Veja a entrevista de Belluzzo ao blog do Zé Dirceu

O ex-deputado e ex-ministro José Dirceu estreou hoje —apesar de já estar postando comentários desde o dia 2 de agosto— um blog no portal IG para discutir assuntos políticos, principalmente de temas ligados ao desenvolvimento econômico brasileiro. A cad

A primeira entrevista publicada no blog é com o professor e economista Luiz Gonzaga Belluzzo, presidente institucional do Centro Celso Furtado. Nela, Belluzzo analisa o que o país precisa para acelerar o crescimento e articular um projeto de desenvolvimento, que passa pela integração regional.


 


Confira abaixo a íntegra da entrevista:



 















O gasto público é o indutor do crescimento


 

O economista e professor Luiz Gonzaga Belluzzo, presidente institucional do Centro Celso Furtado, analisa, nesta entrevista, o que o país precisa para acelerar o crescimento e articular um projeto de desenvolvimento, que passa pela integração regional.

 


[ José Dirceu ] O governo Lula consolidou a estabilidade da moeda, ampliou autonomia externa do país e praticamente zerou a dívida externa do setor público. O que seria preciso para acelerar o crescimento econômico em um segundo governo Lula?


[ Belluzzo ] Nós nunca assistimos a um ajustamento externo tão rápido e, ao mesmo tempo, tão indolor. Você se lembra muito bem do período que nós vivemos em 2002, que era de extrema inquietação ao que estava ocorrendo, com o risco e com a inflação. Aquilo foi um episódio de especulação política. O risco Brasil foi a 2.400 pontos base, descolou dos outros emergentes. A despeito das minhas discordâncias profundas com o Palocci, a transição foi feita com muita habilidade. Já em 2003, a economia brasileira ingressou em um período em que a economia mundial começava uma forte recuperação, puxada pelos Estados Unidos e pela China. Então, tivemos a associação virtuosa de dois fenômenos que, diga-se, em geral andam juntos: uma maior liquidez internacional, que reapareceu com muito mais força; e um crescimento vigoroso do comércio mundial. As nossas exportações começaram a se recuperar de uma maneira impressionante. Tanto que nós exportávamos em torno de US$ 50 bilhões em 2000 e, em 2005, dobramos as nossas exportações. Em boa medida, isto se deve à situação internacional muito favorável e às condições estruturais da economia brasileira, muito diversificada. O Brasil, a despeito de todos os erros de política econômica, sobretudo os cometidos nos anos 90, conseguiu preservar o aparato produtivo e, sobretudo, valeu-se do dinamismo do agronegócio que responde muito rapidamente. Isso nos colocou na rota da mudança da composição da demanda internacional, porque a presença da China e dos asiáticos em geral, que têm uma dotação de recursos naturais diferente da nossa, mudou a configuração do comércio internacional. Nós todos fazemos críticas à política cambial, porque ela afeta sobretudo o setor industrial, e também afeta a rentabilidade do produtor de commodities.


 


[ José Dirceu ] Nós estamos ganhando nas duas pontas…Na importação e na exportação.


[ Belluzzo ] Isso explica porque, apesar da taxa de crescimento do PIB não ter subido tanto, aumentaram as importações de bens de capital. Estamos enfrentando, nesse momento, uma situação do tipo “há bens que vêm para o mal”, ou seja, o câmbio valorizado é compensado pelo grande volume de exportação de produtos cujos preços são formados num mercado superaquecido. Mas o quadro muda se o país começar a crescer. Por isso, a questão central dos próximos anos, que o governo que for eleito vai ter que enfrentar – o governo Lula especialmente -, é o avanço da diferenciação industrial e do crescimento da economia urbana. Um país com o tamanho do Brasil, com uma economia urbana-industrial formada há anos, não pode se apoiar exclusivamente na exportação de commodities, cujos efeitos sobre a economia como um todo, sobre o emprego, sobretudo, são limitados. Não é por acaso que os países ensaiaram projetos de industrialização no sentido de tornar mais densas as relações intra-setoriais e intra-industriais, de maneira a ter, ao mesmo tempo, ganhos na exportação e uma economia interna que seria capaz de absorver e multiplicar esses ganhos.


 


[ José Dirceu ] Se o país começar a crescer, qual é o impacto na geração do superávit?


