Para Fátima Oliveira, descaso acentua mortalidade materna

Em entrevista ao "Boletim PCRI-Saúde", a médica Fátima Oliveira declarou que "as mulheres só morrem de parto porque os governos permitem, na medida em que 96% das mortes maternas são preveníveis e evitáveis". Fátima

Qual é a situação das mulheres brasileiras em relação à mortalidade materna e neonatal?
A Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (RFS – Rede Feminista de Saúde), desde a sua fundação, em 1991,  tem o tema da morte materna como uma de suas prioridades de ação política. De 2003 para cá a entidade reforçou o protagonismo de articulação política no campo da morte materna junto ao movimento feminista em geral, e ao movimento negro em particular, com destaque às causas preveníveis e evitáveis, entre elas o abortamento inseguro.

Entretanto a morte neonatal em si, isoladamente, só foi pautada por nós muito recentemente, a partir da elaboração do Pacto Nacional pela Redução da Morte Materna e Neonatal (2003).

Não se trata de não considerarmos a morte neonatal um importante problema de saúde pública que precisa ser enfrentado com seriedade. É que a vida tem mostrado que abordar a morte de crianças, em qualquer idade, ao mesmo tempo e na mesma política que a morte materna, contribui para a tendência de a morte materna ser relegada a um plano irrelevante, na medida em que a morte de crianças comove mais,  desde gestores à sociedade. Um exemplo da irrelevância da morte materna diante da  neonatal, ou mesmo da infantil, é que nas  cidades ou nos estados, onde não há uma presença forte de feministas nos “Comitês de Prevenção da Morte Materna”, ou onde não existe tradição de debate e luta política nos referidos Comitês, eles tendem a se denominar “Comitês pela Vida”. Ao mesmo tempo, há drenagem prioritária de recursos para a investigação da morte neonatal ou  infantil!

Sim, é que as forças que centram seus trabalhos na mortalidade infantil, prioritariamente a CNBB (leia-se: Pastoral da Criança), são  muito fortes politicamente, no Ministério da Saúde e nos estados, na disputa dos recursos  que, em geral, são insignificantes para tanto. E então, a morte materna acaba sobrando…

Ou seja, a estratégia de um mesmo Comitê  trabalhar morte materna, neonatal e infantil é equivocada na atual conjuntura cultural do país. Precisamos estar atentas. O tempo todo.

No Brasil em 2003, a Rede Feminista de  Saúde reavivou a discussão sobre banalização e naturalização da morte materna sob o lema: “Em cada cidade, um Comitê de Prevenção da Mortalidade Materna: dever do Estado, compromisso da sociedade”, por considerar que, sob vigilância concomitante das próprias instituições e da sociedade civil, serviços e profissionais de saúde respondem positivamente.Além disso, os Comitês têm como objetivos: “identificar a magnitude da mortalidade materna, suas causas e fatores determinantes; propor medidas que previnam novas mortes; melhorar as informações sobre óbitos maternos; e avaliar a assistência  prestada à gestante.”

Em 2004 centramos nossos esforços no 28 de maio, Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher. Com o tema da morte materna,  dando visibilidade à morte materna em mulheres negras, publicamos e distribuímos em todo o território nacional um folheto com o lema: “Prevenção da Mortalidade Materna: Um compromisso político e ético de governos e da sociedade”. O destaque  do folheto foram os Diferenciais Raciais nos Perfis e Indicadores de Mortalidade Materna no Brasil.

Que avaliação a Rede Feminista faz do Pacto Nacional pela Redução da Morte Materna e Neonatal?
Por compartilharmos da opinião que todas as mortes precoces revelam a omissão dos governos, em todas as esferas (federal, estadual e municipal); analisamos a morte materna como uma morte precoce, que ocorreu antes do tempo.  E mais, para a RFS as mulheres só morrem de parto porque os governos permitem, na medida em que 96% das mortes maternas são preveníveis e evitáveis. Em outras palavras, a morte materna é patrocinada pelos governos.

