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Emir Sader: “Esquerda e direita na América Latina”

Como julgar um governo hoje na América Latina? Como não se julgam as pessoas pelo que elas dizem que são, não se deve julgar um governo pelo que ele diz que é, nem pelo que se diz que ele é, nem tampouco pelo que gostaríamos que ele fosse.



Para julgá-lo, como se diz, objetivamente, é necessário definir quais os principais problemas que um governo deve enfrentar, para, então, julgá-lo em função dessa referência. E analisar sua política nos seus efeitos concretos, assim como o lugar e a função que ocupa objetivamente na luta política – esta, como síntese do econômico, do social e do ideológico.



No período histórico atual, o poder dominante se assenta sobre a hegemonia imperial norte-americana e o modelo neoliberal. Cada governo deve ser julgado pela medida em que se enfrente a elas e aja concretamente na construção de alternativas que as superem.



Por essa razão, os piores governos são os que, além de manterem modelos neoliberais, tratam de perpetuá-los mediante tratados de livre-comércio com os EUA, além de não participarem dos processos de integração regional, que permitem avançar na construção de um mundo multipolar.



Nesta lista estão os governos do México, do Chile, da Costa Rica e do Peru – que, recentemente, decidiram essa adesão – e da Colômbia – que pleiteia o tratado de livre-comércio com os EUA, mas teve sua solicitação rejeitada pela oposição dos democratas no Congresso norte-americano.



Entre eles, o México e o Chile são erigidos pelas instituições financeiras e comerciais internacionais como os modelos que pretendem propor para todos os países do continente. Por outro lado, a Colômbia aparece como o cenário das “guerras infinitas” do império na nossa região, onde se leva a cabo a Operação Colômbia, com uma odiosa submissão às políticas de Washington.



Essa é linha divisória na América Latina e o Caribe, aquela que divide governos que aderiram aos tratados de livre-comércio, se articulam diretamente com os EUA, se distanciam dos outros países do continente e hipotecam o futuro dos seus países, renunciando à soberania para definir temas fundamentais do país.



Entre os que não aderem a essa linha, há os que mantêm políticas econômicas neoliberais, mesmo com maiores ou menos adequações, como são os casos do Brasil, da Argentina, do Uruguai e da Nicarágua. Privilegiam os processos de integração regional, particularmente o Mercosul, e também o gasoduto continental, o Banco do Sul, entre outros.



Isto é possível pelas mudanças nas políticas internacionais desses países em relação às de seus antecessores, assim como por flexibilizações do modelo econômico, o que lhes permite desenvolver políticas sociais redistributivas, com revigoramento do Estado em alguns aspectos, assim como aumento do trabalho formal – mesmo se majoritariamente com empregos de baixa qualificação –, elevação do poder aquisitivo dos salários e expansão do mercado interno de consumo, entre outros aspectos positivos.



Porém, a manutenção do modelo econômico herdado não altera as estruturas de poder existentes – entre elas, o monopólio privado da mídia, o poder hegemônico do capital financeiro, o predomínio dos grandes monopólios exportadores, entre eles o dos latifúndios e das grandes empresas de exportação.



Tudo isso, em detrimento da democratização econômica e social, da mobilização e da consciência popular, da democratização da formação da opinião pública, de políticas econômicas centradas no consumo interno de caráter popular, na criação de empregos, na diminuição da jornada de trabalho, na reforma agrária, no fortalecimento da economia camponesa, na segurança alimentar, na regulação da circulação do capital financeiro, no apoio às pequenas e medias empresas.



Em detrimento do apoio e não da repressão às rádios comunitárias, da não abertura dos arquivos das ditaduras, da não democratização das terras indígenas, da liberação e não do controle e proibição dos transgênicos. (tomo exemplos concretos do Brasil, mas que podem ser estendidos ou substituídos por outros similares nos países citados acima).



Em outro grupo se situam países que romperam ou nunca haviam aderido ao neoliberalismo – como Cuba – ou que estão em processo de ruptura com o neoliberalismo – como a Venezuela, a Bolívia, o Equador –, que, além de participarem integralmente nos processos de integração citados, puderam criar um espaço superior de integração – a Alba –, em que cada país dá o que tem e recebe o que necessita, no melhor exemplo alternativo ao “livre-comércio” da OMC, como exemplo do que o FSM chama de “comércio justo”, um embrião do “outro mundo possível”.



No primeiro grupo de países, não há alternativa à esquerda senão desenvolver as mais amplas formas de resistência e oposição, com todos os setores antineoliberais, com todas as forças sociais, políticas e culturais. Os exemplos boliviano, venezuelano e equatoriano são bons indicadores das formas de reconstruir a unidade popular, em cada país a partir da sua própria história, da sua estrutura social, das tradições de luta e de organização dos seus povos.



A luta central deve ser pela revogação dos tratados de livre-comércio, mediante mobilizações populares que reivindiquem consultas populares e proponham alternativas de integração regional como opção popular e democrática, recuperando a soberania dos Estados e a participação no Mercosul e na Alba.



No segundo grupo de países, a esquerda deve desenvolver uma ação e propaganda críticas em relação às políticas econômicas e a todos os outros aspectos vinculados a elas, apoiando o que esses governos tenham de políticas externas soberanas, de fortalecimento do papel regulador do Estado, de fortalecimento do mercado interno de consumo popular – enfim, de tudo que contenha algum caráter antineoliberal e anti-hegemonia imperial.



O objetivo é reconstruir a unidade da esquerda, buscando evitar tanto a subordinação ao governo, assumindo e justificando tudo o que ele faça, quanto o erro oposto, o de perder a visão global do quadro política – incluindo centralmente a direita nacional, regional e o imperialismo – e exercer oposição frontal a tudo o que o governo faça, até mesmo a posições progressistas – como as de fortalecimento do papel do Estado, de integração regional, de resistência às políticas de Guerra dos EUA – e confundir-se, assim, com as posições da direita.



No terceiro grupo, a esquerda deve apoiar decididamente os processos em curso, com críticas, sempre dentro desses processos. Eles representam o que de mais avançado se tem na luta antineoliberal, não apenas na América Latina, mas em todo o mundo atualmente. De seu futuro depende a fisionomia que terá a América Latina e, em certa medida, toda a luta por “um outro mundo possível” na primeira metade do novo século.



Daí a necessidade das mais amplas formas de mobilização, consciência política e organização, assim como de crítica construtiva, desde dentro desses processos. Nunca somar-se, conscientemente ou não, às posições da direita, sempre buscar fortalecer o processo, atuando desde o seu interior.



Nunca a América Latina teve, simultaneamente, um número tão grande, diverso e expressivo de governos progressistas. Tem que saber zelar pela unidade interna da esquerda, pelo enfrentamento à hegemonia imperial dos EUA e ao neoliberalismo, e trabalhar na perspectiva de construção de uma América Latina pós-neoliberal.



Fonte: Agência Carta Maior