Delfim Netto tropeça no marxismo

Em artigos publicados na Folha de S.Paulo (“Somos todos marxistas”, em 17/01) e no jornal Valor Econômico (“Sejamos lógicos”, em 23/01), o ex-superministro da Fazenda durante o regime militar, deputado federal Antônio Delfim Netto, pr

Tudo leva a crer que o deputado federal não-reeleito para a próxima legislatura tenha sido levado a abordar o assunto em função da retomada pública do debate sobre o socialismo no século 21, a partir das medidas econômicas anunciadas por Hugo Chávez como presidente reeleito da Venezuela e de outras decisões, no mesmo sentido, do governo boliviano sob o comando do presidente Evo Morales.


 


Deve estar presente também, nas preocupações do autor, o pavor de uma retomada ideológica na América Latina dos projetos socialistas. Como legítimo representante do pensamento liberal, Delfim se esforça por divulgar a ilusão de que o marxismo pode ser incorporado “ao pensamento universal”, que é como todos os principais pensadores liberais se referem ao pensamento liberal hegemônico, retirando do marxismo o que ele tem de mais importante – o socialismo científico.


 


Liberais de grande porte sempre reverenciaram Marx. Podemos encontrar referências destacadas à obra de Marx nos textos de Norberto Bobbio, John Dewey e Wright Mills. Agora mesmo foi lançada uma tradução de um livro de Bobbio (1909-2004) pela Unesp, Nem com Marx, nem contra Marx, em que o filósofo italiano tenta estabelecer um diálogo entre comunistas e liberais, ou seja, uma missão impossível.


 


Desvinculação


Delfim, em sua coluna semanal na Folha, se refere à obra de Marx como “uma máquina diabólica : seqüestra o leitor que não encontra saída fácil. Precisa de muito esforço para livrar-se de suas engrenagens lógicas e não o faz sem levar marcas indeléveis(…). É como se o marxismo tivesse a força de atração de Mefisto frente à qual grandes liberais se renderam e buscaram negociação com ela”.


 


Quando se renderam ao pensamento teórico de Marx, os liberais buscaram desvincular, como escreveu Delfim, “os dois gigantes que o habitavam – o teórico e o revolucionário”, buscando como é próprio da luta de idéias neutralizar o pensamento marxista. Admitiram a luta de classes, mas ou passaram a conviver com ela nos seus sistemas teóricos, como uma lei natural, própria da sociedade e da natureza humana, ou colocaram no desenvolvimento da sociedade capitalista a solução desse conflito através de uma distribuição de renda mais “justa”, pela ação do Estado ou da democracia participativa nos marcos do capitalismo.


 


O capitalismo, para os grandes liberais, é inexorável, a última fase da história. Reformá-lo, fazer o liberalismo se rever constantemente evoluindo, seria a única saída para a humanidade.


 


Todos eles também, cada um à sua maneira, pela crítica ao massacre da subjetividade, à falta de democracia, pela impossibilidade de um projeto consciente de sociedade dar certo na história, pelo clamor ao fim das ideologias, criticaram o socialismo e muitos deles buscaram convencer que o socialismo real foi um exemplo histórico da deturpação do pensamento original de Marx, acabaram utilizando o próprio Marx contra ele mesmo. Delfim utilizou este recurso ao responder uma carta do leitor Gerhard, da Folha (22/01/2207 – “Painel do Leitor”).


 


O que Delfim Netto escreve é absolutamente natural para um liberal de seu porte, dado o caráter da luta ideológica atual e as dificuldades históricas enfrentadas pelo projeto revolucionário. No entanto, o marxismo nasceu da crítica aos pilares básicos do liberalismo. Trata-se de uma crítica radical do capitalismo, evidencia suas contradições e as suas crises sistêmicas. Marx demonstra que o capitalismo é um sistema de exploração e que seu desenvolvimento gera contraditoriamente desigualdades econômicas e sociais.


