Xilogravura chega a 100 anos
2007 é o ano do centenário da xilogravura no cordel, literatura popular que serviu de berço para essa arte.
Publicado 22/04/2007 10:41 | Editado 04/03/2020 16:37
Juazeiro do Norte. Um traço peculiar dentro do universo da xilogravura. Este município é um dos pólos de produção desta arte de gravar na madeira. Uma invenção oriental, milenar, iniciada pelos chineses. No Nordeste assume novos tons, com características especiais. O regionalismo se manifesta, o mítico, o dia-a-dia do sertanejo, o surreal. Um casamento perfeito com a poesia de cordel. Uma linguagem nobre.
Se em 1907, o folheto de Chaga Batista passa a ser o marco inicial do cordel, em Recife (PE), Juazeiro do Norte tem no jornal “O Rebate”, dois anos depois, o uso da xilo para suas ilustrações. Mas foi em meados dos anos 20, ao instalar, na “terra do Padre Cícero”, a tipografia São Francisco, que tudo começou. José Bernardo da Silva, alagoano recém-chegado nas levas de romeiros, pedia conselhos ao sacerdote para instalar a sua gráfica.
O velho poeta adquiriu as máquinas com sacrifício para levar adiante o sonho de produzir em folhetos suas próprias poesias e de outros escritores. No auge da confecção de folhetos, 10 mil eram impressos a cada dia, comercializados para todo o País. O Ceará era destaque nacional na produção, a partir de Juazeiro. Uma leva de poetas informavam à população os fatos do cotidiano, o sofrimento do sertanejo, as belezas do sertão. Os acontecimentos, os personagens históricos, políticos, folclore eram levados para o lirismo popular.
Nas feiras eram vendidos em cordas, estirados numa fila à disposição da escolha dos admiradores de uma nova obra. Daí o nome. Mas o casamento perfeito, no início, conforme o professor e pesquisador Renato Dantas, era pragmático, não como forma de arte. Esse reconhecimento veio só mais tarde. “Era uma necessidade. Em Juazeiro, foi criado o fazer da xilo para ilustrar capa de cordel e jornais”, rememora.
Um acervo rico e histórico se encontra atualmente na Lira Nordestina. Na última sexta-feira, foram relançados 10 clássicos, com apresentação do professor e jornalista Gilmar de Carvalho, um dos grandes estudiosos no assunto. As reedições, com 10 mil exemplares, incluem “Romance do Pavão Mysterioso”, de João Melquíades Ferreira da Silva; “Proezas de João Grilo”, de João Ferreira de Lima; “História de Juvenal e Leopoldina”, de José Bernardo da Silva; “Retirada”, de Expedito Sebastião; “A Chegada de Lampião no Inferno”, de José Pacheco, entre outros.
José Bernardo conseguiu obter o acervo de clássicos do cordel, em 1949, de Leandro de Barros, dono de gráfica pioneira, em Recife, por meio da viúva de João Martins de Athayde. Um trunfo. Mais de 200 obras de cordel, em meio às matrizes de xilo, chegaram a Juazeiro e fazem parte do acervo atual da Lira Nordestina.
A zincogravura trouxe o uso do metal para a os desenhos, os clichês menos elaborados, trazendo elementos da indústria cultural. Começa uma fase decadente, apelativa. As revistas em quadrinhos com fotografias, trazendo as histórias novelescas chamavam a atenção do grande público. Essa técnica era usada em Recife já nos anos de 1920. Para o artista plástico e xilógrafo, Stênio Diniz, o estilo não tem arte. A participação humana no processo diminui. Entra também o off-set. Mais uma vez ameaçada a arte da gravura, mas a resistência cultural e regional continua.
O neto de José Bernardo da Silva, Stênio Diniz, chega à Tipografia São Francisco para ser juntador de papel. Isso em 1957. O passar do tempo foi afinando o artista plástico e xilógrafo, de visão diferenciada. “O que faço é real. É um realismo mágico”, diz o artista. Ele não considera que o surrealismo está presente em seus mais de 500 trabalhos. “Não sou por não me ver assim. Para a obra ser surreal, o artista tem que ser também”, ressalta ele.
