Cientistas políticos condenam ataques pessoais contra Lula
Publicado 21/06/2006 16:33
Desde o início da crise política, a oposição vem elevando o tom de voz nas críticas dirigidas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Rapidamente, passou-se da crítica política para os ataques pessoais. O presidente já foi chamado de preguiçoso, beberrão e corrupto, entre outras desqualificações. Um dos principais líderes da oposição, o senador Artur Virgílio (PBSD-AM) já ameaçou bater no presidente. O senador Jorge Bornhausen (PFL-SC) já expressou seu desejo de se “ver livre desta raça”, referindo-se aos partidários do PT. Mais recentemente, o candidato a vice na chapa do candidato Gerlando Alckmin (PSDB-SP), José Jorge (PFL-PE), chamou o presidente da República de “bêbado e preguiçoso”. Conforme foi noticiado por vários meios de comunicação, PSDB e PFL elegeram esse tipo de ataque como tática para a campanha eleitoral, cabendo ao segundo o papel de desferir os ataques mais duros.
A CARTA MAIOR ouviu um professor de Direito Constitucional e um sociólogo sobre essa tática de campanha e suas possível implicações para o sistema político do país. Para Pedro Estevam Serrano, advogado e professor de Direito Constitucional da PUC-SP, o que está sendo atacado não é propriamente a pessoa física do presidente, mas sim as instituições da República. “Esses ataques representam um atentado contra a presidência da República e contra o Estado. É como se o PCC quisesse organizar um partido ou como se alguém quisesse organizar um partido para defender a pedofilia. O limite para essas pretensões é aquele estabelecido pelo Estado de Direito”. Na mesma direção, Gabriel Cohn, doutor em sociologia e professor titular do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo (USP), diz que esse tipo de ataques pessoais, além de afrontar as instituições, manifestam profundo desprezo pela representação popular e pelo voto do povo.
“Alimentar a idéia da disputa eleitoral como um vale-tudo representa um retrocesso muito grande. É preciso falar abertamente que essa postura está ultrapassando todos os limites aceitáveis em uma democracia. Ao se fazer isso, se está reforçando a idéia que afirma que a política é uma coisa suja”, adverte o professor da USP.
PEDRO SERRANO: “ESSES ATAQUES REPRESENTAM UM ATENTADO CONTRA A
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA E CONTRA O ESTADO".
Qual sua avaliação sobre a tática que vem sendo adotada pela oposição de intensificar os ataques contra a pessoa do presidente da República?
PEDRO SERRANO: Sob o ponto de vista do Direito Constitucional e do Estado Democrático de Direito, a democracia e o próprio direito não são elementos ilimitados. Não devemos confundir liberdade com direito de liberdade. A natureza me deu força física para quebrar o carro do vizinho. Tenho a possibilidade de fazer isso se quiser, o que não quer dizer que tenha o direito de fazê-lo. A democracia é o regime que garante uma maior expansão do direito de liberdade, de liberdade de expressão, entre outros. Mas ela se define, entre outras coisas, por um conjunto de procedimentos, como formulou o pensador italiano Norberto Bobbio. E esses procedimentos devem ser observados por todos aqueles que vivem em um Estado Democrático de Direito. No que diz respeito à política, a finalidade de um partido é defender políticas públicas. Quando um partido parte para ataques de natureza estritamente pessoal contra a figura do presidente da República, está fazendo algo bem diferente.
Na verdade, o que está sendo atacado não é propriamente a pessoa física do presidente, mas sim as instituições. Esses ataques representam um atentado contra a presidência da República e contra o Estado. É como se o PCC quisesse organizar um partido, como se alguém quisesse organizar um partido para defender a pedofilia (como aconteceu recentemente na Holanda), ou para defender idéias e práticas nazistas. O limite para essas pretensões é o limite estabelecido pelos preceitos constitucionais, pelos princípios do Estado de Direito. Esse tipo de comportamento, que atenta contra as instituições democráticas pode levar inclusive à cassação do registro dos partidos que o adotarem. Os argumentos "ad hominem" (dirigidos contra a pessoa) são naturais no debate político, mas dentro de certos limites. Não é o reino do vale-tudo. Quando as instituições passam a ser atacadas, cabe à Justiça entrar em ação.
