Cláudio Lembo aumenta o tom das críticas ao PSDB

Em nova entrevista, ao Terra Magazine, o governador de São Paulo faz críticas ainda mais incisivas que as publicadas pela Folha de S. Paulo. Ele argumenta que as lideranças do PSDB não foram solidários durante a crise da semana passad

O governador de São Paulo, Cláudio Lembo, 71 anos, é homem dotado de apurado e contumaz senso de humor. Lembo foi presidente da Arena-SP, foi do PP de Tancredo Neves, secretário de Jânio Quadros e é um dos fundadores do PFL. Cláudio Lembo é político arguto. No dia da posse, para um mandado de 8 meses, disse ter chegado ao Palácio dos Bandeirantes "por obra do acaso". O acaso, certamente, levou-o a estar à frente do governo de São Paulo quando a organização criminosa denominada PCC decidiu-se por atacar as polícias do Estado – há uma semana dessa sexta-feira. Mas não é o acaso que tem guiado as ações, e as palavras, do governador Lembo.

Quinta-feira, oito da noite. Na véspera, em entrevista à colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, o governador havia mirado, direto, no que denominou "burguesia" brasileira, e paulistana. Taxou-a de "cínica", "minoria branca, má e perversa", que trata mal seus serviçais.
A Terra Magazine, em entrevista exclusiva, Lembo disse viver um momento de "catarse" depois de ter sido instado "pela burguesia" – também "hipócrita", ele acrescenta – a valer-se do "o olho por olho" na reação aos ataques do PCC. Sem citar o nome, diz que não quis ser o responsável por um novo Carandiru.
A propósito da mortandade, ampliada desde o início do contra-ataque da policia e já ultrapassados os 150 corpos, assegura: – Cada um que caiu terá um inquérito específico para apurar as causas da morte, e tudo será transparente.
Na véspera, de passagem, Lembo havia ironizado seu antecessor e candidato à presidência da República, Geraldo Alckmin (PSDB), o candidato a sucedê-lo, José Serra (PSDB) e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O primeiro só ligou "duas vezes" durante a crise, o segundo sequer telefonou e o terceiro criticou um acordo que o governo teria feito com o PCC.
Nesta quinta-feira, na conversa com Terra Magazine, Cláudio Lembo não disse nada ao acaso. Contou porque decidiu falar. E ampliou o tom das críticas contra o comportamento do alto tucanato paulista na crise enfrentada pelo Estado.
Em resposta a uma provocação, disse que como os pulsos telefônicos estão caros, se Alckmin ligasse a cobrar ele, governador, "pagaria" a ligação.
À lembrança de que "vestido" talvez não seja uma expressão a ser usada no Palácio dos Bandeirantes (por recordar os 400 vestidos, ou 40 peças, recebidas por Lu Alckmin), estocou novamente: – Eu nunca me equivoco no que eu falo. Eu sempre penso antes de falar.
Lembo pensou antes de confirmar não ter recebido nenhuma ligação do ex-prefeito da cidade atacada, e candidato a governar o estado, José Serra: – Pode ser um problema de amnésia, eu compreendo.(…) Ele está nos Estados Unidos(…) Eu não sei o que está acontecendo. Talvez ele não tenha acesso a meios de comunicação brasileiros, e não viu, não assistiu. Ou não quis eventualmente se envolver em episódio tão amargo e triste. Quis se preservar.

Lembrou ainda, quando perguntado, que Fernando Henrique segue em Nova York e também ainda não telefonou. Lembo admitiu que suas ironias ante a "amnésia telefônica" do triunvirato tucano são uma cobrança à responsabilidade moral para com a população de São Paulo: – Claro que sim. O brasileiro é, antes de tudo, insolidário.

O governador, que na quinta-feira teve seu amigo José Jorge (PFL-PE) indicado para ser o vice na chapa de Alckmin, confirmou ainda ter plena consciência do potencial político explosivo de suas críticas a Alckmin, Serra e Fernando Henrique:

-São ironias, nada pessoal. São críticas de conteúdo moralista.