O “Milagre dos pães e peixes”, “Piracema” e tantos outros trabalhos arrancam olhares de admiração de estudiosos, pela riqueza de detalhes, traços definidos e uma imaginação criativa. Stênio lembra da concorrência dos folhetos da gráfica do seu avô com a editora Luzeiro, de São Paulo. No Sudeste começaram a editar capas de cordel coloridas.
A forma poetisada da notícia passa por uma revalorização, ao passar pelos olhares cátedros. Nas universidades se via o valor real das capas em xilo produzidas para o cordel. Isso, no fim dos anos 60. Na prática, a zincogravura tinha dominado o terreno. Em 1970, morre o seu avô, José Bernardo da Silva. A gráfica passa a ter o nome do seu pioneiro. Segundo Stênio, nesta época que a sua avó foi convencida por representantes do Instituto Joaquim Nabuco a trocar as velhas matrizes de xilogravura por placas de chumbo.
Só dois anos depois, por decisão própria, investiu na xilo e trouxe à tona o seu uso continuado, fazendo escola. Em 1970, começou a fazer os primeiros talhados na madeira. Neste momento se lançava um olhar mais valorativo à xilogravura. As universidades européias, inclusive francesas, estudavam mais a fundo o assunto. O artista plástico cearense, Sérvulo Esmeraldo, a pedido de universidade francesa, evidencia, por meio de uma exposição com folhetos do Mestre Noza, a xilo do Cariri. As obras falavam da Via Sacra e de Lampião.
O enfoque da xilo como arte deu força e incentivo aos xilógrafos, mas nenhum deles se utiliza desta arte unicamente para sobreviver. Stênio conseguiu ter uma projeção internacional do seu trabalho. Chegou a morar na Alemanha e com freqüência retorna ao País. Deu cursos, mas são inúmeros trabalhos em casa, guardados. É também músico.
O artista lutou para manter a Gráfica José Bernardo da Silva. No auge da Tipografia São Francisco, segundo ele, chegaram a trabalhar mais de 15 funcionários. Com a crise, as tiragens foram reduzidas.
Com sua mãe, Maria de Jesus Silva Diniz, filha de José Lourenço, decidiu levar adiante o empreendimento da família. Mais uma vez o nome da gráfica muda, com a proposta de Patativa do Assaré, para Lira Nordestina. Sempre visitava a gráfica para imprimir seus trabalhos. Era amigo pessoal de Stênio Diniz. O xilógrafo chegou a produzir capas de folhetos do velho poeta caririense.
Após sucessivas tentativas de sua avó e Stênio de soerguer a Lira, finalmente é adquirida pelo Estado, por meio do intermédio do jornalista Vidal Santos. Ele convenceu o governo a comprar e doar para a Academia Brasileira de Cordel, em Fortaleza. Uma nova fase se inicia, com um momento de paralisação dos trabalhos. Sem local determinado, a Lira Nordestina fica praticamente no abandono. Vai para antiga estação de trem, em Juazeiro.
Antes, tomou lugar no mesmo local onde se encontra hoje, no Campus do Pirajá. Agora inaugura nova fase com reedição de clássicos do cordel e o projeto Sesc Cordel, que no fim dos anos 90 foi responsável pela reativação da tipografia, revelando novos talentos.
Cariri é berço para novos xilogravuristas
Juazeiro do Norte. Desde a Tipografia São Francisco até a Lira Nordestina, nomes de grandes poetas a artistas das matrizes em madeira, uma escola de novos artistas. Nomes como Walderêdo Gonçalves, Manoel Caboclo, Expedito Sebastião da Silva, entre os mais antigos.
Segundo o professor Renato Dantas, veio depois uma geração intermediária. Nomes como Stênio Diniz, Abraão Batista, Francorli, José Lourenço, Cícero Lourenço e tantos outros pegaram carona na velha escola. A Lira Nordestina continua a incentivar novos talentos e inspirar projetos.
