Copom tende a referendar previsões feitas pelo mercado
Nas últimas 54 reuniões, a diretoria do BC seguiu a previsão do mercado à risca em 33 (61%). A última vez que o Copom desafiou o mercado e cravou um juro menor que o previsto pela pesquisa Focus foi há 27 meses (março de 2004).
Publicado 18/07/2006 16:25
O brasileiro saudoso do espírito apostador que tomou conta de muita gente durante a Copa do Mundo poderia reviver o clima sugerindo a amigos o seguinte bolão: qual será a taxa básica de juros (Selic) fixada pelo Banco Central (BC) nesta quarta-feira (19)? Claro que um tema árido, abstrato e nada popular como “juro” jamais despertará a mesma emoção do futebol – se bem que causa aflição parecida ao país, e há quem veja semelhanças intelectuais entre o Comitê de Política Monetária (Copom) do BC e o ex-técnico da seleção Carlos Alberto Parreira.
O charme do “bolão do juro” está nas possibilidades reais de lucro. Quem quiser apostar que os diretores do BC vão cortar a taxa em meio ponto percentual tem duas chances em três de vencer. Essa é o jogo do chamado mercado, aquela entidade que acumula dinheiro com as decisões que o Copom toma sob influência dos próprios palpites do mercado. E os palpites dificilmente são contrariados.
Desde a criação do regime de metas de inflação, em 1999, o BC consulta toda semana um seleto grupo de instituições, a imensa maioria da área financeira, para colher as projeções econômicas delas, sobretudo em relação a preços. O resultado da pesquisa, apelidada de Focus, é público – fica disponível na página do BC na internet. Atualmente, ela ouve 80 agentes privados, inclusive estrangeiros. Deste total, 70% são bancos e outros gestores de dinheiro alheio, como fundos de pensão, 20% são consultorias e 10%, empresas não-financeiras (de telefonia e petróleo, por exemplo).
De início, o levantamento era feito por correio eletrônico ou telefone. Mas, à medida que ganhou fama, páginas de jornal e importância para o BC, passou a ser realizado pelo sistema eletrônico que o banco usa para comunicar-se com o mercado no dia a dia, o Sisbacen. O pesquisado entra no Sisbacen, marca suas previsões, e o BC compromete-se a manter em segredo o nome dos apostadores e suas projeções individuais. Só divulga números.
O levantamento transformou-se numa das referências mais importantes nos encontros periódicos do Copom, por dar uma idéia do humor do mercado. Dizer que se trata de parâmetro relevante talvez seja até injusto com a pesquisa. Mais que um conjunto de projeções analisado pelo Copom, ela é determinante para o rumo da Selic, que premia metade do capital financiador da dívida pública.
A comparação entre as previsões de juros feitas na semana anterior à reunião do Comitê de Política Monetária e a decisões efetivamente tomadas pelo Copom mostra que o pessoal do mercado tem um incrível talento para a quiromancia – ou que o BC curva-se a apostas que não se pode chamar de desinteressadas.
Nas últimas 54 reuniões do Copom, contadas a partir de novembro de 2001, ocasião em que a pesquisa ganhou o formato atual, a diretoria do BC seguiu a previsão do Focus à risca em 33. Ou seja, em 61% das vezes, calibrou a Selic exatamente no nível que o mercado esperava. Em 14 oportunidades (26% das reuniões), foi mais conservador e tascou uma dose de juros maior. Em apenas sete (13%), enfrentou os financistas e cortou a Selic mais do que eles imaginavam. A última vez que o Copom desafiou o mercado e cravou um juro menor foi há 27 meses (março de 2004). Não parece exagero identificar aí uma espécie de “ditadura do Focus”.
A comparação entre pesquisas Focus e decisões do Copom evidencia um comportamento da diretoria do BC que poderia ser estudado pela psicologia. O banco mostra disposição para surpreender o mercado, caso a divergência transmita um sinal de dureza, mas tem dificuldade em revelar um lado, digamos, mais humano. As últimas vinte reuniões oferecem farto material de análise aos psicólogos.
O período abrange duas trajetórias opostas de juros. Em setembro de 2004, o Focus ainda recomendava estabilidade quando o Copom deu início a uma escalada de nove aumentos (em que o BC seguiu a previsão do mercado quatro vezes e, em cinco, preferiu uma taxa mais elevada) que se estendeu até maio de 2005, mês qem que o próprio boletim do mercado já previa estabilidade. A partir de junho do ano passado, quando se iniciou o período de estabilidade de três meses, a repetição tem sido uma constante, inclusive no ciclo de queda (desde setembro de 2005, houve oito cortes consecutivos).
