Oposição tenta “venezuelanizar” eleições bolivianas

Sem discurso diante da nacionalização do gás e da popularidade de Evo Morales, regiões mais ricas buscam autonomia em relação ao governo central. Eleição constituinte pode virar plebiscito sobre o governo.

A oposição boliviana tenta transformar as eleições para a assembléia constituinte, que ocorrem neste domingo (2), num plebiscito sobre o governo Evo Morales. Para isso, desloca do centro da campanha os debates sobre os vários aspectos envolvidos na definição de um Carta Magna e busca concentrar-se na disputa pela autonomia regional. Explica-se: junto com a eleição de 225 constituintes, haverá um plebiscito sobre a autonomia departamental. A Bolívia não é uma federação e seus nove departamentos são centralizados pelo governo federal.

“Os setores que exigem autonomia nunca se preocuparam com isso quando estavam no governo”, atenta a psicóloga Elisabeth Solón, dirigente da Fundação Walter Sólon, dedicada a campanhas pela integração latino-americana e contra os tratados de livre-comércio. “Eles se isolaram politicamente com a vitória de Evo e tentam recuperar terreno”. Em uma palavra, há uma clara tentativa de se “venezuelanizar” a disputa.

Ataques e contra-ataques

A campanha mais forte acontece no departamento de Santa Cruz de la Sierra, centro econômico do país. No final da tarde de quarta feira (28), cerca de cem mil pessoas concentraram-se no centro da cidade para ouvir discursos duros contra o governo e o presidente da República. “Querem que vivamos sem leis, pois isso atrapalha os projetos de poder dessa burocracia centralista-mineiro-feudal”, advertiu o presidente do Comitê pró-Santa Cruz, o empresário Germano Antelo.

Duas horas e meia depois, o presidente Evo Morales respondeu aos ataques, num comício de proporções semelhantes, realizado sob um frio de 7º. C, no Largo de São Francisco, no centro de La Paz. Vestindo um poncho azul – com as cores de seu partido, o MAS (Movimento ao Socialismo) – e usando um colar de flores brancas, Evo discursou: “Queremos uma autonomia para os povos, não para as famílias de empresários quebrados, que nunca pagaram suas dívidas para com o Estado”.

Debate simplificado

Os departamentos mais ricos querem reduzir os repasses de impostos ao governo central e a solidariedade com as regiões mais pobres, diante de um governo que deseja gastar mais com programas sociais. Mas o debate tem sido bastante simplificado e mal colocado.

A começar pela pergunta constante na cédula eleitoral: “Você está de acordo, nos marcos da unidade nacional, em dar à Assembléia Constituinte o mandato vinculante para estabelecer um regime de autonomia departamental, aplicável imediatamente depois da promulgação da nova Constituição Política do Estado nos departamentos onde este referendo tenha maioria, de maneira que suas autoridades sejam eleitas diretamente pelos cidadãos e recebam do Estado Nacional competências executivas, atribuições normativas, administrativas e os recursos econômico-financeiros que lhes assegura a nova Constituição Política do Estado e as leis?”.

A resposta a esse tortuoso arrazoado deve ser “Sim” ou “Não”. As regras não são claras. Se a autonomia ganhar em determinado departamento, mas for derrotada no plano nacional, não há clareza sobre a decisão final.

“O debate da autonomia em si não teria problema algum e talvez ela seja uma necessidade”, alerta Elisbeth Sólon. “Qualquer que seja a proposta vencedora, ela terá de ser detalhada nos debates constitucionais pelo próximo ano e meio”. A questão, segundo ela, é que hoje a autonomia adquiriu um sentido político diverso. “Como as grandes questões nacionais – a exemplo da nacionalização do gás, das leis trabalhistas, da reestatização de alguns setores privatizados – já fizerem parte da ação de governo, a materialização desses pontos na letra da lei acabou secundarizada”, diz ela. Por isso a autonomia ganhou relevância e os setores alijados do poder agarraram-se a ela com unhas e dentes. O tópico entrou na agenda eleitoral por conta de um acordo entre governo e oposição no Congresso, para viabilizar a realização da constituinte.

