Premiê de Timor Leste nega que crise tenha raízes étnicas
Em entrevista concedide por telefone ao jornalista Marcelo Ninio, da Folha de S. Paulo, o primeiro-ministro de Timor Leste, Mari Alkatiri, descartou a renúncia, rejeitou as alegações de que a crise atual tem raízes étnicas e reconhece
Publicado 08/06/2006 13:39
Há quatro anos a comunidade internacional –o mundo lusófono em particular– saudou a independência de Timor Leste como uma vitória da liberdade, após os 27 anos de brutal ocupação indonésia que se seguiram à colonização portuguesa. Nas últimas semanas o minúsculo país, pior colocado no ranking do FMI (PIB per capita de US$ 400, último colocado entre 192 nações), mergulhou em uma crise que parecia empurrá-lo para a beira da guerra civil e da desintegração.
O estopim foi uma rebelião de militares demitidos por indisciplina, mas em poucos dias a violência iniciada por eles tomou conta do país, principalmente da capital, Dili, convertendo-se em caos generalizado e dando margem a ataques de gangues que levaram o governo a pedir a intervenção de tropas estrangeiras.
No centro do confronto está o premiê Mari Alkatiri, que aprovou a expulsão dos soldados em março, e cuja demissão é exigida pelos rebeldes para suspender os ataques.
Em entrevista concedida à Folha em português irretocável Alkatiri, 55, descartou a renúncia, rejeitou as alegações de que a crise atual tem raízes étnicas e reconheceu que a herança institucional deixada pela ONU originou alguns dos problemas atuais. A seguir, trechos da entrevista, concedida por telefone, de Dili.
FSP: Muitos culpam o sr. pela atual crise. Há dois dias uma multidão pediu sua saída em Dili. O sr. aceitaria renunciar se disso dependesse a volta à calma em Timor?
Mari Alkatiri – Eu já ignoro essas exigências. Já respondi várias vezes a isso e não vou voltar a responder sempre que um grupo aparece fazendo exigências.
FSP: Mas o que o sr. responde àqueles que o acusam pela crise?
Alkatiri – Para fazer exigências as pessoas têm que fazer acusações. E essas acusações contra mim, me culpando pelos problemas do país, não são novas, vêm desde 2002. Primeiro depois de eu ser nomeado primeiro-ministro, por grupos que estavam à espera de participar do governo de unidade nacional. Se um pequeno grupo aparece com algumas centenas de pessoas em qualquer lugar do mundo e faz uma exigência e tem eco, a culpa não é minha. É daqueles que dão eco a essas exigências de grupos que nada representam.
FSP: A demissão de 590 militares aprovada pelo sr. que foi o estopim da crise, foi um erro?
Alkatiri – Em qualquer parte do mundo quem abandona o quartel tem que ser demitido. Aqui há um fenômeno político que se misturou com essa questão disciplinar. Aí, sim, podemos dizer que se tratou de uma forma demasiadamente superficial da questão. Em termos disciplinares a decisão não poderia ter sido mais correta. Em termos políticos tratou-se de forma pouco profunda da questão.
FSP: E qual seria a análise certa?
Alkatiri – A razão [da crise] é sempre a mesma. Aproximam-se as eleições de 2007 e ninguém tem dúvida de que o partido do governo voltará a ganhar, por uma margem ainda mais larga, então todos aqueles que continuam com ambições de mudar o governo perderam suas esperanças. Então, a violência é o caminho. Primeiro, para manchar a imagem do governo e ao mesmo tempo do partido. E a partir daí tentar a última chance para derrotar o governo.
FSP: No auge da violência, o sr. disse que havia uma tentativa der golpe em movimento. Quem estaria por trás desse movimento?
Alkatiri – As caras visíveis não vale a pena eu dizer quem, todos sabem quem são. As invisíveis vamos ver se conseguimos descortinar daqui para rente.
FSP: As visíveis são os militares rebelados. E as invisíveis?
