Nelson Breve: CPI dos Bingos “criou pernas e perdeu a cabeça”
Comissão criada para “investigar e apurar a utilização das casas de bingo para a prática de crimes", a partir do escândalo envolvendo Carlinhos Cachoeira e Waldomiro Diniz, terminou como um exemplo de desrespeito &agr
Publicado 21/06/2006 16:36
Nelson Breve – Carta Maior
A novela da CPI dos Bingos começou com um flagrante de cobrança de propina semelhante ao que deu origem à CPI dos Correios (aquela imagem em que um funcionário de terceiro escalão da estatal aparece embolsando um pacotinho de dinheiro de empresários interessados em vencer licitações). No início de 2002, o empresário do jogo Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, andava desconfiado de que o então presidente da Loterj Waldomiro Diniz estava tentando passá-lo para trás, favorecendo rivais na regulamentação de loterias no Rio de Janeiro. Colocou uma câmara escondida no escritório e atraiu Waldomiro para negociar alterações em uma norma de seu interesse e conversar sobre “política” (traduzindo: doações para campanhas).
O tempo passou, Waldomiro tornou-se subchefe da Casa Civil para Assuntos Parlamentares no governo Lula, trabalhando sob as ordens do poderoso ministro José Dirceu. Mas não estava retornando as ligações do antigo parceiro de negócios. Para restabelecer o contato, Cachoeira usou o jornalista Mino Pedrosa como instrumento de chantagem. Com a fita da propina espetada no pescoço, Waldomiro retomou o contato com o empresário do jogo. Junto com ele, se envolveu nas negociações nebulosas para a renovação de um multimilionário contrato da Caixa Econômica Federal com a multinacional Gtech.
O caso veio à tona em fevereiro de 2004, quando a fita caiu nas mãos do senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT) e da revista Época, que tornou público o escândalo da propina no Rio. Waldomiro perdeu o cargo e deixou o chefe, José Dirceu, em situação muito difícil no governo. A oposição queria uma CPI do caso Waldomiro (ou Gtech), onde imaginavam derrubar o poderoso chefe da Casa Civil. Mas foi um aliado do governo, o senador Magno Malta (PL-ES), quem conseguiu as assinaturas necessárias para abrir uma investigação parlamentar.
O objetivo da CPI proposta por Magno Malta era “investigar e apurar a utilização das casas de bingo para a prática de crimes de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e
valores, bem como a relação dessas casas e das empresas concessionárias de
apostas com o crime organizado”. O foco estabelecido tinha margem para que a investigação tivesse duas direções distintas.
De um lado, as relações do mercado de jogos com a administração pública e as suspeitas de corrupção no governo Lula, que tinha tido um primeiro ano difícil, mas bem sucedido no Congresso, e estava pronto para decolar. De outro, uma investigação do crime organizado, nos moldes da CPI do Narcotráfico da Câmara, que projetou a carreira política de Magno Malta.
No jargão parlamentar, costuma se dizer que CPI é um risco para o governo, porque “cria pernas e perde a cabeça”. E a CPI dos Correios foi o exemplo que confirmou o dito da sabedoria parlamentar. Para não correr riscos, a base do governo no Senado tentou liquidar a CPI dos Bingos da mesma forma que o governo anterior impediu a instalação da CPI dos Bancos, no segundo ano do governo Fernando Henrique Cardoso. Deixaram de indicar os integrantes, impedindo o funcionamento da comissão.
Os senadores Jefferson Peres (PDT-AM) e Pedro Simon (PMDB-RS) recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) com um mandado de segurança para exigir que a determinação das minorias para investigar o governo, prevista na Constituição, fosse assegurada. Ninguém tinha muita esperança na interferência do STF no que outrora fora considerado assunto interno de outro Poder. Sem novidades nas investigações da imprensa e do Ministério Público sobre o caso Waldomiro, esqueceram da CPI. Só um ano e três meses depois, em 22 de junho do ano passado, quando Dirceu saiu do governo, atingido pelos escândalos do mensalão, é que o STF decidiu, por 9 votos a um, que o Senado teria de instalar a CPI.
O caso Waldomiro-Cachoeira-Gtech acabou ficando pequeno demais diante de tantas denúncias que pipocavam na imprensa no auge das investigações sobre o mensalão. Como o governo não tinha a maioria na CPI dos Bingos, tudo que era barrado na CPI dos Correios, a oposição redirecionava para os lados da que ficou sendo taxada como CPI do Fim do Mundo, mas poderia ser chamada simplesmente de CPI do PT, pois este sempre foi o alvo dela.
E o relatório final do senador Garibaldi Alves (PMDB-RN) deixa isso claro. Logo no início, diz que Waldomiro pedia propinas para candidatos do PT quando foi gravado por Cachoeira. No entanto, no vídeo em que ele aparece cobrando doações de campanha e mais 1% de comissão pessoal para alterar uma regulamentação sobre jogos, também é mencionada a candidatura da governadora do Rio de Janeiro, Rosinha Matheus, então no PSB do marido Anthony Garotinho, hoje filiada ao PMDB do relator da CPI dos Bingos, Garibaldi Alves (RN). A outra candidata que supostamente receberia a doação de Cachoeira seria a ex-governadora Benedita da Silva, do PT, que posteriormente foi ministra da Assistência Social do governo Lula.