Um dos exemplos desse trabalho é o xilógrafo José Lourenço Gonzaga. Há 22 anos está na Lira. Chegou por meio de seu avô, Pedro Luiz Gonzaga, que trabalhava na guilhotina. Recebeu incentivo de Expedito Sebastião da Silva. José Lourenço chegou a escrever dois cordéis e está finalizando o terceiro, mas a sua especialidade mesmo é a xilogravura. Será um dos xilógrafos do Brasil a levar o seu trabalho para expor na Universidade de Brasília (UNB), no centenário da xilo. Serão expostos 18 trabalhos.
“Quando Expedito morreu, em 1997, ficamos desorientados, sem um coordenador, sem gerente nem salário. O professor Gilmar de Carvalho deu força à gente, incentivando a produção de xilo”, lembra. Se já eram poucos trabalhando no local, José Lourenço resistiu. Foram grandes dificuldades. As exposições pelo País foram importantes para divulgação do nome da Lira. A gravura da xilo em azulejos foi uma das alternativas criada pelos astistas para sobreviver.
Já o xilógrafo Francisco Correia Lima, conhecido como Francorli, irá para países da Ásia e Europa. Uma exposição de dois meses por países estrangeiros divulgará, inclusive na China, onde tudo começou, o trabalho do artista.
A Lira Nordestina volta a respirar com novos talentos. O projeto Sesc Cordel foi responsável pela reativação das velhas máquinas, em 1998. Em cada remessa, 1000 cordéis. Todos com a marca da xilo. Em 2000, nasce em Juazeiro, advindo do movimento iniciado pelo Sesc Cordel, A Sociedade dos Cordelistas Malditos. São quatro títulos lançados bimensais.
Juazeiro sediará evento do centenário
Como um dos pólos da xilogravura do Brasil, o município passará a ser centro das atenções e estudos na área em setembro deste ano. De 14 a 18 será realizado evento diversificado, incluindo seminários com estudiosos nacionais e internacionais, dos “100 Anos da Xilogravura Ilustrando o Cordel”. O projeto é de autoria do juazeirense, residente em Brasília, Jeová Sobreira. Ele escreveu o livro “Xilógrafos de Juazeiro”.
Proprietário de um acervo de obras-primas do cordel e da xilogravura, trará para Juazeiro trabalhos com o Chaga Batista, de Recife. O folheto apresenta a primeira xilo em cordel que se tem conhecimento, do ano de 1907. É o marco dos 100 anos. Serão as mais antigas xilos do Nordeste em exposição. Também irá reeditar o livro “Xilógrafos de Juazeiro” e lançá-lo durante o evento.
Segundo o secretário de Cultura de Juazeiro, Renato Dantas, Jeová reúne acervo para mais de três exposições. Temáticas envolvendo a arte popular, dramaturgia, música, com shows na Praça Padre Cícero, estão entre as apresentações. Cantorias, desafios, edição de novos exemplares da literatura de cordel estão entre as propostas do evento.
O seminário reunirá estudiosos no assunto. Entre os convidados Gilmar de Carvalho, da Universidade Federal do Ceará (UFC), Candace Slater, da Universidade da Califórnia Berkeley, Eduardo Diatahy B. De Menezes e Régis Lopes, ambos também da UFC.
As mesas-redondas contarão com nomes como dos estudiosos Renato Casimiro, Francisco Salatiel, Renato Datas e Jeová Franklin. O secretário de Cultura, Renato Dantas, diz que a programação não está totalmente fechada. Há nomes a confirmar. A Uece, a Urca, Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado e Secretaria de Cultura de Juazeiro entram com parceiros realizadores.
Com o evento, Juazeiro do Norte prova sua força para perpetuação da cultura da xilogravura. Os talentos surgem na região. Hamurabi Batista, filho de Abraão Batista, Antônio Celestino, Salete Maria da Silva, Cosmo Braz, Orivaldo Batista, Arsênio, Airton, Gilberto, João Andrade, Regilânia Sthefânia e tantos outros nomes fazem parte da nova safra de poetas e artistas da xilo.
Fonte: DN