Ofensiva governamental e apatia eleitoral

A ofensiva governamental nesses cinco meses de gestão foi rememorada num curto e objetivo discurso do vice-presidente, Álvaro Garcia Linera, no comício de La Paz. Linera lembrou que um dos primeiros atos após a posse, em janeiro, foi baixar as remunerações dos cargos mais altos – presidente, vice, ministros e parlamentares – em 60%. Ao mesmo tempo, o governo pressionou as empresas de eletricidade a reduzirem suas tarifas em 40% . Lembrou ainda das mudanças nas leis trabalhistas, impedindo demissões imotivadas, o início do processo de reforma agrária, o programa de saúde auxiliado por médicos cubanos – “nossa meta é que qualquer atendimento na área seja gratuito e universal” – e traçou metas para acabar com o analfabetismo, que atinge 1 milhão de bolivianos. E, por fim, ressaltou o grande passo dado com a nacionalização do gás. “Com isso, a Bolívia deixou de ser conhecida internacionalmente como o país dos golpes de Estado e passou a ser respeitada como o país da dignidade, da soberania e como líder de uma revolução!”, finalizou.

Nas ruas quase não há sinais da campanha eleitoral. “O povo está interessado em coisas concretas”, diz Fernando Miranda, 64, morador de El Alto, a impressionante cidade-dormitório de 1 milhão de habitantes, situada a 4 mil metros de altitude, ao lado da capital. Entusiasta de Evo Morales, ele é direto: “Cansamos de conversa mole. O povo está com o presidente”. A fala de Miranda é subjetiva, mas encontra eco nas pesquisas de opinião que dão 80% de popularidade a Evo Morales. É difícil saber se esta proporção se traduzirá em votos pulverizados por centenas de candidatos do MAS, mas é pouco provável que o governo não tenha maioria. A meta é ter 2/3 dos constituintes, o que possibilita a aprovação tranqüila das mudanças institucionais já em andamento.

Direita e esquerda

Os problemas de Evo Morales concentram-se especialmente numa direita que busca desesperadamente um discurso para sensibilizar a população. O ex-presidente Jorge (Tuto) Quiroga (2001-2002), formado nos Estados Unidos e ex-funcionário da IBM, busca atacar Evo Morales em todas as frentes, mas pouco atrai o eleitorado. Limita-se a brandir a “subordinação vergonhosa da Bolívia aos ditadores Fidel Castro e Hugo Chávez” e a dizer que o governo espanta os investidores. Por conta disso, ganham relevância os líderes regionais, que concentram sua ação no plebiscito da autonomia.

Pela ultra-esquerda, os setores que tentaram no início denunciar um suposto caráter neoliberal no novo governo isolaram-se rapidamente. São eles, especialmente, Filipe Quispe, líder indígena, Jayme Solanas, dirigente da Central Obrera Boliviana (COB) e Roberto de la Cruz, vereador em El Alto, presidente da Confederação de Indígenas Organizados de Bolívia e um dos líderes das lutas populares de outubro de 2003, que culminaram com a queda do ex-presidente Gonzalo Sanchez de Lozada (2001-2003).

De la Cruz é um homem encorpado, de 38 anos e que gosta de frases de impacto. “Sou companheiro e apóio criticamente Evo Morales, mas ele precisa ser substituído no próximo mandato”, diz em tom enfático. Com gestos largos, ele classifica a nacionalização como “Um show midiático. O que temos de fazer é desapropriar as companhias”. E, no plano mais geral, define: “Evo faz um governo populista e não uma revolução”.

O isolamento da ultra-esquerda se deu ás vésperas da nacionalização do gás, em 1º de maio. Avaliando que o governo estaria enfraquecido pela dificuldade inicial em concretizar promessas de campanha, esses setores tentaram uma greve geral pelo aumento do salário mínimo e pela nacionalização total das reservas naturais. Fracassaram. A ofensiva governamental literalmente deixou-os sem fala.

Evo, por seu lado, não pára. Após discursar por 37 minutos no ato de quarta-feira (28) – no qual, além de atacar os autonomistas, lembrou mais uma vez que “os povos indígenas originários dessa terra têm agora direitos que nunca tiveram”, – voou com parte de seu ministério para a Argentina. Na pauta, um novo acordo de fornecimento de gás, que aumenta os preços de US$ 3 por milhão de BTUs para US$ 5. “Precisamos de dinheiro para industrializar o país e gerar empregos”, repete constantemente. Volta sexta, segue para Cochabamba e sábado estará de novo em La Paz. “Não me casei e por isso posso dedicar-me integralmente à Bolívia”, brinca.