Indígenas sofrem com escalada de discriminação e mortes
Relatório sobre a violência contra os povos indígenas nos últimos dez anos retrata o agravamento de assassinatos e outras formas de agressão, acompanhadas de uma ação organizada crescente de discriminação na socied
Publicado 31/05/2006 20:41
“Seria melhor que [o lançamento do relatório] não acontecesse”, desabafou Dom Odilo Scherer, secretário-geral da CNBB, na coletiva de imprensa organizada para divulgar o documento. Para ele, a denúncia pública com base nos registros de casos de violência não seria necessária caso houvesse pleno atendimento dos direitos indígenas. Scherer classificou o documento como “alerta à consciência nacional” que atesta que o “passado de atrocidades continua acontecendo”. “O Brasil só será um País justo quando fizer justiça aos seus primeiros moradores”.
Organizadora do relatório, a antropóloga Lúcia Helena Rangel, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), revelou que o trabalho “foi chocante”, principalmente para quem estuda a vida cotidiana, a riqueza cultural, a religiosidade e a relação com a terra dos povos indígenas. Apesar das leis nacionais e das convenções internacionais assinadas pelo Brasil, ela não tem dúvida: “Há ainda no Brasil uma enorme hostilidade contra a população indígena”, marcada por uma “ação organizada antiindígena” que envolve a participação de meios de comunicação, de fazendeiros, de detentores do poder político-econômico, etc. que desconsideram os direitos indígenas, principalmente no universo local dos municípios.
A concentração da violência no Mato Grosso do Sul não encontra paralelos no País. Os números relacionados aos conflitos ligados a direitos territoriais servem de referência. Dos 26 casos relatados em 2003, 23 se deram no Mato Grosso do Sul, bem como 28 dos 41 contabilizados em 2004 e 17 dos 32 casos do levantamento referente a 2005. O estado também é o lastimável campeão em outras categorias de violência: número de assassinatos, tentativas de assassinatos, suicídios, além de inúmeros problemas de desnutrição e de índices elevados de violência sexual.
A dramática situação do Mato Grosso do Sul caracteriza-se por terras demarcadas superpovoadas: quatro áreas – Terra Indígena (TI) Dourados, TI Caarapó, TI Poorto Lindo e TI Amambaí – que somam 10 mil hectares abrigam uma população aproximada de 27 mil indígenas do povo Guarani-Kaiowá. De acordo com a professora Lúcia, esse processo gradual de asfixia teve início nos anos 70 – com o processo de avanço dos núcleos urbanos que passou a pressionar e encurralar a população indígena dentro de áreas tradicionais. Com esse confinamento, a tensão entre grupos familiares dos próprios indígenas foi se agravando. “Não há espaço para plantar, para criar galinha, para espaços de sociabilidade e convívio com a natureza”, descreve. “Eles estão disputando um espaço que não existe”.
O quadro no estado, sustenta a antropóloga, pode ser comparado ao de um genocídio: morte, dependência de bebida alcoólica, desnutrição, multiplicação de crimes por motivos banais, prostituição. Em busca de renda, os indígenas da região acabam em subempregos nas usinas, nas fazendas e no meio urbano, que sobrepuja ainda mais o sentido de marginalidade. “Toda a política pública do Estado se restringe ao assistencialismo – distribuição de cestas básicas, materiais escolares e até sementes. Mas aquilo que a população necessita, que são as terras tradicionais deles, não têm”. Ela detecta uma “cegueira muito grande da sociedade e das instituições” e não esquece de mencionar o contraste enfrentado no meio rural onde se localizam as terras indígenas. As populações indígenas, realça, convivem com padrões poderosos da produção rural, beneficiados por grande riqueza. Para esse segmento do agronegócio, o modelo de desenvolvimento que sufoca os indígenas como fato consumado. Enquanto que os povos originários respeitam outra noção de tempo e esperam pacientemente que o modelo mude. “É uma população resistente. Preserva tradições religiosas e valores relacionados com a educação de grande riqueza”.
Demarcações e isolados – Essa escalada da discriminação étnico-racial que determina o grau de violência que se abate sob os indígenas teve um marco. No ano de 1997, Galdino Jesus dos Santos, do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, foi assassinado por jovens de Brasília que atearam fogo em seu corpo. Desde então, tem-se verificado uma mudança do perfil do agressor de indígenas, reforçada pela transição do governo Fernando Henrique Cardoso para o governo Lula. Durante o período em que FHC esteve no poder, a violência praticada por agentes do poder público – não só pela polícia, mas também por funcionários de órgãos oficiais – era mais recorrente. A partir de 2003, explodiram os crimes de pistolagem.
O governo atual, segundo o vice-presidente do Cimi Saulo Feitosa, pode ser caracterizado ainda pela paralisação das demarcações de terras indígenas. “A violência é inversamente proporcional ao número de demarcações. Diminuíram as demarcações e a violência cresceu”. De 1995 a 2002, durante o governo FHC, a média de assassinatos de inígenas foi de cerca de 20 pessoas por ano. Em 2003, 2004 e em parcela de 2005, foram registrados 122 mortes, o que elevou a média para mais de 40 mortes/ano. Não há tendência de redução desses índices de violência, segue Feitosa, “porque não há sinais de mudança na política indigenista”. Além dos dados, ele cita ainda um agravante: muitas comunidades estão assumindo a sua identidade indígena e isso aumenta ainda mais a demanda por terras.
Juntamente com o agravamento do racismo dirigido aos índios, o vice-presidente do Cimi apresenta o risco grave de extermínio de povos isolados como outra novidade relevante do documento. “Eles vivem uma situação de invisibilidade. São vítimas de violência que não está sendo nem registrada”.
Francisco Loebens, missionário do Cimi na Região Norte, quantifica em cerca de 60 os povos isolados espalhados principalmente na região Norte do Mato Grosso, em Rondônia e no Sul do Amazonas. “Eles procuram um espaço autônomo. Não se sujeitaram, mas não estão livres: sofrem com doenças e com o risco permanente de massacre”. A extinção permanente ameaça 17 etnias. O conselho planeja formar uma equipe especial para reunir informações mais qualificadas sobre esses povos.
A pesquisa contribui para o movimento internacional de direitos humanos porque revela fatos escondidos (situações dramáticas e suas causas) e permite novos entendimentos por trás do grande número de mortos. Essa é a opinião de Tim Cahill, da Anistia Internacional, que vem trabalhando especialmente com o cruzamento entre pobreza/exclusão com a violência. Nesse contexto, a entidade considera a negligência do governo com relação ao acesso aos territórios tradicionais como fator determinante das condições precárias a que estão submetidas os povos indígenas.