[ Belluzzo ] O fato de a economia brasileira crescer bem abaixo da economia mundial, é um dos fatores que favorece a geração desse superávit. Ainda não passamos por esse teste. Mas se fosse feito, uma elevação da taxa de investimento para 25, 30% – a que o Brasil teve no período do milagre -, vai provocar uma pressão muito maior sobre as importações, porque a elasticidade das importações de bens de capital é mais elevada, sobretudo quando há modernização produtiva. Neste momento, a taxa de investimento é muito baixa. Essa é uma questão da relação interna-externa que o Brasil tem que tratar nesse próximo período. Nós temos as melhores condições possíveis para tratar disso, porque não estamos fazendo essa mudança em um período de crise, mas de bonança externa.


“A política monetária
está lutando a guerra anterior”


Outro ponto relacionado a esse tem a ver com a política monetária. Aliás, essas questões estão inter-relacionadas, porque a política monetária está lutando a guerra anterior, do período em que o mundo tendia para inflação alta. A tendência do mundo hoje não é essa, você precisa fazer um esforço enorme para ter inflação alta. Veja o que todo mundo preconizava para a Argentina: “Agora que eles fizeram essa defesa do câmbio real e acelerou a taxa de crescimento da economia, vai ter problemas etc.”. A inflação foi a 10% e o ano que vem, provavelmente, ela vai ser mais baixa. Eu não estou defendendo que você tenha 10, 5, 6 % de inflação. Eu estou dizendo que a questão da inflação, para nós, é uma luta permanente. É como essa questão de Israel com os países árabes: não vai haver vitória definitiva pela via militar, todo mundo sabe disso.


 


[ José Dirceu ] E nem pela via monetária…


[ Belluzzo ] E nem pela via monetária… Você vai ter que usar vários instrumentos, pois o uso de um só instrumento, esse excesso de ênfase na política monetária é um erro de política econômica fatal. Quando se olha, por exemplo, o crescimento da China e se vê taxas de inflação muito baixas, é porque o governo chinês usa de vários instrumentos – inclusive, o manejo dos preços públicos. Eu considero que política monetária se constituiu na principal anomalia da gestão econômica do período Lula, influenciado grandemente pelo passado. Esse foi um fenômeno já foi observado na Alemanha nos anos 30. A comparação é um tanto exagerada, mas a natureza do fenômeno é a mesma. O fato de a Alemanha ter experimentado uma hiperinflação, imobilizou o governo quando sobreveio a Grande Depressão. A memória da inflação destrutiva levou ao pânico da deflação desagregadora. O pânico levou à deflação, ao desemprego em massa e, finalmente, ao nazismo. Isso tem um peso que não só atinge o público em geral, mas atinge também os gestores da política econômica, leva a uma cautela excessiva, que não é razoável.


É natural que ocorram flutuações nas taxas de inflação, mas que, obviamente, são administráveis de várias maneiras. Com US$ 40 bilhões de superávit, pode-se usar as importações como mecanismo para abafar certas tensões de preços, sem prejuízo para economia. Nas condições atuais, é possível permitir buscar uma taxa de câmbio real mais favorável à substituição de importações e ao investimento em novas atividades industriais, sem que se prejudique muito a inflação. Porque há uma relação entre desvalorização – não entre o nível da taxa de câmbio e a inflação -, mas entre o movimento da desvalorização e os preços. O movimento do câmbio passa para os preços. Hoje, as condições são completamente outras. É por isso que nós fazemos a crítica à política econômica. Não é porque ela tenha sido cautelosa na transição, é porque ela foi muito conservadora, quando podia ter aberto a possibilidade de crescimento mais rápido da economia.


 


[ José Dirceu ] Você disse que uma das questões centrais do crescimento do país está no adensamento industrial. Como imagina que ele deva ser construído?