A investigação sobre a máfia do lixo da região de Ribeirão Preto sempre direcionou o foco para o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci. Embora o suposto esquema de corrupção envolvesse também prefeituras de outros partidos, como o PMDB e o PSDB. O caso não tinha nada a ver com bingos ou jogos de azar. A CPI gastou boa parte de seu tempo tratando da lavagem de praças e varrição de ruas. Deu voltas e voltas até entrelaçar Palocci na violação do sigilo do caseiro Francenildo Santos.
A ginástica que a CPI teve de fazer para se intrometer nas investigações sobre o assassinato do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel foi impressionante. Identificaram “similaridade do modus operandi” em relação “à prática de propina na administração pública petista associada a esquemas de jogos ilegais ou a empresas de serviços públicos”. No final das investigações ainda encontraram elo do Caso Santo André com o “Comendador” João Arcanjo Ribeiro, acusado de ser o chefe do crime organizado no Mato Grosso e financiador de campanhas do governador tucano Dante de Oliveira, que tinha como companheiro de chapa o senador Antero Paes de Barros.
Os tucanos sempre tiveram muito cuidado em lidar com esse assunto na comissão, por receio de que a investigação se voltasse contra eles. O Comendador foi pivô de um escândalo envolvendo não só o financiamento de campanhas do governador tucano, mas também um esquema semelhante ao do mensalão. Por ordem de parlamentares tucanos que comandavam a Assembléia Legislativa de Matogrosso, um grande grupo de deputados estaduais mato-grossenses de vários partidos era financiado pelas empresas de factoring do Comendador. O esquema foi confirmado por um gerente das empresas de Arcanjo, que hoje vive fora do país protegido pela Interpol.
O próprio caso Gtech foi monitorado de forma a não haver aprofundamento das investigações, pois poderia esbarrar na tucanagem. Primeiro porque o contrato com a Caixa teve início com uma empresa que tinha como sócio o falecido ex-governador do Paraná José Richa, um dos fundadores do PSDB, pai do atual prefeito de Curitiba. Segundo porque alguns tucanos teriam participaram do lobby em favor da Gtech, como a deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP), que, aliás, estaria na companhia da ex-embaixadora dos EUA, Donna Hrinak, segundo relatos de quem acompanhou o processo.
Só que isso a CPI não quis investigar. Só havia interesse no que pudesse atingir alguém do governo Lula ou que tivesse importância no PT. No caso de Santo André, o objetivo era fustigar o chefe do Gabinete Pessoal do presidente da República, Gilberto Carvalho, e o ex-ministro José Dirceu. A CPI deu crédito aos irmãos de Celso Daniel e aos procuradores do Ministério Público de São Paulo que insistem em relacionar a morte dele com supostos esquemas de corrupção na prefeitura de Santo André, embora os policiais que investigaram o caso sejam taxativos ao afirmar que foi um crime comum decorrente de seqüestro.
A CPI conclui até que o assassinato de Celso Daniel ocorreu em conseqüência das “ligações com esquemas de arrecadação de propinas de empresas prestadoras de serviços públicos para abastecimento de caixa do PT”. Sem a menor prova, o relatório afirma categoricamente que “Gilberto Carvalho chegou a transportar R$ 1,2 milhão de Santo André para a sede do PT em São Paulo” e que Celso Daniel “foi morto porque tentou acabar com o caixa 3”, quando se tornou o coordenador do programa de governo do PT. Compra integralmente a versão de promotores do Ministério Público paulista, que há quatro anos insiste em uma tese que não consegue provar.
O desvio de foco começou assim que o empresário Carlinhos Cachoeira afirmou na CPI que Waldomiro nunca havia mencionado o nome de Dirceu no período em que os dois tentavam ajudar a Gtech renovar o contrato de informatização das casas lotéricas com a Caixa. Dessa forma, o Caso Gtech não contribuía para fazer pressão pela cassação de Dirceu. Então, a CPI foi buscar outros assuntos que pudessem justificar os holofotes da mídia.
A partir das denúncias de Rogério Buratti ao Ministério Público de São Paulo sobre caixa-dois e pagamento de propinas na prefeitura de Ribeirão Preto na gestão de Palocci, a CPI imediatamente decidiu convocá-lo. A princípio, o depoimento nada tinha a ver com bingo. No entanto, o ex-assessor de Palocci acabou encaixando um pretexto para a CPI justificar a linha de investigação. Disse que outro ex-assessor de Palocci, já falecido, Ralf Barquete, havia mencionado que “empresas de jogos” de São Paulo e do Rio de Janeiro teriam contribuído com R$ 2 milhões para a campanha do presidente Lula, em 2002.