Essa é uma prática aceitável no contexto de uma disputa eleitoral?
PS: Devemos considerar na mesma vala manifestações em defesa de idéias e práticas nazistas e racistas, em defesa da pedofilia, e manifestações dirigidas contra as instituições republicanas. A julgar pelas recentes manifestações de líderes da oposição, eles querem transformar a disputa eleitoral em um festival de xingamentos pessoais dirigidos contra a figura do presidente da República. Mas, neste caso, o principal atingido não é a pessoa física do presidente da República, mas sim a instituição presidência da República. Isso é algo inaceitável do ponto de vista do Direito Constitucional e do Estado Democrático de Direito. Ao fazer isso, a oposição não está exercendo seu direito à liberdade de expressão, mas sim atentando contra as instituições republicanas. Seus partidos não estão defendendo esta ou aquela política pública, mas sim agredindo princípios que são obrigados a defender.
Agora, do fato de existir, em uma sociedade, um grupo que defenda idéias nazistas ou racistas, não segue que toda a sociedade seja considerada nazista ou racista. A Justiça está aí para coibir essas práticas. O que os ataques pessoais dirigidos contra a figura do presidente da República mostram é que nós ainda não temos uma democracia madura. Essa indistinção entre governantes e instituições é típica de democracias não maduras. No caso do PSDB, é um comportamento muito estranho, pois esse partido sempre se mostrou mais equilibrado nesta questão. Parece ser um sinal de desespero diante do desempenho de seu candidato nas pesquisas. O que não faz da prática de ataques às instituições algo menos inaceitável. Crimes e condutas ilícitas são cometidos todos os dias. O Estado e a Justiça estão aí para controlá-los e têm a obrigação de reprimir esse tipo de conduta que vem se repetindo com uma certa regularidade.
GABRIEL COHN: "QUANDO VOCÊ TRATA UM POLÍTICO ELEITO POR
MILHÕES DE VOTOS DE UM MODO INDIGNO, ESTÁ MANIFESTANDO
PROFUNDO DESPREZO PELO REPRESENTAÇÃO POPULAR"
Qual sua avaliação sobre a tática que vem sendo adotada pela oposição de intensificar os ataques contra a pessoa do presidente da República?
GABRIEL COHN: O que é mais assustador nesta estratégica de desferir ataques pessoais à figura do presidente da República é que ela põe em risco as instituições democráticas do país e a própria idéia de democracia. O que está em jogo, portanto, é a defesa destas instituições e da democracia. Há muito tempo que não se via algo assim. Em nossa história recente, os presidentes foram poupados desse tipo de ataque. Mesmo considerando o caso atípico de Collor, ele não chegou a ser alvo de ataques pessoais como o presidente da República sofre agora. Pelo contrário, ele é que se utilizou desse tipo de ataque na campanha eleitoral contra Lula. Creio que se pode dizer que, desde a tentativa golpista contra Getúlio Vargas, na víamos esse tipo de ataque. Que eu me lembre Sarney não foi vítima de campanhas difamatórias, e, muito menos, Fernando Henrique Cardoso. O que é mais perturbador, portanto, é que isso não é típico de nossa cultura política recente.
O caso de Lula é muito peculiar. Houve um momento em que se tentou destruir o partido do presidente da República. Não sendo isso suficiente, partiu-se para o ataque frontal e pessoal ao próprio presidente. O problema é que se ataque não atinge propriamente uma pessoa, mas sim a instituição da Presidência da República. Temos aí uma questão muito delicada. O que pode ser dito a respeito do presidente que não atinge a instituição? Qual é o limite? O que vemos hoje indica que esse limite já foi ultrapassado de longe. O ataque não é político e é por isso que ele acaba sendo dirigido às instituições. O presidente da República está quase sendo apresentado como uma espécie de usurpador do cargo, como alguém indigno de estar onde está, que chegou por acidente onde chegou. Mas não foi por acidente. Ele foi eleito com milhões de votos. Então, a primeira vítima deste processo é a dignidade do processo eleitoral.