O Pacto é uma ação política ousada visando  melhorar os registros dos óbitos maternos e neonatais, conhecer sua real magnitude e, ao  mesmo tempo, enfrentar as causas passíveis de resolutividade nos serviços de saúde.

Sabemos que a morte materna e a neonatal  são arquitetadas bem antes de chegarem aos serviços de saúde, mas a área de saúde pode  em muito contribuir para a preservação da vida com qualidade e dignidade.

Por isso, lutamos muito para que o Pacto  pela Redução da Morte Materna fosse uma política e a Redução da Morte Neonatal fosse outra, cada uma com seus recursos próprios. Todavia não tivemos força política para tanto no processo de construção do Pacto e nos rendemos ao que era possível construir naquela conjuntura política. Mas reconhecemos que o Pacto é, inegavelmente, uma política de grande magnitude e que revela um inequívoco compromisso político do  atual governo com o combate à mortalidade materna e a neonatal. E é a mais importante estratégia construída por um governo latino-americano em todos os tempos em relação à morte materna.

Para a RFS as mortes maternas e as neonatais possuem responsáveis. É nesse sentido que o Pacto representa um instrumento político de vulto. Enfim, hoje podemos dizer que temos propostas e propósitos governamentais no Brasil em relação ao combate à morte materna. Há uma diretriz  política (proposta) e há recursos (propósito).  O Ministério da Saúde elaborou as diretrizes nacionais; alocou recursos substanciais; tem desenvolvido uma agenda de formação de profissionais da saúde, em todo o país, e  realizado um esforço descomunal junto aos secretários municipais e estaduais de saúde para que a política se viabilize e chegue no  cotidiano da vida das mulheres. Contudo temos problemas no âmbito dos estados e dos municípios, assim como no campo do controle social.

Efetivamente os estados (leia-se: Secretarias de Estado da Saúde), e os municípios, (leia-se: Secretarias Municipais de Saúde), não  têm respondido coletiva e adequadamente ao desafio.

Ao mesmo tempo, percebe-se uma dificuldade objetiva, no âmbito local (estados e municípios) do movimento de mulheres no controle social desta política. Temos a  opinião de que, enquanto as filiadas da RFS, as ativistas do movimento de mulheres  negras, os Conselhos Estaduais, Municipais  de Mulheres e de Saúde, não encararem com a prioridade devida, o monitoramento  e o controle social do Pacto, ele não se concretizará em sua plenitude e seus beneficios não se concretizarão na vida das mulheres.

E então, sem essa ação planejada e cotidiana de monitoramento e de controle social, vai demorar muito para que o Pacto produza os efeitos desejados e esperados. Eis o nosso desafio no momento para reduzir a morte materna a patamares aceitáveis que não signifiquem descuido e crueldade de nosso país para com a vida das mulheres.

Em artigo publicado no jornal O Tempo,  de Belo Horizonte, em maio de 2003, a senhora explicitou a necessidade de inclusão do Quesito Cor no documento do Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal. Como o governo tem respondido a este apontamento?
Escrevi, que por se tratar de um documento que coloca os pingos nos ‘is’,  tanto na morte materna como na neonatal, sentimos falta do ‘Quesito Cor’, na medida em que se trata de um tópico que consta   no atestado de óbito, mas ainda não foi devidamente absorvido pelos profissionais de saúde como dado epidemiológico essencial.  Durante as discussões o acordado foi que o Quesito Cor terá o destaque que merece.

A demanda gerada pela necessidade do  “Quesito Cor” no Pacto, foi suficientemente reparada, em minha opinião, já que a  Área Técnica de Saúde da Mulher tem  respondido positivamente às bandeiras históricas das mulheres negras com as seguintes ações: introdução do exame para  detecção da Anemia Falciforme nos exames de pré-natal; elaboração e publicação do “Manual Perspectiva da Eqüidade na  Atenção às Diferenças no Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal  – Atenção às Mulheres Negras”; inclusão do  Quesito Cor nos formulários do Ministério da Saúde.