Críticas que não poupam o seu PFL. Lembo contou que depois de sua primeira entrevista recebeu cumprimentos apenas, basicamente, da esquerda. Do PFL nacional ligaram a senadora Roseana Sarney e o presidente Bornhausen, "que certamente não concorda com o conteúdo", mas reconhece seu direito a dizer o que pensa. Sobre os caciques do PFL, disparou: – Eles estão refletindo. Vão me ligar quando desembarcarem… daqui a 500 anos.

O governador novamente atacou a burguesia. Disse ser um pequeno burguês e cobrou das senhoras e senhores da sociedade que o criticaram nesses dias: – Não vi nenhum deles no enterro do pobre bombeiro.
Disse ainda, a propósito de quem está preso e de tantos que estão fora da cadeia:

– Eu vejo pessoas ostentando suas casas luxuosas apesar de terem feito grandes falcatruas e outros estão presos, né?
Para o ex-reitor do Mackenzie as universidades erraram ao fechar suas portas durante a crise e foi "assustador" ver também a sociedade sem capacidade de reação.
Governador, o senhor, numa entrevista, abriu a alma… foi o seu 18 Brumário?
É perigoso, porque a primeira vez foi heróica, a segunda vez foi uma falha. Foi o próprio Karl Marx quem disse isso, por isso eu estou preocupado.
O senhor, na entrevista à colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, disse coisas que quando alguém diz ou escreve é normalmente rotulado como "da esquerda" ou – mais antigamente – de "petista"…
O que mostra que a dicotomia esquerda-direita está vencida. O que disse é a expressão da cidadania, e como cidadão tenho que dizer aquilo que é importante para a reflexão.
Certo, mas a raridade é alguém na sua posição, e ainda mais sendo do PFL que, como o senhor mesmo diz, chegou ao Brasil e ao poder junto com Pedro Álvares Cabral, dizer que a burguesia é má, perversa, cínica, que explora seus serviçais e não quer pagar a conta da miséria que se esmerou em criar…
Mas isso tem que ser dito, e os partidos políticos têm todo o direito, e dever, de ser reciclados, e uma forma de reciclar o partido político é dar esses choques de realidade. Claro que no meu partido muitos não gostaram; ninguém censurou, e isso é muito bonito e muito elegante. É claro que nem sempre é a linha efetiva do PFL. Mas o PFL também tem que ter um choque de realidade.
Até o meio da tarde, por exemplo, o clipping do PFL e a página noticiosa do PFL, assim como a do Senado, não haviam sequer registrado o que o senhor disse…
É normal. O PFL deve estar constrangido. Eu recebi um telefonema do presidente Jorge Bornhausen, o que me deixou muito satisfeito; porque certamente ele não gostou integralmente da entrevista..
Do conteúdo…
Mas reconheceu que eu tenho, primeiro, o direito de falar o que eu penso e eu não abro nunca mão desse direito. E, em segundo, que é uma entrevista que busca ver o cenário da sociedade brasileira.
E de quem mais do PFL o senhor recebeu…
…do prefeito de São Paulo, me ligou muito cedo o Gilberto Kassab.
Ele já havia lido?
Já…
Então é um "craque", como se diz,… às 11:30 da manhã, indagado no aeroporto, o prefeito disse não ter tido tempo de ler ainda.
Mas ele já havia lido, e gostou muito. Até brinquei: e você, como é que ficou? E outros. Rodrigo Garcia gostou muito, é o presidente da Assembléia Legislativa de São Paulo. O jovem sempre vibra com situações novas, ele ficou muito feliz.
Agora, dos chamados "caciques" do PFL o senhor não recebeu…
Não, não, nem pode…
Eles estão refletindo…
Eles estão refletindo… e daqui a 500 anos, quando eles desembarcarem, eles vão falar alguma coisa.
