Mao: história falsificada de um suposto super-Hitler

Por Bernardo Joffily
Chega às livrarias nesta segunda-feira o livro Mao: A História Desconhecida, de Jung Chang e Jon Halliday (Companhia das Letras). O objetivo declarado da biografia é demonstrar que o líder da Revolução Chinesa foi um ti

À primeira vista, A História Desconhecida tem a seu favor a assinatura de Jung Chang. Em Os Cisnes Selvagens, uma autobiografia familiar, ela traça um retrato convincente da longa trajetória político-social chinesa — a começar pelo impressionante primeiro capítulo, sobre o antigo hábito aristocrático de deformar os pés das mulheres. E se a condenação da Revolução Cultural (1966-1976) é apaixonada, envenenada até, as agruras sofridas pela família de Jung Chang o explicam.


 


O pior bandido do séculko 20?



Pois quem gostou dos Cisnes se desapontará ao ler a grosseira caricatura sobre o fundador da Nova China. O objetivo, declarado desde o prefácio, é demonstrar que ''Mao Tsetung, que durante décadas manteve absoluto poder sobre as vidas de um quarto da população mundial, foi o responsável por bem mais de 70 milhões de mortes em tempos de paz, mais do que qualquer líder do século 20''.



O caráter minucioso e documentado da alentada biografia apenas exacerba o resultado caricaturesco. Para perseguir o desígnio pré-fixado, a obra fecha os olhos para a trajetória históricas da China no século 20. A submissão neocolonial, a revolução de 1911, a guerra civil, a resistência à ocupação japonesa, a revolução democrático-popular, o rompimento com a União Soviética, a Revolução Cultural, as reformas de Den Hsiao Ping e o verdadeiro ''Grande Salto Adiante'' do último quarto de século. Tudo é visto pelo buraco da fechadura das intrigas do perverso Mao Tsetung, que seria uma fraude desde os primeiros anos de vida e até, pasme, um viceral embora dissimulado inimigo dos camponeses.


 


O que pensa o chinês comum



Esta breve resenha não tem a ambição de ajustar as contas com as mais de 800 páginas da História Desconhecida. Chama atenção, porém, o completo e litigioso divórcio entre a opinião dos autores e a dos chineses de hoje sobre quem foi Mao Tsetung, morto 30 anos atrás, aos 82 anos de idade.



Enquanto o livro retrata uma espécie de arquivilão estereotipado, o chinês comum da China real, mesmo da geração que não conheceu Mao, enxerga nele o seu maior herói. O fato é constatado por uma infinidade de testemunhos, mesmo aqueles sem qualquer simpatia nem pelo dirigente do Partido Comunista da China nem pela sociedade que este ajudou a construir.


 


Alguém está errado



Estes mesmos testemunhos indicam que a imagem popular de Mao é inclusive mais benévola que aquela oficialmente estabelecida pelas autoridades do país, expressa no veredito de ''70% de acertos e 30% de erros''. Do ponto de vista do chinês comum, do camponês em particular, Mao Tsetung avulta como o grande herói — bem maior inclusive do que Deng, seu companheiro na Longa Marcha e artífice do progresso pós 1978, incomparavelmente mais bem-sucedido, em indicadores econômicos e em bem-estar social, do que a etapa em que Mao liderou o país.



Esse prestígio é decididiamente incompatível com a versão do cruel carrasco de 70 milhões de pessoas (e ''em tempos de paz''!). Alguém está errado: ou a esmagadora maioria dos 1,3 bilhão de chineses… ou Jung Chang e Jon Halliday.