Para Marilena Chauí, país convive com violência estrutural

Por Bia Barbosa, na Agência Carta Maior*


Ao falar no Congresso Interamericano de Educação em Direitos Humanos, em Brasília, filósofa da USP desfez mito do brasileiro “pacífico e ordeiro” e disse que violência está presente na invasão do público

“A educação em direitos humanos não se resume às informações que devem ser transmitidas às crianças para que elas recusem a imagem midiática segundo a qual a defesa dos direitos humanos significa a defesa dos bandidos. É uma tarefa de mudança cultural como um todo”.

A definição acima é da filósofa Marilena Chauí, e foi dada na noite desta quarta-feira (30) durante a conferência de abertura do Congresso Interamericano de Educação em Direitos Humanos. Até o próximo sábado, o encontro reúne defensores de direitos humanos e especialistas do setor vindos de diferentes países para discutir a construção de políticas públicas para a área. Durante o Congresso, também será apresentada uma nova versão do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, construída a partir de encontros regionais pelo país e que agora ficará aberta para consulta pública por mais 60 dias.

Um dos grandes desafios do congresso é garantir que, do intercâmbio entre gestores, educadores, pesquisadores e atores sociais, surjam propostas concretas que possibilitem essa mudança cultural defendida por Marilena Chauí. Na sua opinião, se a educação é um direito do cidadão, não pode ser encarada somente como transmissão de conhecimento e prática para a habilitação de jovens para a entrada rápida no mercado de trabalho.

“Se educação é direito, é preciso tomá-la no sentido profundo da sua origem, como formação para a cidadania e da cidadania, como o direito de todos de terem não só acesso ao conhecimento mas também à criação do conhecimento. Isso é decisivo para que outros direitos sejam criados e para que a sociedade se torne democrática. A educação formadora se realiza como trabalho do pensamento, para pensar e dizer o que ainda não foi pensado nem dito. Essa formação é civilizatória contra a violência social, econômica, política e cultural, porque age como criadora de novos direitos quando compreende que o pensamento é um trabalho e que o trabalho é a negação da realidade dada”, disse Marilena.

Em sua conferência, a filósofa falou da importância de se levar em conta as contradições postas pela sociedade quando os direitos são considerados universais e usá-las como uma brecha para a afirmação e conquista de novos direitos. Na opinião de Marilena Chauí, as declarações de direitos humanos afirmam mais do que a ordem estabelecida permite e menos do que esses próprios direitos exigem. Essa contradição produziria efeitos sociais e políticos decisivos para a construção de sociedades verdadeiramente democráticas.

“Na medida em que aqueles que são de fato excluídos de direitos são considerados universalmente como portadores de direitos, temos que observar que cada direito afirmado abre um capo de luta para a firmação e conquista de novos direitos, seja como complemento, como efeito ou como recurso de legitimação. Uma declaração de direitos civis abre campo para conquista de direitos sociais e, como conseqüência, a luta por uma igualdade efetiva. Assim, a luta pela distribuição de renda pode chegar à luta contra a propriedade dos meios de produção”, afirma. “De tal modo que se possa ver em operação a contradição da afirmação de alguns direitos, que isso possa quebrar o freio imposto ao exercício dos direitos declarados”, completa.

Caminho para uma sociedade democrática



Se as democracias fizeram um caminho histórico, isso se deve às lutas populares pelos direitos que, uma vez declarados, precisam ser respeitados. Na opinião de Marilena Chauí, a luta popular pelos direitos e por novos direitos tem sido a história da democracia – algo que estaria longe de ser concretizado no Brasil.

“A sociedade brasileira é violenta, autoritária, vertical, hierárquica e oligárquica, polarizada entre a carência absoluta e o privilegio absoluto. No Brasil há bloqueios e resistências à instituição dos direitos econômicos, sociais e culturais. Os meios de comunicação de massa e os setores oligárquicos nos fazem crer que a sociedade brasileira é ordeira acolhedora, pacífica, e que a violência é um momento acidental, um surto, uma epidemia, um acidente, algo temporário que, se bem tratado, desaparece. E que pode ser combatido por meio da repressão policial. Mas, na verdade, a violência é o modo de ser da sociedade brasileira”, acredita.

Ela enumera exemplos do que seria essa violência estrutural:

– a esfera pública nunca chega a se constituir verdadeiramente como pública, porque é definida pelas exigências do espaço privado. No Brasil, há uma indistinção entre o público e o privado. Não só se pratica corrupção dos recursos públicos, mas a coisa púbica é regida por valores privados e também não há percepção dos direitos à privacidade e intimidade;

– a sociedade bloqueia a opinião de classes diferenciadas, com os meios de comunicação monopolizando a informação. O consenso é confundido com unanimidade e a discordância, com ignorância;

– as classes populares carregam o estigma da suspeita, da culpa e da incriminação permanente. A sociedade brasileira é uma sociedade em que a classe dominante exorciza o horror às contradições, promovendo a ideologia da união nacional a qualquer preço. Se recusa a trabalhar os conflitos, porque eles negam a idéia mítica da boa sociedade pacifica e ordeira;

– as leis são armas para preservar privilégios, jamais tendo definido direitos possíveis para todos. Os direitos, na prática, são concessões e outorgas que dependem da vontade do governante. Em vez de figurarem um pólo público de poder e regulação dos conflitos, as leis aparecem como inúteis e inócuas, feitas para serem transgredidas e não transformadas. Uma situação violenta é transformada num traço positivo quando a transgressão é elogiada como um “jeitinho brasileiro”;

– os indivíduos são divididos entre mandantes e obedientes, e todas as relações tomam a forma de tutela, de dependência e de favor. As pessoas não são vistas como sujeitos autônomos e iguais, como cidadãos portadores de direitos. E o paternalismo branco, refletido na forma do clientelismo e do favoritismo, é considerado “natural”, às vezes até exaltados como características positivas do caráter nacional.

“Numa sociedade democrática, eu procuro o meu representante e digo as minhas reivindicações, de grupos e classe sociais. No Brasil, você vai, pede licença para entrar no gabinete do político, senta numa cadeira, espera quando der na veneta dele para ser atendido e pede um favor. Ou seja, o representante se torna superior a você, mandante do qual você recebe favores e ao qual você obedece. Isso é uma calamidade!”, afirma Marilena Chauí. “A noção republicana de representação é o contrario: a fonte de poder somos nós e o representante recebeu de nós um mandato. Por isso não podemos ter com ele uma relação de clientela e subordinação”, avalia.

Numa sociedade polarizada entre a carência absoluta e o privilégio absoluto, o caminho para a democracia se daria via a instituição de direitos. Para Marilena Chauí, fundada na noção de direitos, a democracia estaria apta a diferenciar privilégios e carências. “Uma das práticas mais importantes da política para a democracia é ter ações capazes de unificar as carências, fazer a passagem das carências dispersas para interesses comuns e desses interesses chegar a direitos. Essa é a luta pela igualdade”, diz Marilena. E é e será a luta constante daqueles que hoje se reúnem em Brasília.