Só quem poderia dar sustentação à história seria um morto. No entanto, a CPI se convenceu que Palocci e Waldomiro Diniz teriam se reunido com empresários de jogos de Rio de Janeiro e São Paulo, incluindo angolanos, em um hotel de São Paulo entre o final de outubro e início de novembro de 2002, quando teriam feito um acordo para legalizar os jogos no governo Lula. Curioso é que o relatório da CPI propõe justamente a regulamentação do jogo de bingo, dando a entender que não haveria nada de errado no tal acordo.
No entanto, essa foi a ponte feita para levar Palocci à CPI, depois de muita resistência até de senadores da oposição. Em paralelo, foram construindo uma relação entre a casa usada por Buratti em Brasília e as acompanhantes fornecidas pela cafetina Jeanne Mary Córner. Palocci acabou mentindo na Comissão e cavou o buraco de sua queda ao se envolver com a quebra do sigilo do caseiro que o contradisse. A CPI já tinha o seu troféu, mas ainda quis esticar a rede por mais alguns meses para ver se caía outro peixe grande.
Tentaram mais uma vez vasculhar as relações do presidente d Sebrae, Paulo Okamotto, com o presidente Lula. Na CPI dos Correios, a oposição levantou o caso dos pagamentos que ele fez para liquidar um acerto de contas entre o PT e Lula. Tentaram de todas as formas relacionar a origem dos recursos desses pagamentos com o chamado valerioduto, o esquema de financiamento ilegal de campanhas do PT e de partidos aliados ao governo. A CPI teve acesso à movimentação bancária de Okamotto, mas foi proibida pelo STF de manipular tais informações, pois o caso fugia ao foco da investigação.
Okamotto acabou sendo criminalizado pela CPI por lavagem de dinheiro e sonegação. Menos pela convicção do relator do que pela irritação dele com a recusa do presidente do Sebrae de permitir voluntariamente a análise de suas contas bancárias. A justificativa para o indiciamento é um estranho comunicado do Bradesco ao Coaf sobre uma movimentação bancária da empresa Red Star Ltda – EPP, pertencente a Okamotto. Trata-se de uma empresa que comercializa brindes com a logomarca do PT e teria movimentado R$ 654 mil entre maio de 2002 e agosto de 2005. Foi considerado incompatível com o patrimônio e a capacidade financeira do cliente, embora rfletisse um faturamento médio de R$ 8 mil mensais.
O caso mais ridículo foi o da morte do prefeito de Campinas Antonio da Costa Santos. Foi investigado pela CPI porque uma testemunha teria levantado a hipótese de o assassinato ter sido planejado em uma casa de bingo. Essa, aliás, a única relação com o foco da CPI. Mesmo assim, o relatório insiste que o depoimento “não pode ser descartado sem investigação criteriosa”.
E o Toninho da Barcelona, então? Aquele doleiro que mobilizou a CPI até um presídio para acusar o ministro da Justiça e o presidente do Banco Central de lavagem de dinheiro. O depoimento dele virou pó. Resumiu-se, no relatório, a uma referência sobre operações com doleiros de Santo André que recebiam notas miúdas, sugerindo ser dinheiro de empresas de transporte público. E os depoimentos deprimentes de Silvio Pereira e Delúbio Soares? O que dizer do interrogatório de Daniel Dantas? Sequer são mencionados no relatório.
Se tivesse mantido o foco da investigação no motivo original, talvez a CPI pudesse esclarecer um fato nebuloso ocorrido no final do governo FHC. Em 11 de dezembro de 2002, a Secretaria da Receita Federal baixou a Solução de Consulta COANA n° 9, que autorizou a importação de terminais de captação de apostas destinadas a jogos de azar. Equipamentos de vídeo-poquer, vídeo-bingo e caça-níqueis passaram a ser classificados tal como computadores e bens de informática em geral. A autorização durou três meses, até ser baixada a Instrução Normativa 309, em 18 de março de 2003. Foi o suficiente para o escoadouro de milhares de máquinas, conforme denunciado pela revista IstoÉ em dezembro de 2003.
O assunto foi levado à CPI pelo senador Geraldo Mesquita (PMDB-AC), mas ninguém quis esclarecer porque, aparentemente, não envolvia ninguém graúdo do governo ou do PT. O coordenador-geral de Administração Aduaneira, Ronaldo Lázaro Medina, responsável pelo ato que permitiu a importação ilegal, sequer foi chamado para dar explicações. O relator Garibaldi Alves considerou a suspeita de favorecimento da máfia dos bingos grave, e deixou sua estranheza consignada no relatório, mas reconheceu que não teve condições de aprofundar nas investigações por razões políticas. “Na CPI, o que não tem apelo político não vai para frente”, justificou, confirmando o que ficou evidente.
A CPI dos Bingos foi um exemplo de desrespeito à ordem democrática que não deve ser repetido no Congresso Nacional. O direito das minorias investigarem o governo não pode se transformar em uma inquisição sem limites, que, acobertada por uma maioria eventual em um colegiado mínimo, produza um espetáculo de imolação pública de pessoas e instituições. O nome disso é golpe.
Fonte: Agência Carta Maior