Paulo Costa Lima: “O que é mesmo cultura brasileira?”
“Não podemos engolir com tranqüilidade sínteses rotulantes e vinculantes, e aceitar patrulhamentos sobre o grau de brasilidade das coisas que devem vir à luz”, afirma o músico Paulo Costa Lima, em artigo para o Terra Magazine. Confira abaixo a ín
Publicado 15/06/2007 18:25
O que é mesmo cultura brasileira?
Por Paulo Costa Lima *
“Que seria, de nós, sem a ajuda do que não existe?”
Paul Valéry (apud Vargas Llosa)
Nem é aniversário da Semana de 22 e já lá se vem com esse tema cascudo que nos obriga a fazer de conta saber o que é cultura. Pior ainda, o que é brasileiro, o que é brasil – como se houvesse um objeto uno e inteiriço assim chamado (cultura brasileira), e não vivêssemos imersos em perspectivas polimorfas geográficas, étnicas, históricas, climáticas e sociais – maranhices, mineirices, gauchices, etc.
Todavia, expressões como “cultura” e “cultura brasileira” vem ocupando a agenda com intensidade considerável, aparecendo inclusive no discurso de comunidades lingüísticas de gentios (no caso, não artistas), vinculadas a uma verdadeira panacéia de usos e posologias – ora revestidas de expectativas salvacionistas, ou seja, de redenção social pela cultura (algumas vezes uma possibilidade bastante concreta, outras, embuste puro), ora sinalizando o poder crescente de uma “economia da cultura” (exportação, turismo, divisas, mercados culturais), corrigindo a antiga noção de que cultura é simplesmente “superestrutura” (na versão da vulgata marxista), orientando o planejamento educacional, e, pasmem, até mesmo as estratégias gerenciais. Todo cuidado é pouco com a onipresença dessas expressões na atualidade.
Discutir “cultura” e “cultura brasileira” nos dias de hoje é bem mais do que discutir alinhamento ou desalinhamento estético, ou mesmo refazer as missões de Mário de Andrade – embora tais temas não possam e não devam ser excluídos da agenda. Trata-se, antes de mais nada, de uma oportunidade de tomar pé com relação aos assentamentos do mundo contemporâneo, envolvendo questões do tipo:
a. Estamos deixando um passado centrado na grande narrativa da Cultura como formação e cultivo do espírito para um futuro de circulação de mercadorias culturais?
b. Estamos assistindo um conflito considerável entre a hegemonia dos centros de distribuição dos produtos culturais, e a presença pujante de periferias? Quais as alternativas nessa direção?
c. Estamos deixando um passado de estados-nação para um futuro tribalista? Devemos conceber o mundo atual a partir da síntese construída em torno de três grandes pólos – a defesa do nacional, a defesa da globalização, e o mundo da contravenção? (Cf. Charles Melman)
Bem se vê, portanto, que discutir “cultura brasileira” não significa fugir para o reino das caiporas, boi-bumbás, saruês, sarrabalhos e sarrabulhos – embora o trabalho de identificar e refletir sobre todos os “jegues e jabutis” brasileiros (sincrônicos, diacrônicos e anacrônicos) mal tenha começado a avançar.
Se as identidades culturais não são sistemas fechados como queria uma certa orientação estruturalista, mas sim, um colar de significações renováveis pela cristalização de cada nova síntese, então é preciso discutir cultura brasileira a partir da amplitude dos espaços contemporâneos, a partir da multiplicidade de olhares disciplinares, e sobretudo, a partir da multiplicidade de práticas constitutivas da vida nesse tal território Brasil. Será necessário, sem sombra de dúvida, um balanço da história do conceito (ou complexo conceitual), revisitando os contextos de origem, acompanhando os altos e baixos das reverberações a que deram origem.
Vejo aqui que as perspectivas de criação de arte e de teoria apresentam várias linhas de força em comum. Como criadores, precisamos defender como inviolável a liberdade de relacionamento com o in-criado (que já não é mais apenas o “novo” da vanguarda do século 20). Não podemos engolir com tranqüilidade sínteses rotulantes e vinculantes, e aceitar patrulhamentos sobre o grau de brasilidade das coisas que devem vir à luz (digo, ao som).
Mas também percebemos que essa liberdade não nos autoriza a viver no “mundo da lua”. Se os compositores eruditos brasileiros do século 20 tivessem se alinhado totalmente à vanguarda européia, teriam perdido a oportunidade de estabelecer um diálogo (mesmo que incipiente em muitos casos), com a miríade de construções culturais que fermentaram em cada canto de nosso território, fruto de negociações entre tradições européias, indígenas e africanas. Dessa marca distintiva não deveríamos abrir mão, tanto com relação à arte, como em relação à produção de teoria. Além do valor identitário, há aí decisões de ordem política. Em que companhia gostaríamos que nossas vozes fossem escutadas?
Pois bem, me parece que é nessa espécie de entre-lugar – entre teoria e ação cultural, entre o contemporâneo e o ancestral, entre o que achamos que fomos e o vislumbre do que poderíamos vir a ser – que brota a pergunta sobre “o que é mesmo cultura brasileira”, fadada a desembocar em polêmicas mais ou menos fecundas, porém imprescindível no âmbito do processo de escolha das novas palavras a serem ditas, por enquanto.
* Paulo Costa Lima é compositor e professor da Escola de Música da UFBA