetir. Mas não é menos eloquente, por pelo menos dois motivos. Primeiro, por evidenciar até que ponto uma velha revista de um velho império do capitalismo não se conforma, por trás dos farisaísmos, com a emergência de novos protagonistas internacionais, como o Brasil (sobra também para os outros do Bric). Segundo, porque é este o verdadeiro motivo do editorial; ele só foi escrito porque a diplomacia brasileira faz diferença.
Não deixe de ler, abaixo, a íntegra do editorial. Ele é um convincente demonstrativo de que a política externa é um dos pontos altos se não a culminância do governo Lula. Confira:
"Está na hora de Lula defender a democracia em vez de abraçar autocratas"
"Este é um grande momento para se ser um brasileiro, e especialmente para ser Luiz Inácio Lula da Silva, o inspirador presidente do país. Por muito tempo o gigante cronicamente desapontador da América Latina, o Brasil está agora em todas as listas da meia dúzia de lugares que vão fazer a diferença no século 21. Parece que nenhum fórum internacional, seja ele para discutir a reforma financeira ou a mudança climática, está completo sem Lula, um ex-operário metalúrgico e líder sindical, cuja bonomia e instinto de conciliação entre opostos políticos conquistou amigos em toda parte. "Ele é o cara", entusiasmou-se Barack Obama na cúpula do G20 em Londres; Fidel Castro chama-o "nosso irmão Lula".
A nova proeminância brasileira é merecida. Ela deriva em grande parte do sucesso de Lula, e de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, em estabilizar uma economia antes desarranjada, abrindo caminho para um crescimento econômico mais rápido.
Hoje uma das dez maiores economias, ela foi uma das últimas a entrar em recessão e agora dá a impressão de ser uma das primeiras a sair dela. Quando o [banco] Goldman Sachs equiparou o país à China, Índia e Rússia, como as economias Bric, e disse que dominariam o mundo em 2050, houve muitos narizes torcidos dizendo que o Brasil não mereceria tão musculada companhia. Porém agora é a Rússia, com sua economia deprimida, dependente do petróleo, que parece fora de lugar.
Lula, também, merece grande parte dos louvores com que o cobrem. Ao tomar posse em 2003, mostrou coragem política ao se agarrar a políticas econômicas responsáveis, ignorando os apelos de seu PT, de esquerda, pela moratória da dívida. Seu instinto de economia racional transformou-o de um protecionista num campeão do livre comércio. Sua ambiciosa política social ajudou-o a tirar 13 milhões de brasileiros da pobreza; as renitentes desigualdades de renda estão se reduzindo sustentadamente. Apesar de índices de popularidade quase sobrenaturais, ele lucidamente recusou-se a falar em mudar a Constituição para concorrer a um terceiro mandato.
O êxito em casa deu oxigênio à confiante ambição da política externa de Lula. Seu Brasil deseja ser visto como uma grande potência colocando-se como líder de uma América Latina unida, enquanto também busca novas alianças com outras potências emergentes do "Sul Global".
Graças à habilidade de Lula para ser todas as coisas para todas as pessoas, até agora o Brasil tem conseguido influenciar sem ser sobrecarregado por responsabilidades. Porém, visto mais de perto, ele se arrisca a deixa um legado desanimadoramente ambivalente.
Acima de tudo, o Brasil precisa decidir do lado de quem ele está e quem são seus verdadeiros amigos. Ou corre o risco de que outros façam essa escolha para ele.
Sucessos e desconfortos sulistas
Embora a história também tenha lhe dado um parentesco com a África, de onde milhões foram trazidos como escravos, o Brasil é, à primeira vista o mais "ocidental" dos Bric. Ao contrário da China ou da Rússia, é uma democracia em uma região predominantemente democrática.
Mas os líderes brasileiros muitas vezes têm preferido ver o seu país como uma potência "do sul", um líder do mundo em desenvolvimento. Sob Lula, esse viés se acentuou.
De certa forma isso é saudável. Lula tem direito de exigir que as instituições mundiais sejam redefinidas para refletir uma correlação de forças cambiante. As exportações brasileiras encontraram novos mercados na Ásia, África e Oriente Médio.
Mas o que realmente une esses países? Para desgosto do Brasil, a China ajudou a bloquear o seu pleito por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, enquanto a Índia contribuiu em muito para impedir um tratado mundial de comércio. E o viés sulista tem andado de mãos dadas com mais traços negativos.
Admiravelmente, para um aspirante a grande potência, o Brasil renunciou a ter armas nucleares. Menos admiravelmente, para um país que defende o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, recusou-se a assinar o protocolo adicional de salvaguardas, negando aos inspetores internacionais pleno acesso às suas instalações nucleares civis.
O governo Lula também mostra um intrigante desdém pela democracia e os direitos humanos para além das fronteiras do Brasil. Celso Amorim, seu ministro de Relações Exteriores, argumenta que as condenações de países pobres pelos ricos são tendenciosas e ineficazes. Grupos de direitos humanos denunciam que na ONU o Brasil se alinha com países como a China e Cuba para proteger regimes abusivos.
Lula felicitou Mahmoud Ahmadinejad por sua vitória nas eleições do Irã, profundamente irregulares, comparando os massivos protestos oposicionistas às reclamações de uma torcida de futebol cujo time perdeu. A primeira viagem internacional de Ahmadinejad após sua nova posse será a Brasília. Obama pediu a Lula que "use sua influência" para convencer o hóspede de deter sua suspeita atividade nuclear. Se o Brasil ocupar um assento rotativo no Conselho de Segurança da ONU, em janeiro próximo, poderá ter de deliberar sobre sanões mais duras contra o Irã.
Não à triangulação entre democratas e autocratas
Em muitas destas questões há uma marca tácita de antiamericanismo. Este custa mais caro ao Brasil na América Latina. A influência ianque na região sofre relativo declínio, enquanto a ascendência da China cresce. Se hoje há receios de uma "nova Guerra Fria" na região, que preocupa certas pessoas no Brasil, o homem que ameaça, para começar, não é Obama, mas um dos mais velhacos amigos de Lula, o venezuelano Hugo Chávez.
Sim, Chávez foi eleito, mas ele mostra cada vez menos sinais de se dispor a renunciar ao poder pelas urnas e constantemente atiça tensões na região. Foi o medo de que o presidente do Honduras fizesse de seu país o último dominó chavista que levou ao desencaminhado golpe de junho.
Agora, Chávez ameaça com uma guerra contra a Colômbia por estar incrementando um acordo nos termos do qual concede facilidades em bases militares aos Estados Unidos, que ajudam a combater as guerrilhas das Farc e outros narcotraficantes. Só um paranoico pode interpretar isso como uma ameaça à Venezuela ou à Amazônia. Entretanto, o Brasil optou por manifestar preocupação com as bases, enquanto permaneceu silencioso sobre os arroubos de Chávez e a clara evidência de que a Venezuela vendeu armas às Farc.
Ninguém deve esperar que o Brasil atue como xerife da América. Mas é no seu próprio interesse que ele evite uma nova Guerra Fria na região. A maneira de fazê-lo é não confundir democratas com autocratas, como Lula parece pensar. É envergonhar Chávez fazendo uma defesa pública da democracia – o sistema que permitiu que um pobre torneiro mecânico subisse ao poder e mudasse o Brasil. Por que os outros países mereceriam menos que isso?