Ferreira Gullar: “Ruim mesmo é perder”

"Futebol é arte, mas é, sobretudo, jogo; a arte tem um fim em si mesma, e o jogo não". Artigo de Ferreira Gullar


Alguns cronistas esportivos acham que entendem mais de futebol do que os técnicos e os jogadores. Isso tem ficado evidente nesta Copa do Mundo, em que a seleção brasileira estreou jogando abaixo da expectativa que se havia criado. De nada adiantou Parreira e os jogadores advertirem que o excesso de otimismo era prejudicial e que o nível técnico de todas as equipes era alto. Apesar disso, esperavam que o Brasil desse um banho na seleção da Croácia; como não deu, os comentários negativos tomaram o lugar do otimismo exagerado.

O bode expiatório dessa decepção foi Ronaldo Fenômeno. Acusaram-no não apenas de estar gordo e lento mas também de ter impedido que o ataque de nossa seleção funcionasse; acusação descabida, já que os mesmos críticos lamentavam ter ele se mantido parado próximo ao gol adversário, o que poderia impedir a conclusão dos ataques, mas não sua articulação. Ou seja, ignorava-se deliberadamente que a marcação cerrada em cima de nosso meio-campo era uma das dificuldades que o time enfrentava.

Sabe-se que futebol é paixão e que a paixão sempre perturba a avaliação objetiva, mas as pessoas que têm como tarefa ajudar o público a avaliar o desempenho de uma equipe esportiva deviam manter isenção e equilíbrio na análise dos fatos.
Confesso que, ao assistir aos programas em que esses comentaristas expunham suas opiniões, surpreendia-me com seu deliberado propósito de ignorar fatos que eram do conhecimento deles e de todos nós.

Parreira mais de uma vez afirmara que a seleção não estrearia no auge de seu preparo técnico e físico, mas possivelmente com 60 a 70% do rendimento ideal. Treino é treino e jogo é jogo, como se sabe, e, por isso mesmo, só jogando, um time logra atingir o máximo de rendimento.

Isso aconteceu na Copa passada, em que o Brasil estreou com dificuldades e foi aos poucos melhorando. Mas esses fatos foram ignorados pelos comentaristas, que começaram a exigir mudanças radicais no time e na tática de jogo; do contrário, estaríamos derrotados. Quase ninguém deu importância ao fato de que o Brasil estreara com vitória e de que todo jogo de estréia é sempre difícil e tenso. Esqueceram que os jogadores, como todo mundo, sensíveis a pressões, entram em campo com a obrigação de vencer, sendo que, no caso do Brasil, essa obrigação é incomparavelmente maior. Nada disso importa. Nem mesmo que, apesar das dificuldades, tenham vencido na estréia. De nada valeu vencer, se não deram espetáculo.

Um desses comentaristas, depois que o Brasil ganhou o segundo jogo, contra a Austrália e de 2 a 0, disse que "mais importante que ganhar a partida é jogar bem". Ou seja: é preferível perder jogando bonito, como aconteceu em 1982.

Lembro-me da tragédia que foi a derrota do Brasil para a Itália, naquela partida infeliz, quando a seleção brasileira, tida por todos como favorita, depois de empatar duas vezes, insistiu em jogar ofensivamente até perder por 3 a 2 e ser eliminada da Copa. Saí de casa, aqui em Copacabana, logo após o jogo: era uma desolação, com gente chorando, sentada nas calçadas sob as bandeirinhas verde-e-amarelo que decoravam as ruas. Não teria sido melhor descer do salto alto, reconhecer que o adversário estava jogando melhor e fortalecer a defesa?

Foi esse mesmo espírito que imperou entre os comentaristas esportivos, em 1994, quando Parreira foi criticado a cada partida que vencia por não dar espetáculo. Mas ganhamos e nos tornamos tetra. O povo, feliz, dançou e cantou nas ruas. Ele merece.
Também sou adepto do futebol arte e vibrei com a exibição do Brasil contra o Japão. Mas é que o time japonês, treinado pelo brasileiro Zico, joga e deixa jogar. Não é como a Croácia e a Austrália que, inferiores tecnicamente, fecham-se na defesa e marcam pesado. Contra o Brasil, é preferível empatar de zero a zero que arriscar, pois o empate já é vitória. Os comentaristas sabem disso muito mais do que eu, mero torcedor, mas, quando comentam, esquecem, certamente porque gostariam de ver o Brasil sempre exibindo a genialidade de seus craques. Só que, com isso, exercem sobre a seleção uma pressão prejudicial e quase insuportável.

Depois da vitória de 4 a 1 contra o Japão, com dois gols do Ronaldo, todos vibraram: "Enfim, o verdadeiro futebol!" E se Parreira tivesse tirado Ronaldo, como eles pediam insistentemente? Futebol é arte, mas é, sobretudo, jogo. A arte tem um fim em si mesma, e o jogo não: a finalidade do jogo é a vitória que, infelizmente, nem sempre vem.

Artigo publicado originalmente na edição deste domingo (2/7) da Folha de S. Paulo