[ Belluzzo ] Antes, queria falar da questão dívida pública. Uma das razões pelas quais a relação dívida/PIB não caiu é uma questão aritmética simples, ou seja, a taxa de juros real é 10%, 11% e a taxa de crescimento é de 3%. Obviamente, ela estabilizou em torno de 50% do PIB, mesmo com os superávits primários elevados. Há uma questão aí que não é de fácil resolução. O Brasil teve alguns movimentos importantes, como reduzir a parcela dolarizada da dívida, porque isso permite uma gestão cambial mais adequada, sem que você contamine a dívida pública. No entanto, a política cambial, política fiscal e política monetária têm inter-relações muito profundas. E não é fácil administrar isso. Mas, de qualquer maneira, nós ouvimos tantas explicações sobre a manutenção desse diferencial absurdo de juros – não estou falando das taxas dos países desenvolvidos, estou falando das taxas dos países emergentes. Aí, há uma questão fiscal: a carga tributária, nos últimos 15 anos, aumentou brutalmente, a dívida pública cresceu violentamente de 94 para cá e, no entanto, o investimento público minguou. Isso é muito grave em uma economia moderna. Por quê? No Brasil havia uma conexão muito próxima – como em qualquer outro país – entre o investimento público, quando tinha o setor público estatal, e o investimento privado. Muito bem, você privatizou. Eu não vou propor reverter essa situação, mas o gasto público é o componente fundamental de uma economia contemporânea. Essa história de mais Estado, menos Estado é mal contada, porque em todo lugar, apesar das reformas liberalizantes, o peso do Estado não diminuiu. É só você pegar o gasto militar nos Estados Unidos, que é de US$ 500 bilhões. Ele está entranhado na economia americana.


 


“O gasto público
é o núcleo da inovação”


 


[ José Dirceu ] E tem profunda relação com o desenvolvimento tecnológico.


[ Belluzzo ] Ele é o núcleo da inovação. Os setores mais avançados dependem disso. Vamos pegar outro exemplo, a China. A maior parte da taxa de investimento chinesa decorre do gasto público. Não é do investimento das multinacionais. Isso é importante para as exportações, mas não para o volume do investimento agregado. Hoje em dia, uma das razões pelas quais a economia brasileira cresce pouco é que nós temos um baixo nível de investimento público. O problema do neoliberalismo à brasileira é que eles não compreenderam direito – Roberto Schwartz sempre diz que o Fernando Henrique não entendeu o que aconteceu – qual era a natureza da globalização. Porque há outros países, que não é o caso do Brasil, que se integraram virtuosamente ao processo. Um exemplo é o Chile, que foi muito menos neo-liberal depois do desastre provocado pelos meninos de Chicago em 1982. Veja bem, industrialização e investimento público estão relacionados. Quando você tem baixo investimento público, você tem baixo dinamismo interno, baixo estímulo para ampliação do investimento privado.


 


[ José Dirceu ] Esse é o centro da questão do Brasil, hoje.


[ Belluzzo ] É isso que a gente precisa acertar. Vamos discutir como faz isso. E eu acho que não é fácil, porque você tem alguns empecilhos aí. Primeiro, a própria política monetária tinha que ser mais ligeira em baixar essas taxas de juros. Eu acho que as condições internacionais e uma boa gestão da dívida pública permitem que você baixe juros mais depressa. Você não vai baixar a taxa nominal de 14,75% para 9%, de uma vez, mas tem condições de acelerar o ritmo de redução.


 


[ José Dirceu ] Como é que faz isso? Porque hoje há duas teses: uma, de que para baixar os juros, é necessário cortar os gastos públicos e a outra que prega o inverso…


[ Belluzzo ] Eu não tenho condições de te responder isso com precisão, porque precisaria fazer uma avaliação mais adequada do desempenho dos vários itens do orçamento. Mas eu acho que tem uma falácia aritmética nessa discussão, porque se a economia cresce pouco, é evidente que certas despesas vão crescer mais do que o crescimento do PIB, como, por exemplo, as despesas com a previdência.


 


“O debate entre Estado e mercado
é muito ideologizado”


 


Nós temos um debate entre Estado e mercado que é estéril e muito ideologizado, porque, como eu disse, o recuo do Estado na formação do gasto nos últimos anos foi muito pequeno em todas as partes no mundo. O que se fez, de uma certa forma, foi colocar o Estado mais ao lado da grande empresa e do sistema financeiro. Isto é claro no mundo inteiro. Se você pegar, por exemplo, a relação do rendimento médio de um executivo nos Estados Unidos, nos anos 70, com o rendimento de um trabalhador, era da ordem de 50 para 1. Hoje, é de 280 para 1. Caiu a parcela do trabalho em quase todos os países. Isso é um problema geral, aconteceu no Brasil e em tudo quanto é lugar. Mas nós temos uma questão aí, como você usa os instrumentos e o mercado para acelerar o crescimento. Eu sempre uso o paradigma dos chineses, eles controlam nos pontos que são cruciais, os centros nervosos que podem gerar instabilidade e dificuldade de gestão…