Só para rememorar: na entrevista à colunista Mônica Bergamo, da Folha de São Paulo, histórica, o senhor diz que a burguesia brasileira "é má", é uma elite, "uma minoria branca perversa", e que há uma dose de cinismo extraordinário no julgamento desses episódios nesses dias em São Paulo. Eu fiquei imaginando, se o senhor teria dito isso há 10, 15, 20, 30 anos atrás… O senhor tem 71 anos, já é governador, não tem compromisso porque seu mandato termina em oito meses. Qual foi o ponto de inflexão? Sexta-feira à noite, por coincidência, quando o ataque do PCC às polícias, ao Estado, estava começando, estávamos no programa da Maria Lydia na TV Gazeta, o senhor era o entrevistado e…
Eu já estava a par, e você veja que eu mantive o equilíbrio, mantive a ironia costumeira…
Desde ali o senhor apanhou por quatro, cinco dias, poderosamente. Qual foi o instante em que decidiu: "bem, vamos abrir a tampa, mostrar o que tem dentro"? E por quê?
Vou te explicar por quê. Eu fiquei muito constrangido com os maus conselhos que recebi. Muitos desses que eu cataloguei, rotulei, e isso não é bom, mas fiz, diziam: "Você tem que aplicar a lei de talião, ser duro, olho por olho dente por dente". Isso seria uma violência, uma estupidez. E os direitos humanos e a integridade das pessoas, o desastre humano que nós estávamos sofrendo? Eram irmãos brasileiros que estavam se conflitando loucamente, contra aqueles que querem disciplinar a sociedade… eu não podia ter uma palavra de loucura, seria uma estupidez.
De que lado vieram esses conselhos, de que espectros? Políticos…
De todos os segmentos que querem liderar a sociedade de forma mais dura, áspera. Compreendo que eles façam isso. Mas eu, com a minha história, ia fazer isso? Jamais. E aí eu desabafei…
O senhor sabe que há um risco grande, embutido em tudo que está acontecendo – além do episódio em si, do que já aconteceu – que é o risco de ter havido uma matança, que possa ter acontecido uma mortandade indiscriminada, de inocentes. Como é que o senhor lida com essa possibilidade?
Primeiro eu acho que não houve morte indiscriminada. Houve sempre conflito de rua onde as pessoas lamentavelmente morreram. Os militares e também essas figuras que estão fora da lei.
O senhor os chamou "de má vida", e alguém ironizou porque estava usando uma palavra, uma expressão ultrapassada. Li em algum lugar…
É verdade, quem usava muito isso era o Nelson Hungria, e também é próprio da língua italiana. "Mala vita". E é uma coisa que indica bem, indica que eu não quis agredir. Eu tenho horror a dizer "o bandido", "aquele safado". É uma forma, até mesmo com um certo respeito à má vida de seres humanos que não têm uma vida correta e digna como deveria ser. Por isso que eu usei "má vida" e sabia a origem sim, a etimologia da palavra. E sabia que o velho Nelson Hungria a usava há muitos anos, no seu estudo de direito penal. É uma palavra velha sim, mas é preciso recuperar palavras velhas da língua portuguesa porque talvez seja melhor do que os anglicismos, o Brasil está tão americanizado. Eu acho bom usar palavras bem latinas.
Alguns setores pediram que o senhor radicalizasse?
Alguns setores antigos de São Paulo queriam que eu radicalizasse.
Mas o senhor está se referindo ao empresariado, à polícia?
À polícia não. Olha, eu brinco, talvez eu seja O Alienista, certamente vão me levar depois para o hospício como aquele farmacêutico famoso, personagem do Machado de Assis. É possível… quem se portou com uma dignidade, com respeito, foram as polícias, e a Polícia Militar, de uma forma estupenda, com equilíbrio, bom senso, serenidade.
Então, o que o instigou a focalizar na burguesia?
Foi a própria burguesia.
Foi a própria burguesia?
Foi a própria burguesia. Não tive no campo interno ninguém falando bobagem. Quero até cumprimentar o secretário Saulo, secretário Nagashi,o comandante da Polícia Militar e o delegado geral da Polícia Civil. Foram homens equilibrados, sensatos, não ouvi uma palavra tola da boca deles, nem no momento mais difícil.
