Niemeyer e Cartola, dois gênios brasileiros em documentário

Por Marcelo Oliveira da Silva*
Cartola e Oscar Niemeyer são dois ícones da cultura brasileira que recentemente tiveram suas biografias reverenciadas, cada uma a sua maneira, em bons documentários. A disputa não é parelha e já começa pelo apelido versus

Cartola – Música para os Olhos não explica sequer a origem da alcunha de Agenor de Oliveira, criador da Escola de Samba da Mangueira, nascido em 1908, falecido em 1980. Oscar Niemeyer – A vida é um Sopro informa até que o mais longevo e notável de todos arquitetos vivos (completará um século este ano) foi homenageado pela Escola de Samba Unidos de São Lucas no desfile de carnaval do Rio em 1989.


 


O documentário de Fabiano Maciel levou oito anos e várias viagens internacionais para ficar pronto e provavelmente seja o melhor já feito sobre Niemeyer, que foi entrevistado diferentes vezes neste período. Talvez isto tenha conferido ao filme um certo ar de autobiografia, pois mesmo que dezenas de personalidades tenham sido convidadas a depor (José Saramago, Eduardo Galeano, Eric Hobsbawn…).


 


Niemeyer sempre teve a última palavra. Possivelmente a única crítica possível, aquela para cobrar perfeição, é que alguns argumentos críticos importantes não foram respondidos pelo arquiteto e caberia ao entrevistador insistir. A aura de um gênio (e não brinco com esse adjetivo) centenário intimida qualquer perguntador, é certo.


 


Mesmo quem conhece a fundo Niemeyer (que só perde para a rainha Elisabeth como celebridade há mais tempo no topo, livrando décadas de Fidel Castro e Mick Jagger) vai encontrar novidades.


 


Elogios em falta


 


Antes de comparar, é preciso diferenciar os graus de dificuldade. A tarefa de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, que dividem roteiro e direção dos 85 minutos dedicados a um (materialmente) pobre sambista nascido e criado nas favelas do Rio, e ali falecido há mais de um quarto de século, era infinitamente mais difícil.


 


Não há elogio suficiente para a pesquisa de imagens feita por ambos. As centenas de horas despendidas em diferentes arquivos nos trazem cenas absolutamente comoventes, como no reencontro em que um já envelhecido Cartola canta ao violão um samba para seu pai.


 


Ao filme não falta reverência ao mestre e suas composições, que também são notáveis pela sofisticada simplicidade para quem escuta e suma complexidade para quem executa. Chico Buarque que o diga. Entretanto, falta flagrantemente aos realizadores um mínimo sentido de método.


 


Não sabemos nunca quem está sendo entrevistado, nem quando. Não há uma linha de tempo para que o leigo possa agrupar mentalmente aquilo que o filme vai revelando.


 


Várias pequenas histórias são iniciadas sem que uma acabe para que a outra comece. Raras são contadas até o fim. Que doença atacou o nariz do sambista e por que diabos a operação nele ficou incompleta? As poucas histórias completas exigem memória e capacidade associativa de um bom detetive, pois estão embaralhadas.


 


Carnaval x arquitetura


 


Li e ouvi os realizadores dizerem que essa bagunça foi proposital, que refletia a conversa de boêmios, tal qual Cartola vivia. Ora, essa desculpa é conhecida desde que a sala de aula foi inventada. Justificar-se desta maneira ou aceitar uma justificativa destas é preguiça intelectual.


 


Sendo o carnaval do Rio um dos maiores espetáculos da terra, Cartola foi das figuras mais centrais na concepção atual deste que é talvez o mais internacional entre os patrimônios culturais do Brasil. (Alguém aí apostaria na arquitetura?)


 


Que se elogie a iniciativa dos diretores em resgatar a memória de Cartola, mas que voltem à mesa de corte para remontar a história (e incluir intertítulos nas muitas vezes que falta qualidade ao som) para que esta cine-biografia esteja à altura do mestre. Conteúdo para que seja definitiva não falta.


 


* Marcelo Oliveira da Silva é jornalista, professor universitário e doutorando em cinema pela Freie Universitaet Berlin