 


[ José Dirceu ] E contaminam tudo…


[ Belluzzo ] Então, eles sempre tiveram controle de capitais, que eles afrouxam e aumentam à medida que querem. Eles têm controle sobre o sistema monetário de crédito, porque os bancos são públicos. Eles deixam que o mercado funcione na instância em que ele pode funcionar, que é a do investimento privado. Eles abriram para o investimento estrangeiro, associaram-se às empresas deles, e têm uma política de estímulo para que suas empresas se transformem em protagonistas internacionais. Eles tiraram as melhores lições possíveis do marxismo, porque sabem que o projeto do socialismo vai nascer das transformações do capitalismo. Eles respeitam o processo histórico. Eles sabem que trabalham em um mundo que tem assimetria de poder, não só político mas de poder econômico. O pessoal diz “Os chineses acumulam US$ 900 bilhões de reserva e vão chegar a US$ 1 trilhão”. Por quê? Eles sabem que a gestão da moeda e do crédito depende da acumulação de reservas. Essa é a regra do jogo hoje. É o que os argentinos estão fazendo, o que nós estamos fazendo agora. E precisaríamos acumular mais. É irracional do ponto de vista dos desajustamentos da economia global? É, mas isso tem a ver com o fato de se ter apenas um país emissor e o controlador da moeda reserva, os Estados Unidos.


 


[ José Dirceu ] Eu tenho sempre afirmado que, para o crescimento e desenvolvimento do Brasil, a integração da América do Sul é fundamental. Como você vê essa questão? Muitos dizem que não é preciso um banco regional porque há muita liquidez. Você concorda?


[ Belluzzo ] Eu acho que esse ponto é importantíssimo, até por conta do processo de formação de blocos regionais no mundo. O Brasil é um global trader, mas, ao mesmo tempo, se você olha o desempenho das exportações brasileiras, você vê que o Mercosul teve uma importância enorme para a expansão de nossas exportações. Eu participei da primeira construção do protocolo de integração comercial do Brasil-Argentina. Foi muito difícil, porque havia muita resistência por parte da indústria, especialmente da Argentina. Mas, enfim, aquilo foi a semente do Mercosul. O que nós propusemos é que se avançasse a integração, porque a integração apenas comercial tem muitas limitações. A integração tem que ser feita em vários níveis, entre os Estados nacionais e entre os empresariados etc. Nós queríamos criar um banco de desenvolvimento sul-americano. É uma ingenuidade achar que a liquidez, essa abstração, acaba se canalizando para os projetos que interessam. O Brasil é o único país da América Latina que manteve um banco de desenvolvimento e que tem experiência nessa matéria, que pode ser um embrião para um banco latino-americano. Acho que nós temos que caminhar em direção, os passos são mais lentos, a um sistema monetário latino-americano e, depois, a uma moeda comum latino-americana. Em resumo, para mim, a integração é fundamental e diria que é quase inevitável, por conta das mudanças que estão ocorrendo na economia internacional. Essas mudanças foram de enorme importância e nós, de certa forma, ficamos atrasados, demoramos muito para encarar essa questão da integração latino-americana.


 


“O Brasil tem papel central
na integração latino-americana”


 


[ José Dirceu ] Muitos usam as situações de conflito, como a recente crise das papeleras entre Uruguai e Argentina, por exemplo, para indicar a incapacidade de levar a integração em frente. Mas entendo que a integração é, justamente, administrar conflitos…


[ Belluzzo ] O problema é que os liberais sempre pensam em termos de harmonia e de equilíbrio. Isso não funciona assim, funciona no conflito, na diferença. E vai ser assim porque as economias são muito diferentes. O Brasil, por ser a economia mais desenvolvida da região, tem um papel central, que é dado estruturalmente para ele, independentemente de quem esteja no governo. Se você tiver um projeto de integração a partir do Brasil, facilitará muito o processo. Porque, de fato, o Brasil vai ter que ser o chamado país residual, ou seja, aquele que suporta o choque da integração. Vai ter que ter uma certa generosidade brasileira, assim como se teve uma certa generosidade norte-americana no pós-guerra.