Mas se ouviu. Há pouco ouvi do secretário de segurança, Saulo, na TV Globo, alguma coisa assim como disse o comandante da PM. O secretário disse que a sociedade pode ficar tranqüila porque já temos 107 mortos. Referia-se aos supostos "bandidos"…
Isso são palavras proferidas – coisa que eu não fiz nenhuma vez, mas compreendo – no calor dos acontecimentos. Mas você tinha me perguntado sobre as mortes que aconteceram.
Sim, mortes que seriam indiscriminadas…
Olha, está determinado que cada pessoa que caiu, e elas estão aí nos nossos institutos médicos legais, será objeto de um inquérito policial específico onde você terá laudo criminal, para saber a causa da morte, para saber se…
…se foi tiro na nuca?
…isso não houve. Eu perguntei isso ainda hoje…
Não houve tiro na nuca?
Eu perguntei. Não houve nenhum, me disseram. Felizmente. Vamos ver depois os laudos. Mas o que eu tenho hoje é que não houve nenhum. Isso é muito bom. Segundo, o local, as circunstâncias, portanto a imprensa…
Quem participava, atirou…
Quem participava. A sociedade em geral poderá depois analisar esses inquéritos policiais. Portanto, transparência absoluta.
O senhor não duvidaria que possa ter havido, mas se depender da sua…
E dos comandos. Eles também querem, eles também querem preservar as suas corporações, portanto me parece que aí a transparência será absoluta, a clareza será absoluta. Segundo ponto que eu gostaria de registrar, que me parece muito importante. Nos presídios, 147 presídios, não houve a morte de um preso pela PM. Olha, isso é uma evolução notável. Uma evolução de comportamento que eu acho excepcional. Eu não quero fazer comparações com o passado.
Um passado quando se matou 111 de uma vez só?
Eu não queria fazer comparações com o passado e nem com situações do passado. Mas não houve uma morte pela PM nos presídios. Houve conflito entre presos, situações, etc. Mas pela PM não. E não fugiu um preso sequer.
Aliás, de 11 mil presos que haviam saído em todo o estado para o Dia das Mães, 9 mil e tantos voltaram, e da cidade de São Paulo de 607, creio, voltaram mais de 580.
O que mostra que nos nossos presídios não existe loucura nenhuma. Há bom senso.
 

Quando o senhor se refere à burguesia, o senhor também pensa no outro lado, num link entre aqueles que detém o poder efetivo, real, e a população carcerária?
Eu li as próprias entrevistas do dia anterior à minha entrevista e era uma coisa dramática.
Por quê?
Porque não pode uma pessoa, na ostentação de sua casa, rica, dizer: "Agora vamos fazer violentamente uma passeata". Ora, que coisa. Cuidem das palavras. As palavras não podem ser proferidas ao vento, ao léu. Tem que proferir as palavras pensando antes. Fazer charme, fazer graça em momento tão difícil, é uma falta de respeito.
O senhor usou, como adjetivos, "cínicos", "maus", "perversos", ao referir-se à elite brasileira, branca, minoria. De onde…
…à elite econômica, à pequena e alta burguesia. "De onde" o que você ia me perguntar?
De onde o senhor tirou isso, onde é que o senhor estava guardando esse sentimento? O senhor certamente rememorou muitas situações. Onde é que o senhor estava guardando isso?
Na minha consciência mais profunda. Foi uma catarse…
…é exatamente o que eu estava imaginando…
…na minha consciência tranqüila de um velho de 71 anos que só viu deformações sociais… era o momento…
…deformações ao longo da vida?
Exatamente.
Como político?
Como político, como advogado, como homem que viveu nessa cidade.
O que o senhor está fazendo é uma crítica absolutamente direta sobre a elite paulistana, brasileira…
…isso, latino-americana. A América Latina está dentro também.
Mas para ficarmos aqui, o objetivo foi o Brasil?
Objetivo Brasil. Ponto.
