118 anos de abolição: o que há para comemorar e conquistar?
O capitalismo no seu processo de reprodução gera grandes desigualdades sociais; desemprego, fome, violência, concentração de renda, degradação do meio ambiente e da qualidade de vida etc.
Publicado 24/05/2006 20:55 | Editado 04/03/2020 17:06
As pessoas de ascendência africana são encontradas em números desproporcionais dentre os mais pobres, enquanto a população branca constitui a grande maioria dos ricos ou dos que possuem melhores condições de vida. Isso demonstra que a pobreza e a riqueza no Brasil têm cor e que o racismo é um dos elementos fundamentais da nossa estrutura de classe.
Denominado por Hasenbalg e Silva de “ciclo cumulativo de desvantagens”, essa desigualdade sócio-racial-econômica tem a sua raiz na escravidão dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. A população negra era vista como mero instrumento de produção da riqueza, considerada como mais um bem, dentre tantos, dos proprietários rurais escravocratas. Os escravizados trabalhavam até 18 horas por dia e a expectativa de vida na lavoura era entre 10 a 15 anos, enquanto na mineração não ultrapassava os sete anos. Submetidos aos mais deploráveis castigos e torturas, era-lhes negado a própria condição humana.
Com a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888, os escravizados(as) são libertos das correntes e podem comemorar a apropriação de seu próprio corpo, até então propriedade do escravizador. Uma luta de séculos, concretizada através das inumeráveis fugas, levantes e constituições de quilombos parecia chegar ao fim. Entretanto, as esperanças de um mundo melhor sucumbiram perante a sociedade capitalista brasileira que vinha surgindo, transformando-se numa grande atrocidade, levando-os ao desespero e, na maioria das vezes, à marginalidade.
Um estudo recente publicado na Revista Nossa História por Priscila Leal em maio deste ano, traz outra versão em relação à atuação da Princesa Isabel. Uma carta ao Visconde de Santa Victória, considerada inédita e com fortes indícios de autoria da Princesa Isabel, revela atitudes ousadas, pois defende a indenização aos ex-escravizados, a reforma agrária e o voto feminino. São elementos históricos importantes, porém necessita-se de maiores investigações, inclusive para não suprimirmos a inegável importância da luta e resistência dos escravos pela Abolição.
Atualmente, o lugar social ocupado pela população negra demonstra que quase tudo ainda está por ser conquistado. Na Síntese dos Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2005 foi explicitado que a taxa de desemprego entre os negros é maior que entre os brancos. Os empregados negros ganham menos que os brancos, mesmo possuindo idêntica função e qualificação profissional. As desigualdades étnico-raciais no sistema educacional, principalmente no ensino superior, são inquestionáveis. A concentração desproporcional de pessoas negras em prestação de serviços menos qualificados e remunerados é gritante. São imensas as disparidades na distribuição de renda entre brancos e negros etc.
Apesar de muito a conquistar, podemos celebrar algumas vitórias sócio-políticas e ideológicas. O movimento negro organiza-se e fortalece-se cada vez mais na luta anti-racista. O governo federal, a partir da eleição do Presidente Lula, criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e estabeleceu algumas medidas concretas para correção das desigualdades étnico-raciais no sistema educacional. Algumas comunidades remanescentes de quilombos têm conquistado a titularidade de suas terras. O debate sobre o racismo, até então emudecido, ganhou a ordem do dia na sociedade com as políticas de ações afirmativas. Em janeiro de 2003, aprovou-se a Lei 10.639, tornando obrigatório o ensino de História da África e Cultura Afro-brasileira nas escolas públicas e privadas.
Assim, a luta, a resistência e a cultura negra como um todo, negadas durante séculos, começam a ter o real e digno reconhecimento como formadoras da sociabilidade e nacionalidade brasileira, desconstruindo os mitos de inferioridade negra, tão hábil e ideologicamente erguidos em nosso processo histórico de dominação de classe.
*Maria Clareth Gonçalves Reis é doutoranda em Educação na UFF, pesquisadora sobre a permanência da população negra no ensino superior pelo MEC/UNESCO e filiada do PCdoB.
*Abilio Maiworm Weiand é fotógrafo e pós-graduado em Fotografia como instrumento de Pesquisa nas Ciências Sociais e Secretário de Organização do PCdoB/Petrópolis.