 


[ José Dirceu ] É, inclusive, de interesse do Brasil. É uma cegueira não ver isso.


[ Belluzzo ] Essa é uma questão central. Isso tem a ver com o banco, tem a ver com a integração física, porque nós precisamos ter projetos conjuntos de integração física, de infra-estrutura, energia, transportes. Nós temos todas as condições para fazer isso com a presença do banco e dos Estados nacionais. Nós podíamos fazer um ensaio, a coisa mais heterodoxa ainda, fazer um ensaio de administrações conjuntas de reservas, isso facilitaria a estabilização das moedas nacionais inter-regionais e, também, seria um passo importante para você criar o sistema monetário sul-americano e, depois, a moeda comum.


 


[ José Dirceu ] O que você considera que falta ao país para ter um projeto de desenvolvimento? Qual a razão do país não conseguir avançar?


[ Belluzzo ] Se a experiência do passado vale como informação, se você olhar a chamada era desenvolvimentista, aquilo foi feito a partir de uma espécie de consenso não explicitado. Ou seja, quando ocorreu a crise de 30, a reação brasileira, sobretudo, mais do que dos outros países, foi uma reação de autodefesa, não havia um projeto, mas um clima político e ideológico que engendrou uma transformação na ação do Estado e na visão do setor privado. Isso foi tomando conta do Estado brasileiro, da intelectualidade, dos militares, que tiveram uma grande importância, independente da filiação ideológica deles. De certa forma, o Getúlio foi em ziguezague, assim como o Roosevelt, em 30. Era muito difícil se desvencilhar daquelas práticas, das instituições que estavam ali para a economia primária exportadora, ou para a economia liberal americana. Então, Getúlio foi construindo a carteira de crédito industrial do Banco do Brasil, criou o DASP. Na medida em que isso foi funcionando, dando certo, ele foi angariando adeptos. Mas é uma ilusão achar que isso será feito sem resistências.


 


“Para um projeto de desenvolvimento
é preciso construir um consenso”


 


[ José Dirceu ] Como você imagina a construção do consenso em torno de um projeto de desenvolvimento?


[ Belluzzo ] É muito difícil conseguir o consenso na derrota, no fracasso. O consenso vai se criar com o sucesso. O auge de apoio ao regime militar foi no começo dos anos setenta, por causa do milagre. Agora, nós estamos numa situação inversa, estamos com baixo crescimento. Se a economia começar a retomar e espalhar os efeitos dessa retomada na população, vamos criar as condições de sucesso que permitem construir o consenso. Hoje, o que está segurando o apoio ao governo é a política social.


 


[ José Dirceu ] Ou seja, acelerando o crescimento, criam-se as condições objetivas para implantar um projeto de desenvolvimento?


[ Belluzzo ] Na minha visão, isso é uma interação entre a ação do Estado, do governo e a interpretação que dela faz a população, sobretudo, a de mais baixa renda. Com a reiteração das eleições, nota-se claramente, que ela é cada vez menos dependente – a despeito de toda essa parnafenália midiática, que é uma condição e, ao mesmo tempo, um problema da democracia. Na verdade, está se consolidando um tipo de voto que tem, como critério, a posição social dos indivíduos. Esse é um dos ganhos dos últimos anos, particularmente das eleições do Lula, a despeito das minhas divergências com ele. O ganho da eleição do Lula foi que a qualidade da representação, pelo menos no Executivo, melhorou. Com a eleição dele, rompeu-se, no Brasil, com um obstáculo que eu diria secular.


 


“É preciso recuperar 
as carreiras de Estado”


 


Para a democracia brasileira, essa reiteração das eleições foi fundamental, ela sedimentou as opções e politizou melhor, porque um dos problemas maiores que a ditadura causou foi a despolitização. Muitos dos problemas que nós temos hoje, em várias instituições, são fruto dos 24 anos da despolitização, do “abastardamento” do Congresso Nacional, da administração. Criaram a administração paralela, abandonaram, mataram as carreiras. Quem vai ao governo vê claramente que você tem um déficit de gestores, de administradores.


 


[ José Dirceu ] A reforma administrativa é uma necessidade para o país avançar.