E em que momento o senhor pensou: "Vou esvaziar o pote"?
Foi uma necessidade. Em um momento de tanta dor, tanto desespero social e desespero das pessoas em si, das que morreram, eu tinha, tenho que dizer isso. É um momento em que a sociedade tinha, tem que sentir esse choque duro da realidade que ela não quer conhecer.
Uma sociedade, pequeníssima parcela, que vive atrás de muros altos, grades, com os carros blindados…
…viajando ao exterior, trazendo os melhores vestidos do exterior.
"Vestidos" talvez não seja uma palavra, uma expressão muito adequada para ser usada neste Palácio…
Eu nunca me equivoco no que eu falo. Eu sempre penso antes de falar.
Em alguns momentos a sua conhecidíssima ironia passeia pela conversa. O senhor disse que nestes dias o ex-governador Alckmin deu apenas dois telefonemas porque "o pulso telefônico está caro".
Muito caro, realmente.
O senhor sabe quanto está o pulso telefônico?
Eu não sei, mas eu posso perguntar para o portal Terra, que é da Telefônica, eles vão me contar.
E se o ex-governador ligasse a cobrar, não poderia ser uma boa solução?
Eu pagaria.
E o ex-prefeito, Serra, candidato a sucedê-lo, já telefonou para cá?
Aí pode ser um problema de amnésia, eu compreendo.
Mas de lá (sexta-feira, início dos ataques) para cá ele não telefonou?
Não, ainda não telefonou.
Ele está no Brasil?
Não, ele está nos Estados Unidos, salvo erro.
Onde acho que também está o ex-presidente Fernando Henrique…
Também está nos Estados Unidos.
Ele telefonou?
Não, não telefonou. Apenas fez críticas.
Mas não disse nada?
Não, não.
Quando o senhor nos diz isso, o senhor entende que talvez o ex-prefeito da cidade e candidato a governador do estado devesse, ao menos, ter feito o gesto de telefonar?
Eu não sei o que está acontecendo. Talvez ele não tenha acesso a meios de comunicação brasileiros, e não viu, não assistiu. Ou não quis eventualmente se envolver em episódio tão amargo e triste. Quis se preservar.
Esse conjunto de ações e não-ações, de omissões, ajudou o senhor a dizer assim: "então tudo bem, vamos contar como é que realmente funciona a coisa"?
Tudo tem a ver. Inclusive o próprio governo federal que queria fazer um jogo político na cena. Eu não permiti também. Não sei…. eu até imagino que o governo federal teve a melhor das intenções. Porém ele teve uma intenção ostensiva. Isso eu não ia permitir também, o uso político.
O senhor não permitiu, mas o que diz soa como se o presidente Lula tivesse sido…
Eu tive um diálogo elevado com o presidente Lula e a gente sabe que esse diálogo foi elevado. Ele enviou o ministro Márcio Thomas Bastos, ele foi recebido e o diálogo foi elevado.
Ele, o presidente Lula, não ligou a cobrar?
Não, não. Foi pessoal. O presidente teve condições de falar diretamente. E o ministro falou aqui comigo, e voltou nessa quinta-feira para falar novamente comigo sobre São Paulo e sobre o Brasil. Aí conversamos muito, sobretudo temas políticos também.
Que correlação que o senhor faria entre a vida carcerária e a do que chamou de burguesia? Qual é a distância entre esses dois mundos?
São mundos tão diversos não? Eventualmente um mundo tem bons advogados o outro mundo tem maus advogados.
O senhor, como alguém do direito, que pôde ver muito tempo isso, imagina que seja possível – o PCC, dizem, tem 100 mil "associados" que pagam – existir uma massa de manobra fácil, aquela que fica atrás das grades, fica assistindo a um jornalista que matou e não vai preso, o juiz que roubou e fica fora, a moça que matou a família…
…isso cria um caldo social de violência, claro, é um mau exemplo. Cinismo. Alguns são liberados porque tem bons advogados e outros porque…
…e há ladrões notórios que jamais…
…no mundo econômico…
…político…
…financeiro. Eu vejo pessoas ostentando suas casas luxuosas apesar de terem feito grandes falcatruas e outros estão presos, né?