Alkatiri – As visíveis são muitas, desde os ex-militares até os políticos que se escondem atrás deles. As invisíveis nós vamos descortinar.
FSP: Uma outra queixa contra o seu governo é que o grupo formado em torno do sr., que permaneceu boa parte do período da ocupação indonésia fora do país, defende um projeto que não atende aos anseios de quem ficou no país, gerando ressentimentos. Há essa discrepância?
Alkatiri – É uma queixa falsa, pois no meu governo só 20% estiveram fora do país. E se esse ressentimento existe, as pessoas insatisfeitas com meu governo não deveriam ter o receio de ir às urnas em 2007 para derrubar o governo por vias democráticas, não com violência.
FSP: Há também alegações de entre as raízes da crise estão divergências étnicas entre o leste e o oeste.
Alkatiri – Tenho certeza de que a crise é profundamente política. Uma tentativa de mudar o governo sem levar em consideração o que diz a Constituição, o que dizem as leis, porque não se tem coragem de respeitar o estado de direito e esperar as eleições. Se o problema fosse étnico já teríamos tido um banho de sangue, porque seriam centenas de milhares de pessoas em confronto, como na região dos grandes lagos, na África.
FSP: Em artigo publicado no caderno Mais! (da Folha de S.Paulo) no último domingo dois pesquisadores brasileiros afirmam que a adoção do português como língua oficial, apesar de ser falado por menos de 5% da população de Timor Leste, também gerou ressentimentos. Como o sr. vê a questão?
Alkatiri – Quando se adotou o português em Angola e Moçambique também não era falado por mais de 5% ou 6% da população e nunca foi fonte de problemas. A verdade é que se realmente isso se tornou um problema é porque outros interesses que são estranhos ao país tentaram usar isso para criar problemas.
FSP: Há quatro anos o mundo saudou a fundação de Timor Leste como uma vitória da liberdade. Agora o país parece estar se desintegrando em seu próprio caldo de divergências. A guerra civil ainda é um risco?
Alkatiri – Eu nunca acreditei na possibilidade de guerra civil em Timor Leste. O povo não quer mais guerras. Para evitar isso é que nós pedimos a intervenção de forças internacionais. Agora muito menos acredito que possa haver uma guerra civil. Há uma disciplina no seio do partido do governo, a liderança conseguiu conter que os simpatizantes do governo saíssem às ruas e se confrontassem com as minorias. E continuamos a conter isso. Ainda ontem (terça-feira) houve uma manifestação com poucas centenas de pessoas. Se não tivéssemos contido os apoiadores do governo teríamos no mínimo 5, 10 mil pessoas nas ruas para fazer contramanifestação. Até aqui temos conseguido fazer isso e evitar um derramamento de sangue.
FSP: E uma possível guerra civil.
Alkatiri – Claro.
FSP: O chanceler de Portugal disse que divergências entre o sr. e o presidente Xanana Gusmão estavam ajudando a piorar a crise. Como estão suas relações?
Alkatiri – Como se sabe, hoje em dia a informação pode criar fantasmas. Esse é um dos fantasmas que a mídia criou: na base da crise estariam divergências entre o presidente Xanana e eu. Nada é mais falso. O que se pretende é criar uma razão política profunda para a crise e a melhor forma é colocar o presidente contra o primeiro-ministro. Isso é falso, desminto categoricamente.
FSP: O presidente Xanana assumiu atribuições que eram do sr., como a segurança. Isso não teria reforçado a suspeita de divisão?
Alkatiri – O presidente Xanana Gusmão, em conjunto comigo, com o governo e com o Parlamento, definiu o mecanismo de coordenação mais estreito entre os órgãos de soberania para a área de Defesa. Isso é constitucional. Não tem nada a ver com retirar poderes. Naturalmente que alguns círculos preferem ver isso como parte de uma luta de poder. Mas seu eu parto do princípio de que não há luta de poder entre nós, eu sou o primeiro a defender maior coordenação entre as instituições, não me sinto reduzido em nada.