Eu, pessoalmente, entendo, depois de  tantos anos na peleja na área de saúde da população negra em nosso país, que as mulheres negras são as beneficiárias mais diretas da ação universal do Pacto, pois são as que mais morrem da primeira causa de  morte materna no país: toxemia gravídica, que resulta da hipertensão arterial não tratada durante a gravidez.

Arrisco ainda dizer que, com a implementação do Pacto, só a médio prazo é que teremos dados suficientes para evidenciar em que aspectos as mulheres negras precisam de “algo mais”, de um olhar e uma ação mais focada, do que a que está proposta  atualmente, de uma forma mais precisa.

É muito comum ouvir em seminários e outros espaços que a taxa de mortalidade materna é seis vezes maior para as mulheres negras, em comparação às mulheres brancas, entretanto o Pacto Nacional não prevê uma redução dos índices que leve isso em consideração. Qual é sua opinião sobre isso?
A afirmativa de que “a taxa de mortalidade materna e neonatal é seis vezes maior para as mulheres negras,  em comparação com as mulheres brancas” ,  carece de base de sustentação. Há alguns meses temos ouvido tal afirmativa.

Porém, desde a primeira que a ouvi indaguei  a fonte do dado, pois eu e a própria RFS o desconhecemos. Quem anuncia o dado não menciona a fonte. E depois, a crueldade da morte materna no Brasil e o recorte racial/étnico nela já são degradantes que não precisamos inventar dados que anunciem mais desgraça e omissão dos governos.

Especificamente para responder a esta  pergunta, consultei a Drª. Maria José Araújo, coordenadora da Área Técnica de Saúde da  Mulher do Ministério da Saúde, e Alaerte Leandro Martins, pesquisadora que tem dedicado, pelo menos, os dez últimos anos, ao estudo e pesquisa da morte materna com recorte racial/étnico. Compartilho aqui a resposta de ambas: “Não há estudo  nacional que tenha produzido o dado que permite afirmar que ‘a taxa de mortalidade materna e neonatal é seis vezes maior para  as mulheres negras, em comparação às mulheres brancas’”. Logo, precisamos, de uma vez por todas, deixar de anunciar um  dado que não existe. Todavia, não podemos  desconhecer que há uma demanda real para que seja produzido um dado nacional  sobre a dimensão racial/étnica da morte materna e na neonatal.

Alaerte Leandro Martins afirmou ainda que os dados mais atuais sobre o assunto encontram-se em material produzido  por ela, com financiamento do PCRISaúde,  (disponível em: www.redesaude. org.br/html/folheto28maio04.html). O  folheto distribuído nacionalmente por ocasião do 28 de maio de 2004, foi denominado: Prevenção da Mortalidade Materna: Um compromisso político e ético de governos e da sociedade no tópico, Diferenciais Raciais nos Perfis e Indicadores  de Mortalidade Materna no Brasil.

Apesar das dificuldades identificadas neste estudo, como a subnotificação de óbitos maternos, falta de informação sobre raça/cor, além do elevado número de nascidos vivos de raça/cor ignorada, encontrou-se diferencial na mortalidade materna das mulheres negras (pretas + pardas) quando comparada as brancas.

Os dados confirmam os diferenciais raciais na mortalidade materna no Brasil. Em suma: “o estudo dos diferenciais raciais/étnicos”, que dispomos hoje no  Brasil, como bem disse Alaerte Leandro  Martins (em 02.02.2006), em linhas   gerais, “revela que em 3 cidades da Bahia  (Alagoinhas, Feira de Santana e Salvador) as pretas morrem em média 3 vezes mais que as brancas e no Paraná, as pretas  morrem em média 8 vezes mais que as brancas”. Eis os dados que temos hoje que não nos permitem extrapolar para a  dimensão nacional. Não esquecendo que também nesta pesquisa foi considerado a subnotificação e subinformação do ‘Quesito Cor’ nos nascidos vivos e no óbitos maternos”.

Boletim PCRI-Saúde. Ano 2 número 3. Saúde da População Negra na Agenda Pública
Brasília, Maio de 2006.