Drummond e as eleições – “A morte do leiteiro”

Por Alexandre Pilati*
É hora de falar de poesia agora que estamos a poucos dias de uma eleição que certamente marcará a história da vida brasileira, qualquer que seja o resultado revelado pelas urnas? O leitor cansado da enxurrada de textos sobre o pro

Há um poema de Drummond que inquieta muito por sua potência política, por sua mordaz dicção no trato com os enfrentamentos de classe e por sua amargura na apresentação da condição do intelectual brasileiro. Trata-se de A Morte do Leiteiro, que foi publicado no livro A Rosa do Povo, de 1945. Por ser um longo poema, não o reproduzo na íntegra aqui. Quem desejar conferi-lo, inclusive com leitura do próprio Drummond, pode acessar www.memoriaviva.com.br/drummond/index.htm.


 


O texto é, na verdade, uma pequena narrativa, de enredo muito simples. Ei-lo, entrecortado por expressões do texto. Um jovem leiteiro vem “do último subúrbio” entregar leite nas casas dos “homens de bem”, ainda de madrugada, para garantir-lhes a força na “luta brava da cidade”. Debalde todo o cuidado do leiteiro para não fazer barulho e acordar alguém, faz-se um ruído e alguém acorda assustado. Como no país há a legenda de que “ladrão se mata com tiro”, o proprietário da casa, onde entrara o leiteiro para depositar a mercadoria, atira e mata o indefeso trabalhador. No fim, a conclusão: “está salva a propriedade”.


 


É, todavia, pela identificação dos mecanismos poéticos escolhidos por Drummond que chegaremos à leitura política mais profunda deste enredo, sem correr o risco de cair em uma visão estreita da luta de classes que está evidente no esquema. Por esses mecanismos especiais, a literatura é algo capaz de evidenciar aquilo que a ideologia deseja esconder.


 


O primeiro dos mecanismos utilizados por Drummond é encher seu poema de “legendas”, frases feitas que têm DNA de classe certo. As mais importantes dessas legendas são: “ladrão se mata com tiro” e “está salva a propriedade”. São dois ditos que se destacados do poema de Drummond muito bem serviriam para lembrar a violência de classe às vezes subentendida, às vezes explícita, no processo eleitoral de 2006. Lembremos das agressões a militantes pró-Lula, na última semana; lembremos da “cruzada ética” proposta pelo candidato conservador Geraldo Alckmin. Em nome dessas legendas, irrefletidamente repetidas pelo senso comum, o proprietário da casa mata o trabalhador que entrega o leite. Em nome dessas legendas, que afinal garantem o estado de coisas, a mídia vendida destilou ódio contra as classes trabalhadoras e contra os movimentos sociais.


 


Outro mecanismo poético utilizado por Drummond é da narração que se aproxima aos poucos do seu protagonista, criando uma crescente afinidade entre a vida daquele distante leiteiro e a do intelectual que conta sua história. A primeira parte da narrativa é feita em 3ª pessoa: “então o moço que é leiteiro/ de madrugada com sua lata/ sai correndo e distribuindo/ leite bom para gente ruim”. Num segundo momento, a 3ª pessoa convive com impressões individuais do narrador “Na mão a garrafa branca/ não tem tempo de lhe dizer/ as coisas que lhe atribuo”. Posteriormente, vê-se uma curiosa identificação entre o narrador e o personagem, que parecem executar conjuntamente a mesma ação “avancemos por esse beco/ peguemos o corredor/ depositemos o litro”. A seguir o distante moço leiteiro transforma-se em “Meu leiteiro tão sutil/ de passo maneiro e leve/ antes desliza que marcha”. Nesse percurso, pode-se ver mimetizado, quem sabe, o sempre complexo relacionamento entre os intelectuais e as classes populares. Os afastamentos, identificações e aproximações entre esses importantes atores sociais são parte do dilaceramento que dá a grandiosidade do poema de Drummond. Nessas eleições também, como em poucos momentos de nossa história, os dilemas que caracterizam a relação dos intelectuais com o povo trabalhador ficaram evidentes. Deu-se a ver o limite dessas relações por um lado e, por outro, também os avanços propiciados por suas forças políticas unidas. Foi necessária essa aproximação também devido à forte pressão midiática contra o a candidatura de base popular do presidente Lula.


 


O poema termina com uma estrofe de estranha beleza, que vale reproduzir: “Da garrafa estilhaçada/ no ladrilho já sereno/ escorre uma coisa espessa/ que é leite, sangue…não sei. Por entre objetos confusos/ mal redimidos da noite/ duas cores se procuram,/ suavemente se tocam,/ amorosamente se enlaçam,/ formando um terceiro tom/ a que chamamos aurora.”. Morto o leiteiro no chão, o poeta fica apenas com o resíduo poético da vida daquele trabalhador: a beleza da metáfora da aurora formada por leite e sangue. É o fim da vida reificada do leiteiro, mas não o fim da reificação, que continua dentro do reino do poema, dentro do reino da palavra. Palavra que se revolvera durante o poema inteiro para escapar às amarras da “legenda” fácil e grosseira. E terminamos o texto com o mal estar de termos participado de uma forma suave de violência. Ou seja, somos cúmplices, sendo espectadores, sendo leitores do poema. O segundo turno das eleições nos exigiu o desacomodar dessa posição neutra de leitores ou espectadores. O contemplador da beleza do poema, o que pregou o voto nulo e a falta de alternativa, assim como os que defenderam um lado ou outro da contenda eleitoral são igualmente comprometidos com a política. E isso pode nos provar que não há alternativa de avanço a não ser no posicionamento.


 


Assim, A Morte do Leiteiro acena para os dilemas próprios de nosso país, que se avolumam ou ganham maior palpabilidade quando ocorre uma disputa política como a que presenciamos, polarizada entre a direita e a esquerda. Ficou claro que o projeto conservador e neoliberal capitaneado pelas elites, pela mídia e pelo seu representante político Geraldo Alckmin deseja afastar do protagonismo da história brasileira as classes populares, por exemplo, criminalizando os movimentos sociais, criminalizando uma organização legítima como o Partido dos Trabalhadores em nome de “legendas” eivadas de ódio de classe. Ficou claro que o ideário da privataria é capaz de tornar ainda mais perversa a reificação do trabalhador num país como o Brasil. Ficou claro que só haverá avanço progressista rumo a uma nova sociedade com a intelectualidade integrada aos movimentos sociais e não encastelada em seus escritórios e bibliotecas.


 


Há ainda o que se achar politicamente em Drummond para a compreensão do país. No próximo artigo, já com o resultado das eleições definido, leremos outro grande poema do mineiro de Itabira: Confidência do Itabirano, publicado em Sentimento do Mundo, de 1940.


 


* Alexandre Pilati é membro do PCdoB-DF, professor, escritor e doutorando em literatura brasileira