TV Pública: Lições provisórias de um debate em aberto
Por Venício A. de Lima (Observatório da Imprensa)
É pedagógica a polêmica deflagrada desde que o ministro das Comunicações entregou ao presidente da República, na segunda-feira (12/3), um estudo sobre a viabilidade de uma rede pública de telev
Publicado 30/03/2007 19:01
A largada para a controvérsia foi dada pelo Estado de S. Paulo em manchete de primeira página logo no dia seguinte (13/3). Na matéria, assinada por Gerusa Marques, aparece pela primeira vez o que se tornaria objeto de manifestações variadas dos atores interessados no tema. A jornalista dizia que o “anteprojeto” apresentado pelo ministro era “uma espécie de emissora de TV do Executivo para divulgar as ações do governo federal”.
Foi o suficiente. Sem que o próprio “anteprojeto” jamais viesse a público, abriu-se um debate revelador que certamente confirma muito do que já se sabe e levanta suspeitas sobre o que não se sabe. Quais as lições que podemos tirar dele?
Primeiro, fica mais uma vez claro que não há coordenação para as ações de política de comunicações no governo Lula. É sabido que iniciativas sobre o setor têm sido patrocinadas pela Casa Civil, pelo gabinete pessoal do presidente, pela Secretaria Geral, pelo Ministério da Cultura e pelo Ministério das Comunicações.
Não é de surpreender, portanto, que o ministro das Comunicações tenha solenemente ignorado o esforço que há meses vem sendo feito em conjunto pela Casa Civil, pelo Ministério da Cultura, pela TVE e pela Radiobrás – esta, formalmente ligada à Secretaria Geral – para construção do 1º Fórum Nacional de TVs Públicas. Esse esforço conta com a participação das associações representativas das TVs educativas, legislativas, comunitárias e universitárias, além de representantes da sociedade civil.
O ministro das Comunicações, com a ajuda da grande mídia, estabeleceu de imediato uma confusão semântica e conceitual entre TV pública e TV estatal, objeto central das discussões preparativas do Fórum. Como se sabe, o artigo 223 da Constituição determina a “complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”, mas este artigo – como quase todos os outros – do capítulo da Comunicação Social nunca foi regulamentado.
A quem interessa essa confusão semântica e conceitual?
Quase unanimidade
Segundo, na maioria das intervenções públicas sobre a questão, reaparece de forma nítida o preconceito anti-Estado onipresente entre os atores que têm conduzido o debate sobre as comunicações no país. Nega-se, in limine, ao Estado o direito de propor qualquer iniciativa no setor de comunicações como se estivéssemos num regime ditatorial e não vivêssemos num Estado de Direito.
Ignora-se que em democracias liberais como a nossa houve uma privatização da censura, que é exercida rotineiramente com maior intensidade, direta ou indiretamente, pelo interesse privado. E ignora-se também a norma constitucional que determina, sim, a existência complementar de três sistemas de radiodifusão, dentre eles um estatal e um público.
Não seria legítimo e democrático que o Estado – sob este governo ou qualquer outro – incentive a criação de uma rede pública digital de radiodifusão que alcance 100% do território nacional e ofereça uma comunicação alternativa de qualidade à população, como, aliás, existe e funciona em outras democracias como a nossa? Por que se deseja afastar o Estado do setor de comunicações? Quem de fato se sente ameaçado e por quê?
E terceiro, o ponto mais intrigante. O ministro das Comunicações tem reiteradamente defendido posições e implementado políticas coincidentes com os interesses da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), historicamente ligada às Organizações Globo e poderosa representante dos radiodifusores privados. Esse alinhamento ficou novamente claro agora. Por quê?
A Abert, sem se envolver na polêmica conceitual entre o público e o estatal, apoiou o “anteprojeto” de “uma espécie de emissora de TV do Executivo para divulgar as ações do governo federal”, rejeitado pela (quase) unanimidade da grande mídia como autoritário, desnecessário, chavista e oneroso. Uma rede pública de TV digital não contraria os interesses dos radiodifusores privados? Como entender essa posição?
Explicação coerente
Há duas possibilidades. A primeira aponta para uma ousada jogada política de conquista da opinião pública. Antecipando a avalanche de manifestações contrárias que inequivocamente surgiria na grande mídia, o “apoio” da Abert esconderia, na verdade, uma estratégia “invertida” de pressionar o governo a abandonar a idéia de uma Rede Pública de Televisão.
A outra possibilidade, mais provável, é que, de fato, o Ministério das Comunicações e a Abert desejam a criação de uma rede nacional digitalizada de televisão. Estatal ou pública? Não importa. E por quê? A rede digital, construída com recursos públicos, seria de uso compartilhado com os radiodifusores privados que se desonerariam, portanto, do investimento de sua construção.
Não seria a primeira vez na história das comunicações brasileiras que tal fato aconteceria. Foi exatamente assim na construção da rede nacional de microondas (a antiga Embratel) durante o regime militar [devo a Cristiano Aguiar haver me chamado a atenção para este ponto].
Ser creditada a uma falsa “teoria da conspiração” será a crítica mais fácil às duas possibilidades acima aventadas. Todavia, ainda não se encontrou uma explicação razoável e coerente para a posição assumida publicamente pela principal representante dos radiodifusores privados.
O interesse que prevalece
Quando escrevo, anuncia-se a indicação do jornalista Franklin Martins para assumir as funções de ministro do governo Lula, responsável pelo que é a Secretaria de Imprensa e porta-voz, a Secom (hoje vinculada à Secretaria Geral) e ainda cuidar da implantação da Rede Pública de Televisão. Sobre o assunto, disse ele em entrevista à Folha de S.Paulo (24/3): “O governo não pretende criar uma TV do governo, estatal. Mas estimular, fazer crescer e dar forma a uma rede pública de TV”.
A serem confirmadas a indicação e a abrangência do novo ministério, é de se esperar que exista de fato uma coordenação efetiva para a criação da Rede Pública de Televisão. É indispensável, então, que o governo confirme a realização do I Fórum Nacional de TVs Públicas e que promova um amplo debate sobre o tema nos mais diferentes segmentos da sociedade brasileira.
Como tudo mais na formulação de políticas de comunicações, também na construção de uma Rede de TV Pública há enormes interesses envolvidos e os atores estão “movendo suas pedras”. A questão, mais uma vez, é saber se o interesse público vai prevalecer. Que se tirem as devidas lições do atual debate.