Quando você trata um político eleito por milhões de votos de um modo indigno, está manifestando profundo desprezo pela representação popular. Aliás, o grande escândalo político dos últimos meses não foi tratado como tal, nem pela imprensa, nem pela sociedade de um modo geral. Esse escândalo foi o absoluto desprezo pelo voto popular manifestado pelo agora ex-prefeito de São Paulo, que abandonou o cargo para disputar o governo do Estado, desrespeitando o que havia afirmado claramente na campanha eleitoral. Esse é, na minha avaliação, de longe, o maior escândalo. É incrível que não tenha sido tratado como tal e que o candidato em questão tenha mantido praticamente inalterado seu índice de intenções de voto. Isso é muito preocupante. O desprezo pelo voto do eleitor, pela representação popular, quero dizer. Mostra uma fragilidade muito grande da nossa democracia.
CM: Essa é uma prática aceitável no contexto de uma disputa eleitoral?
GC: O que vemos hoje, entre outras coisas, é a emergência de um rancor muito grande. Não se trata apenas da figura individual do presidente. É algo mais profundo. Como estratégia eleitoral, tenho sérias dúvidas sobre a eficácia, sobre a racionalidade deste tipo de atitude. Há um certo desconforto entre a oposição porque a estratégia anterior não deu certo. O que vemos agora é algo que não se esgota em um cálculo eleitoral. E os termos da estratégia não são políticos. O que é preciso ficar claro para todos é que a maior vítima desse tipo de ataque não é Lula. Quem está patrocinando esse comportamento está engendrando algo que será difícil de remediar, algo que diz respeito ao avanço da democracia no país. As pessoas que têm alguma preocupação com esse avanço democrático devem se preocupar muito com o que está acontecendo. Principalmente porque se trata de algo que está passando em branco. Muita gente está preocupada mas não tem ninguém falando sobre isso.
Alimentar a idéia da disputa eleitoral como um vale-tudo representa um retrocesso muito grande. É preciso falar abertamente que essa postura está ultrapassando todos os limites aceitáveis em uma democracia. Ao se fazer isso, se está reforçando a idéia que afirma que a política é uma coisa suja. E isso se torna muito grave quando é feito por figuras eminentes de um partido como o PSDB, que estão colocando gás neste balão, como é o caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por exemplo. Há várias questões aí sobre as quais devemos refletir. Qual a ligação que há entre o ocupante do cargo e o cargo? Entre o modo pelo qual alguém conquista um mandato e o modo como é tratado? Como se dá essa passagem do ataque pessoal ao ataque às instituições?
Precisamos identificar com clareza em que ponto você sai do plano estritamente pessoal para cair no institucional. Ao se pretender desqualificar de tal maneira a figura do presidente da República, é o próprio conceito de representação popular que está em jogo. O que se está fazendo, na verdade, é desqualificando a política, muito mais do um candidato. Esse tipo de comportamento alimenta impulsos autoritários. Cito como exemplo aquela inacreditável declaração do senador Jorge Bornhausen (PFL-SC), sobre a necessidade de “acabar com essa raça” (referindo aos partidários do PT). Esse destempero verbal é inaceitável e o que é mais incrível é vê-lo alimentado pela imprensa. É algo muito assustador. O que temos que ponderar é qual o preço a ser pago por isso. O desgaste a que as instituições vêm sendo submetidas é algo muito preocupante. Quem faz isso, pode acreditar que sua ação se limita ao processo sucessório. Mas isso não é verdade.
Esse tipo de conduta tem efeitos negativos a longo prazo. No contexto atual, quem está sendo desqualificado é o mais forte candidato a ocupar a presidência da República no próximo mandato. Imagino qual a estratégia de longo prazo que está em gestação. Existe também um componente não político neste processo, uma arrogância de classe, arrogância dos poderosos, que não mede conseqüências. Provavelmente, eles se imaginam no centro do poder. No entanto, parecem não perceber que estão se tornando também vítimas potenciais do primeiro aventureiro político que aparecer por aí, com ares de um Napoleão. O que eles parecem não perceber é que, ao alimentar esse comportamento de ataques pessoais sem limites, estão serrando o próprio galho no qual estão sentados.
Fonte: Agência Carta Maior