Para o BC, o alinhamento entre previsões e decisões reflete um trabalho adequado de coordenação das expectativas de inflação dos agentes privados por parte do banco. Ou, driblando o jargão dos entendidos: o BC estaria conseguindo fazer o mercado acreditar que a inflação será próxima à meta que o banco persegue via juro. Em uma audiência pública na Comissão Mista de Orçamento do Congresso no fim de junho, o presidente do BC, Henrique Meirelles, disse que, quanto maior a confiança dos agentes sobre a taxa de inflação, mais fácil de contê-la e, portanto, mais chance o juro tem de cair.
O problema com a coincidência entre projeções do mercado e deliberações do Copom é que não se sabe ao certo quem comanda a situação. O mercado faz previsões certeiras porque conhece a alma do BC? (Dos nove diretores do banco, sete já trabalharam no mercado. Além disso, o BC produz análises e relatórios públicos nos quais explica suas decisões). Ou o banco se rende às previsões porque ignorá-las seria arriscado, estimulando a tentação do mercado de calibrar projeções no nível que mais lhe convém?
O BC assegura que a pesquisa tem mecanismos de prevenção contra eventuais tentativas de manipular o Copom. Mas admite que o Focus tem influência direta no mundo real e traça cenários “determinantes” nas avaliações do comitê. “A expectativa de inflação do mercado é um componente inflacionário, porque causa pressão na economia e pode provocar efeitos sobre a inflação. É determinante para o Copom, mas é só um fator entre os muitos outros que são analisados nas reuniões”, diz o BC, por meio da assessoria de imprensa.
O fator Focus é tão determinante, que o gerente-executivo de Relacionamento com Investidores, repartição do BC encarregada da pesquisa, participa das reuniões do Copom. Envolvido com o Focus desde o início do projeto, José Pedro Ramos Fachada trabalha em São Paulo, o centro financeiro do País, e vai a Brasília no primeiro dia do Copom, para relatar aos diretores do BC o sentimento captado em seus contatos com o mercado. A ata do Copom, divulgada uma semana depois das reuniões, sempre dedica um espaço às previsões do mercado. Os relatórios trimestrais de inflação preparados pelo BC, também mencionam as previsões do mercado.
Para alguns economistas, a capacidade do mercado de interferir nas decisões do Copom sugere que o BC, e, por conseqüência, o País, virou refém do sistema financeiro, que em grande parte lucra emprestando ao governo em troca da Selic. Daí a dificuldade encontrada pelo Banco Central para fazer a taxa de juro no Brasil descer do patamar obsceno em que se encontra desde o início do Plano Real, há doze anos.
A economista Maryze Fahri, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisou a política monetária nos três primeiros anos do atual governo e constatou que a “captura” do BC pelos agentes privados foi herdada e mantida. “Tendo a achar que o BC se escorou nos interesses do mercado”, diz Maryze. “O BC utiliza uma pesquisa de opinião junto a analistas de bancos, que são quem têm mais a ganhar com taxas de juros elevadas, para apurar as expectativas de inflação dos ‘agentes racionais’, o que introduz um viés altista em suas decisões (sobre juros)”
“Com essas pesquisas, o BC busca saber na verdade o que o mercado quer. Quem define a taxa de juros no Brasil é o mercado”, dispara Roberto Piscitelli, professor do Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais da Universidade de Brasília (UnB). Segundo ele, as últimas 54 reuniões do Copom compreendem um período suficientemente longo que permite a identificação de uma clara tendência mimética.
O BC defende-se, no entanto, argumentando que está preparado para desmascarar agentes que façam um conluio com o objetivo de manter o juro alto. A pesquisa privilegia o conceito de “mediana”, em vez de média, ao apurar o sentimento geral do mercado. Na mediana, descartam-se projeções que divirjam muito das demais. O banco diz que confere se as previsões de consultorias são as mesmas que elas mandam a clientes. Que confronta índices de inflação reais com os previstos pelos agentes.
O Banco Central afirma ainda que, quando nota uma mudança muito grande de previsão de uma semana para outra, liga para o entrevistado e pede para conhecer os motivos. “Não dá para imaginar que, de uma hora para outra, todos vão agir em conluio. É muita teoria da conspiração. Mas seria ingênuo achar que o BC não identificaria e não agiria”, diz o banco, via assessoria.
Fonte: Agência Carta Maior