[ Belluzzo ] Ela é fundamental. Temos que recuperar as carreiras do Estado. O problema não está no Estado, embora haja problemas nele, está na constituição da sociedade civil. A idéia de que a sociedade civil é boa e o Estado é ruim, é a idéia dos liberais. Porque eles supõem que, na sociedade civil, reina a igualdade, fraternidade e liberdade e o Estado é poder despótico, o arbítrio. Só que aqui é o lócus da violência privada e se você não tiver um Estado bem organizado, que funcione e entregue os serviços que prometeu…


 


[ José Dirceu ] Já é difícil assim…


[ Belluzzo ] Já é difícil assim porque as elites econômicas são fortíssimas. Agora, falando mais sobre o projeto de desenvolvimento e ampliando essa discussão no Brasil sobre a ética. É o grito do desesperado que não sabe onde está o problema. Não é o problema da ética, é o problema da ordem jurídica e do Estado brasileiro, o relacionamento do Estado com o setor privado. O Estado é obrigado a cumprir a lei e a respeitar os seus limites. As burocracias públicas precisam cumprir a lei. É por isso que eu fico preocupado com certos comportamentos do Ministério Público e de outras burocracias não eleitas que, a pretexto de fazer justiça, pretendem se impor acima da lei. Querem fazer justiça, e sua função não é de justiceiro, é de fiscalizar o cumprimento da lei. Se a lei está ruim, então que seja mudada. Mas é a luta social e política que vai decidir isso, mediante a pressão legítima sobre o Congresso, respeitados os preceitos constitucionais. A maior corrupção na democracia e no estado de direito é o justiçamento praticado sob a égide da violação das prerrogativas individuais, como, por exemplo, não ser condenado sem contraditório, sem o devido processo legal.


 


“Não há desenvolvimento
sem a radicalização da democracia”


 


[ José Dirceu ] O Centro Celso Furtado, do qual você é presidente institucional, lançou recentemente uma carta aos candidatos à Presidência da República. O que estão propondo?


[ Belluzzo ] O objetivo da Carta é explicitar que não há desenvolvimento sem a radicalização da democracia. A democracia entendida como a participação das massas. Aqui, no Brasil, há muito democrata que gosta da democracia sem a participação do povo. Quando o povo começa a colocar as mangas de fora, eles começam a achar ruim. Então, essa é a mensagem da Carta e também, ao mesmo tempo em que isso avance, isso se chama consolidação do Estado Democrático de Direito Social. Não há democracia sem ampliação dos direitos sociais. Nós estamos muito atrasados nisso aí.


 


[ José Dirceu ] Que sugestão você faria para o próximo governo, para o presidente Lula, para ajudar a destravar a hegemonia rentista sobre a política econômica. Muitas vezes, se discute a ampliação do Conselho Monetário Nacional…


[ Belluzzo ] Essa é uma questão importante porque diz respeito ao controle das autoridades não eleitas. É preciso diversificar um pouco a composição. Porque o Conselho Monetário Nacional era muito mais amplo do que é hoje. No meu tempo, ele tinha uma composição mais diversificada. Não precisamos chegar àquele exagero, porque ele era muito grande e difícil de manejar, mas também não pode ser o que é hoje, foi o Fernando Henrique que enxugou sua composição. E, também, nós temos que discutir a sério a independência do Banco Central. A independência significa que o Banco tem autonomia para decidir os instrumentos que vai usar, a forma como ele vai operar a política monetária, mas ele não pode ter autonomia, por exemplo, em relação à meta de inflação. O que planeja não pode ser o mesmo que executa. Nos Estados Unidos, o presidente do Banco Central tem que prestar contas ao Congresso. A quem ele presta contas aqui? A ninguém. O Banco Central brasileiro tem uma independência de fato.


 


[ José Dirceu ] Se você quiser mudar, você vai ver o pau.


[ Belluzzo ] Porque se estabeleceu um governo não eleito dentro do governo. Na verdade, quem decide a política monetária é um grupo de técnicos que não presta contas a ninguém, a não ser aos seus pares. Há questões técnicas, ninguém quer colocar na direção do Banco Central, um engenheiro, aviador, nem, provavelmente, um sociólogo. Tem que usar a capacidade técnica, mas ela tem que ser submetida ao controle político das autoridades eleitas, tem que prestar contas a alguém. Nos Estados Unidos, ninguém tem dúvidas de que é assim.