FSP: A fragilidade institucional deixada pela administração da ONU facilita o surgimento de crises? Olhando para trás o sr. acha que a reconstrução do país deveria ter sido diferente?
Alkatiri – De modo alguma. Acho que aqui e acolá [a reconstrução] poderia ter sido melhor. É preciso não esquecer que este país teve um conflito bastante longo e embarcou numa política de reconstrução nacional extremamente ousada e abrangente. Nossa polícia foi constituída pelas Nações Unidas, com toda a filosofia da ONU, em que todos são cidadãos, todos devem ter a possibilidade de ser recrutados. Não importa se lutaram contra a independência ou a favor da independência no passado, todos têm os mesmos direitos. E foi essa instituição que nós herdamos. Naturalmente que todos os cidadãos têm direitos, mas em qualquer parte do mundo há critérios para definir a escolha dos membros para as forças de defesa e segurança, e mesmo para os quadros diplomáticos. São três setores onde os critérios são geralmente mais rigorosos, para poder garantir a solidez do Estado. Aqui não, nós optamos pela reconciliação, pela pacificação do território, e avançamos com critérios mais abertos. Mas isso foi a herança que nós recebemos das Nações Unidas e nós procuramos trabalhar da melhor forma possível com ela. Há espaço para mudanças. As Nações Unidas falharam e nós falhamos por termos respeitado a liderança [da ONU].
FSP: Hoje o sr. acha que seria melhor não ter respeitado a liderança da ONU?
Alkatiri – Se tivéssemos mudado algo teríamos sido imediatamente condenados por violação dos direitos humanos.
FSP: A pressão para que o sr. renuncie continua. Em que circunstâncias o sr. aceitaria deixar o cargo?
Alkatiri – Esqueça essa pressão, porque eu ignora-a. Renúncia eu não aceito. Ir para as eleições e meu partido perder tudo bem. Isso eu aceito porque sou um democrata.
FSP: O sr.tem mantido contato com o governo brasileiro, gostaria que o Brasil ajudasse de alguma forma?
Alkatiri – Mantemos contato através do embaixador aqui e da CPLP. O Brasil é um país irmão, um país amigo, com história comum e identidade cultural, por isso uma participação do Brasil em situações difíceis como esta seria ótimo. Temos que encontrar o formato legal para isso.
FSP: Tropas brasileiras seriam bem-vindas?
Alkatiri – Neste momento achamos que tropas talvez já não sejam necessárias. Estamos pensando em uma polícia robusta, forte, para a segunda fase da estabilização. Nisso o Brasil talvez possa ajudar.
FSP: O sr. fará um pedido formal ao Brasil?
Alkatiri – Estamos em contato com a ONU para ver qual o melhor formato para isso.
FSP: O comandante das tropas australianas enviadas a Timor disse que alguns dos ataques foram orquestrados. Quem estaria por trás? A Indonésia?
Alkatiri – Seria preciso perguntar a ele, mas não há dúvida de que as ações foram muito bem planejadas e muito bem executadas. Mas não acredito que o governo da Indonésia esteja por trás disso. A Indonésia tem sido solidária com Timor Leste.
FSP: Quais as lições desta crise?
Alkatiri – Todos nós aprendemos muito com essa crise e eu espero que possamos fazer o melhor com esse aprendizado. A governação nesses quatro anos tem sido saudada de forma unânime pela comunidade internacional, por instituições como Banco Mundial e FMI, uma governação transparente, competente. No entanto, falhamos em alguma coisa para isso ter acontecido. Precisamos ter modéstia suficiente para ver onde falhamos e corrigir.
FSP: Qual foi a principal falha?
Alkatiri – Minhas idéias são minhas, prefiro partilhar com outros para que não pensem que a minha é a única verdade.
Fonte: Folha Online