Amorim: Doha fracassou porque não havia vontade política

O colapso da rodada de Doha sobre o comércio mundial foi agravado nesta segunda-feira (31) com a acusação do presidente norte-americano, George W. Bush, contra países ''que não fazem esforços para alcançar um acordo''. Nestas circunstâncias, é instrutivo

''Senhor Presidente,


Há exatamente uma semana, em São Petersburgo, na segunda-feira, dia 17 de julho, os líderes dos países do G-8 reuniram-se com os Chefes de Estado e de Governo de cinco países em desenvolvimento, além do Presidente da União Africana.


 


Naquela ocasião, os líderes reforçaram seu compromisso com uma conclusão bem sucedida da Rodada do Desenvolvimento de Doha. Em seguida, os ministros do G-6 se dirigiram a Genebra com mandatos que deveriam permitir superar as diferenças entre as posições negociadoras.


 


Os ministros do G-6 reuniram-se ontem. Nós todos conhecemos qual o resultado daquela reunião. Esse resultado é profundamente perturbador. A flexibilidade anunciada pelos líderes em São Petersburgo não se materializou. Em menos de 24 horas, as discussões do G-6 terminaram com um impasse.


 


Tal fracasso causa perplexidade, para dizer o mínimo. Há somente uma explicação possível para um colapso tão rápido e categórico: não havia vontade política.


 


O presidente Lula indicou em São Petersburgo que a liderança não é necessária em épocas de paz. A liderança é necessária nos períodos de crise.


 


Temos uma enorme crise diante de nós e não temos liderança clara. Agora, não basta dizer que não apreciamos o que está sobre a mesa. Não basta minimizar perdas e bater em retirada. Não basta responsabilizar outros, acusando-os de falta de flexibilidade, nem nos escondermos atrás de nossas próprias limitações internas.


 


Este é o momento para a verdadeira liderança emergir, imaginando soluções criativas, aceitando os custos de reforma e engajando-se no processo negociador.


 


O sistema multilateral de comércio da OMC está enfrentando a crise mais grave desde seu estabelecimento. Podemos contemplar passivamente a erosão progressiva de sua credibilidade e legitimidade. Podemos igualmente tomar a decisão de persistir, não aceitar o fracasso.


 


Podemos reconhecer que milhões de vidas no mundo inteiro, especialmente nos países em desenvolvimento, podem ser melhoradas em conseqüência desta Rodada do desenvolvimento. O Brasil certamente escolhe essa segunda opção.


 


Foram necessários quase 60 anos para que o termo ''desenvolvimento'' aparecesse no título de uma rodada. O acordo do GATT de 1947 não menciona sequer a palavra ''desenvolvimento'' em seu preâmbulo.


 


Não podemos falhar diante do desafio de reformar o sistema multilateral de comércio, de fazê-lo mais responsivo às necessidades dos pobres e de remover as distorções que terminam por promover a exportação da miséria e da desesperança.


 


Mas para persistir, para manter viva a Agenda de Doha, devemos escolher com cuidado caminho à frente. Primeiramente, devemos ajustar nossas expectativas para a retomada das negociações no futuro próximo, não no distante. O tempo não joga em nosso favor.


 


Em segundo lugar, nós não podemos recuar. Esta deve ser uma pausa para refletir sobre enfoques criativos e sobre como conferir o ímpeto político necessário para prosseguir.


 


Acima de tudo, isso não deve ser usado como desculpa para reduzir o nível de ambição da Rodada. Qualquer ''manobra fácil'' somente se daria às custas dos países em desenvolvimento. O Brasil e seus parceiros do G-20 não seguirão esse trajeto e estarão vigilantes para que outros não sintam que esta é uma opção viável.


 


Devemos reter os textos e os mandatos atuais, tudo o que está na mesa. É o resultado de trabalho duro e doloroso, e constitui uma base sólida para negociações futuras.


 


O que necessitamos é de flexibilidade dentro da estrutura existente; não necessitamos negociar uma base inteiramente nova para negociações.


 


Os membros devem continuar engajados nas discussões sobre como avançar o processo. Tais conversas podem acontecer em diversos formatos e modos: bilaterais, plurilaterais e multilaterais; em Genebra ou em outro lugar.


 


Nós devemos refletir sobre possíveis soluções e avanços nas negociações. Os enfoques incrementais não serão suficientes, mas tampouco há espaço para demandas irrazoáveis que negligenciam inteiramente as realidades dos outros
parceiros.


 


Os membros devem continuar o trabalho em todos os níveis. Brasil, por exemplo, continuará a estimular as discussões dentro do G-20, do NAMA-11, do Grupo de Cairns, e em todos os outros fóruns em que participamos.


 


Não teríamos chegado tão longe nesta Rodada do Desenvolvimento sem a contribuição de grupos como o G-20, que sempre tabulou propostas tecnicamente sólidas, politicamente realistas e legítimas.


 


O trabalho do G-20 continuará direcionado no sentido de uma convergência possível, que seja equilibrada, ambiciosa e voltada ao desenvolvimento.


 


O Diretor-Geral tem um papel crucial em manter o processo em movimento, mas nós também temos essa função. Este é um processo dirigido por membros em uma organização dirigida por membros.


 


A sobrevivência da rodada do desenvolvimento depende de nós. A Agenda de Doha não está limitada a negociações comerciais. Ela engloba questões como a luta contra a fome e a pobreza, governança política, segurança e desenvolvimento econômico com justiça social.


 


Estes são elementos essenciais para a paz, que transcendem esta Organização e são do interesse direto a outros Organismos, em particular as Nações Unidas.


 


Talvez possamos considerar a possibilidade de incluir o Secretário-Geral Kofi Annan no esforço para conferir ímpeto político com vistas a superar os desafios que enfrentamos agora.


 


Fonte: www.inforel.org