 


A contradição fundamental evidenciada no sistema lógico do pensamento marxista, de que o capitalismo é um sistema no qual a produção é cada vez mais social e a apropriação da riqueza criada é cada vez mais privada, e que esta contradição proporciona entender ao mesmo tempo o desenvolvimento sem precedentes das forças produtivas no capitalismo e seu profundo caráter excludente e suas crises, é o que leva à luta consciente pelo socialismo, exatamente o que os liberais de todas as épocas procuram neutralizar.


 


As diferenças


Os marxistas estudam o desenvolvimento do capitalismo para entender as novas contradições que o sistema engendra. Estudam o capitalismo e seu desenvolvimento para entender as profundas mudanças nas relações de trabalho e na produção e as novas formas de exploração. As experiências socialistas podem ser criticadas e estudadas tanto por liberais quanto por marxistas, assim como os problemas da construção do socialismo.


 


A diferença entre as duas correntes, entretanto, é que enquanto os marxistas criticam e estudam essas experiências porque estão conscientes da necessidade de superar os marcos do capitalismo, os liberais por sua vez as estudam e criticam para provar que o capitalismo é a única sociedade possível.


 


Podemos ser todos admiradores da capacidade teórica de Marx, mas não somos todos marxistas, como propõe Delfim Netto.


 


Já no artigo publicado no jornal Valor Econômico, Delfim deixa mais claro, no campo da economia, os elementos em que a teoria marxista tem algum valor. No primeiro parágrafo do texto, Delfim faz referência a um período histórico, que foi designado por alguns liberais como um período de crise do liberalismo. A inquietação dos liberais na década de 30 tinha como pano de fundo, o sucesso da economia planejada da União Soviética, a crise do capitalismo e a ameaça do nazismo e do fascismo .


 


O grande dilema da época era : como manter o capitalismo de mercado, mas com mais interferência do Estado, tanto na distribuição de renda, através da democratização do acesso aos produtos da ciência, os direitos sociais e no planejamento estratégico visando o incentivo a determinados setores da economia?


 


Inquietação


Os textos e artigos do período fazem referência a uma crise do liberalismo, fundamentalmente porque o liberalismo clássico não era mais capaz de responder ao desenvolvimento do próprio capitalismo e aos problemas advindos deste próprio desenvolvimento. John Dewey, citado no início deste artigo, foi um autor importante na época. Seus textos revelam essa inquietação dos liberais, e suas propostas vão no sentido de ampliar a democracia representativa, fortalecer as organizações sociais que deveriam exigir do Estado os direitos sociais e distribuição de renda aos trabalhadores e, ao mesmo tempo, um Estado capaz de diagnosticar e promover um certo planejamento econômico.


 


Nos textos de Dewey fica clara sua interlocução com o marxismo, ao admitir a luta de classes e a necessidade da ação do Estado em defesa da manutenção do capitalismo. Mas Dewey era um liberal, preocupado com a manutenção dos princípios do liberalismo reformulado para as novas exigências colocadas pelo próprio capitalismo. Para Dewey, ou o liberalismo se reformulava, para atender às novas questões ou ele morreria sob seus princípios mais caros (igualdade, liberdade e conhecimento).


 


Os liberais da década de 30 foram a fonte de inspiração teórica para os economistas do pós-guerra que começaram a elaborar os princípios econômicos do Estado de bem-estar social. É preciso dizer, ainda, que a social-democracia, pela própria concepção, sempre teve o mesmo projeto destes liberais.


 


Manter um capitalismo mais justo, distributivo, com uma economia mais planejada através de uma ação do Estado Nacional que não impedisse a concorrência e o mercado. Doce ilusão, que pode até ter sido colocada em prática no pós-guerra para reconstruir as forças produtivas, colocado mais radicalmente em prática em alguns países, mas que não se sustentou em âmbito geral internacional como modelo, exatamente porque o Estado Nacional tem problemas nos países dependentes, e porque a concorrência de mercado se dá no âmbito do capitalismo imperialista.


 


Não é possível capitalismo planejado exatamente porque existe a propriedade privada e a concorrência como uma lei do próprio capitalismo. O que é possível, sempre em favor do capital, é um certo planejamento no capitalismo.


