Sebastião Nunes: O outro nome de mineiridade é preguiça

Estava Jeca Tatu de cócoras numa trifurcação entre o povoado de Curral del-Rei, o sítio de Contagem das Abóboras e a vila da Montanha Grande que Resplandece. Enrolava devagarinho um cigarro de palha, resmungando: ''Eta, trabalheira! Ainda vai chegar o dia

– Bom dia – cantou alto o cavaleiro que vinha na frente, freando a mula e levantando uma poeirada de esconder o mundo.

– Dia – respondeu Jeca, economizando três letras que não faziam falta e gastavam cuspe. E mais não disse até que foi perguntado:

– Saberá vosmecê o caminho que leva à Montanha Grande que Resplandece? Dizem que lá tem índio dando bobeira e ouro que não acaba mais – completou o cidadão de cima do cavalo, tirando o chapéu de aba larga e enxugando o suor do pescoço, que não era água salgada, mas uma papa marrom de suor e poeira.

– Sei não, mas ouvi dizer que é pra acolá – apontou vagamente nosso amigo.

PROPOSTA INDECOROSA

– Mesmo não sabendo por completo – ripostou o cavaleiro – parece que sabe mais ou menos e poderá levar a gente lá. Levando, e se a gente encontrar bastante ouro e índio, dividimos o achado, cada qual com sua parte por igual.

Jeca assuntou pra dentro da capanga, examinou a meia dúzia de timburés, lembrou que tinha de levar o almoço, e respondeu:

– Posso não, tenho de levar o almoço pra casa, que a veia tá esperando o peixe pra escamar e assar na brasa. Só se for amanhã.

O cavaleiro, um daqueles aventureiros paulistas que depois ficariam na história do Brasil com o nome de bandeirantes, olhou pros companheiros, que esperavam pacientes. Eram uns vinte, metade a cavalo, metade a pé. Mas todos forrados com roupas de couro cru fedorento, armados de trabucos enferrujados e facões enormes. Ninguém disse nada, olhando de banda o capiau.

– Tá certo, vamos esperar. Amanhã cedinho seguimos viagem. Enquanto isso, a gente acampa por aqui mesmo.

Dito isso, desmontou, e com ele os companheiros. Concorde, Jeca se aprumou e partiu na direção da cafua, que ficava perto de uma gameleira e ao lado de um roçado de milho misturado com abóbora jerimum. Duas galinhas ciscavam e cismavam.

ALMOÇO, JANTA E DORMIDA

Jeca e comadre Donana almoçaram e depois ficaram por ali, debulhando espigas de milho e dando piparotes nas abóboras pra colher uma bem madura. Depois foram sestear, que não eram bestas. E depois jantar milho assado com abóbora idem. E depois dormir, pra acordarem bem repousados no dia seguinte.

Os paulistas, por sua vez, se dividiram em dois bandos. Enquanto uns armavam barracas e trempes, outros caçavam preás, perdizes, calangos, juritis – o que servisse de comida. Daí, almoçaram e foram bisbilhotar nos pés de morro e nas corredeiras do córrego, catando ouro. Cavaca que cavaca, mexe que remexe, afinal desistiram no fim do dia. De ouro, nem sombra. Jantaram o resto do almoço e foram dormir, pra acordarem bem repousados no dia seguinte.

ALMOÇO NÚMERO DOIS

Mal saído o sol e seu carão de fogo, pularam das redes os paulistas, fizeram suas necessidades, comeram cuias de farinha com rapadura e foram em busca do Jeca, que os levasse aos índios e ao ouro. Aí ficariam ricos, riquíssimos!

Jeca dormia e roncava, Donana roncava e dormia.

– Ô de casa – gritou o chefe. – Tá na hora da partida!

Jeca botou a cara amarrotada na beirada da porta e resmungou:

– Tá nada. Tenho de pescar o almoço.

– Pescar como, criatura de Deus? – espantou-se o paulista. – Não ficou combinado que a gente partia bem cedo?

– Ficar, lá isso ficou. Mas só amanhã, porque hoje tenho de pescar o almoço e aí fica muito tarde.

E mais não disse, recolhendo-se a seus aposentos. Donana roncava e sonhava.

ALMOÇO NÚMERO TRÊS

Não preciso gastar dedos e teclado porque o dia foi igual ao outro. Almoçados os peixes, Jeca e Donana foram debulhar milho e colher abóbora. Os paulistas voltaram a atormentar preás, perdizes, calangos e juritis. Bestaram por ali, ouro nenhum, o dia acabou, todos se recolheram.
Dia seguinte, mal botou o carão de fora, o sol testemunhou o seguinte diálogo:

– E então, companheiro, vamos buscar ouro e índio?

– Hoje não dá. Tenho de pescar o almoço.

– Pescar o quê, homem? Ficou combinado ontem que…

O sol olhou pra baixo. Uns montados, outros a pé, os paulistas molambentos e sujos esperavam o chefe decidir. Lá dentro, Donana roncava. Então o chefe, que não dava moleza, e fazia tempos sonhava com índios e ouro, riquezas sem fim, montanhas grandes que resplandeciam, vida farta e descuidada, deu um chute na porta, invadiu a cafua, agarrou Jeca pelo pescoço e rosnou:

– Olha aqui, seu capiau. Tem dois dias que vosmecê anda enrolando. E então, vai ou não vai com a gente? Decide logo!

Jeca olhou Donana (que roncava alto) e disse, decidido como ele só:

– Amanhã eu vou. Mas hoje tenho de pescar o almoço.PHA – Teremos muitas opiniões.

Publicado pelo poeta (ou ex-poeta, como se define) Sebastião Nunes, no jornal O TEMPO, de 31/05/2009