 


No segundo parágrafo, Delfim afirma que um outro sistema social (veja que ele usa o termo sistema) – socialismo ou capitalismo – possuem a mesma lógica de crescimento: transformação do excedente produzido em investimento. A diferença é que:



a) na economia de mercado o excedente é apropriado pelos empresários através do lucro;


b) numa economia centralizada, o excedente é apropriado pelas empresas estatais administrada ou por burocratas ou pelo partido único.


A economia centralizada talvez pudesse funcionar melhor se convertesse o problema da informação – ou seja converter o cidadão-burocrata em cidadão-consumidor sem comprometer a liberdade.


 


Aqui aparece novamente a referência da idéia de um capitalismo com certo planejamento da economia. É verdade que nas duas sociedades o excedente deve ser transformado em investimento; o problema é que, em primeiro lugar, o excedente não é conseguido da mesma forma. Em segundo lugar, não existe Estado neutro, nem no capitalismo, nem no socialismo; e, em terceiro lugar, como é possível no capitalismo alterar o princípio do lucro, seja do capital financeiro como do capital produtivo, sem mexer com a propriedade privada e com o controle do Estado de classe por setores capitalistas que podem se alterar, mas que de uma forma ou de outra dominam o Estado segundo seus interesses? E por último, a “constatação irrefutável” defendida tanto por liberais como social-democratas — a economia centralizada – o socialismo – é incompatível com a liberdade, tolhe os direitos individuais, retiram os desejos de consumidor e colocam no lugar o cidadão burocrático dominado por uma burocracia estatal.


 


Cinismo


Não é à toa, então, o próximo raciocínio : “A história soviética provou que a economia de mercado funciona, porque bem ou mal, resolve o problema da informação sem exigir o constrangimento físico do trabalhador e sem controlar os desejos do consumidor.” É claro que concordamos que a economia de mercado funciona sem retirar os desejos do consumidor, até porque transforma tudo em mercadoria e todos em consumidores, quem não é consumidor não é cidadão e está fora do sistema, mas daí a dizer que ela não constrange fisicamente os trabalhadores e que portanto é uma economia da liberdade, é muito típico de um liberal como Delfim.


 


Além do cinismo de dizer que quem provou que a economia de mercado é única que funciona foi exatamente a experiência socialista da União Soviética, contraditoriamente – ele afirma – “a crise do socialismo prova que o capitalismo de mercado é a única sociedade possível. O problema está exatamente no seguinte, como pode o capitalismo dar uma razoável igualdade de oportunidades”. Veja que o termo é igualdade de oportunidades, típico do principio mais caro do liberalismo, que é igualdade de oportunidades para a concorrência, lei inexorável da sociedade de mercado.


 


A próxima frase diz exatamente isto: “é a única forma que o homem encontrou até agora de eficiência produtiva com a liberdade individual, mas ela é incapaz de produzir uma razoável igualdade de oportunidades para todos os cidadãos, cabe ao Estado ajudar a construí-la” Aqui está descrito exatamente o fundamento da crise do liberalismo detectada pelos liberais da década de 30. Como pretende Delfim resolver isto? As próximas frases indicam um caminho muito confuso, um Estado mais presente, mas nem tanto.


 


O neoliberalismo e a luta que os povos desenvolvem contra ele possui caminhos táticos, mas estão intrincados com questões estratégicas. É possível hoje, diante do projeto imperialista mundial, a economia globalizada e financeirizada, reinventar os princípios liberais da década de 30? Estabelecer — sem tocar no campo do poder político — um novo projeto econômico social ?


 


Um novo projeto de desenvolvimento nacional nos marcos do capitalismo atual, não é isento de caráter de classe, se por um lado tem caráter de resistência ao neoliberalismo, por outro obriga estabelecer uma luta que esbarra necessariamente no campo de poder em âmbito nacional e internacional. É por este motivo que as forças avançadas colocam a questão como uma encruzilhada histórica, que certamente não poderá ser resolvida por um liberal como Delfim.