E a população…
Percebe e vê isso.
Voltando um pouco à questão da política. Hoje um amigo seu se tornou candidato à vice-presidência. Ele falou, ligou?
Muito meu amigo, o José Jorge (Senador, PFL, candidato à vice de Alckmin). Uma pessoa a quem eu quero muito bem. Eu liguei para ele. Mas com o meu telefone celular particular.
Não foi a cobrar?
Não foi a cobrar. Eu telefonei. Ele é uma figura boa, de bom caráter.
Depois de sua catarse, quem lhe procurou, quem telefonou?
Ah, mas aí foi interessante. Eu não gosto da dicotomia direita, esquerda, mas aqueles que um dia foram de esquerda me telefonaram. Os da direita foram muito poucos. E os do centro, nenhum (risos). Me lembro do Alienista do Machado de Assis, a história famosa de uma aldeia, de uma cidade, onde todos eram considerados loucos pelo farmacêutico e ele internou todos. E no fim eles chegaram à conclusão de que louco era o farmacêutico. Eu sou o farmacêutico.
Figuras da "burguesia branca, má e perversa" estão dizendo mais ou menos isso…
Que o louco sou eu? Que bom. É bom que eles me achem louco porque daí não têm convívio comigo.
O senhor manterá suas posições até o complemento do seu mandato?
Escuta, isso foi um momento de catarse. A minha posição sempre foi e será de autonomia e independência. Nunca fui tutelado na minha vida. Eventualmente alguns pensaram que pudessem me tutelar nesse posto. Ninguém me tutela. Quem vai me tutelar, sim ,é o povo, os reflexos do povo e da sociedade, isso você pode perceber nesses oito meses. Mas eu quis ser autônomo e independente, mostrar quem eu sou, quem eu fui e a minha história.
O senhor certamente percebe, assim como a sociedade, que políticos, boa parte deles, na verdade são títeres.
Claro. Mas eu tenho sido de uma transparência nesse meu período todo, e na minha vida. Por exemplo, eu disse quando tomei posse que o acaso tinha me trazido para cá.
 

Não era só uma frase?
Não era uma frase de efeito. Eu não tenho vinculações com grupos, nem políticos, nem nada. Tenho diálogo com todos. E cheguei aqui por acaso, uma mera casualidade da história. Não forcei as portas. Sou militante… bom, militante eu não posso usar, né? Piora ainda mais minha situação…
O senhor vai ficar à esquerda da Heloísa Helena.
Eu sou filiado ao PFL, sou fundador do PFL. Sempre fiz política e fui leal aos meus partidos. Inclusive Arena, Partido Popular e PFL. Foram os meus partidos.
Foi secretário do Jânio Quadros…
Mas antes do PFL. Por três anos fui secretário do Jânio e fui antes da Arena. Fui presidente da Arena de São Paulo. Depois eu fui do Partido Popular do Tancredo Neves. Dois partidos em que eu militei acabaram. A Arena e o PP….espero que o PFL não acabe! Não sei se isso pode acontecer. Mas eu sou muito leal aos meus partidos e fui sempre fazendo uma carreira partidária muito arejada, muito clara, mas sempre muito independente.
O senhor tem consciência, obviamente muito mais que todo mundo, do que está a dizer. A sua fala tem um conteúdo político explosivo porque o senhor não se preocupa, ou não parece se preocupar, com o efeito devastador de algumas críticas e ironias, por exemplo, em relação a figuras do PSDB, em relação ao processo sucessório. Muito claras para mim…
Foram todas críticas irônicas, e nada pessoal. Ao contrário. Eu acho, e aí também é o farmacêutico falando, que são entrevistas com um conteúdo moralista. O moralismo tem que ser a condução de algumas idéias que estão na sociedade também. Mas nem sempre são refletidas e esclarecidas. Eu falei em princípios éticos, princípios religiosos e acima de tudo em princípios também cívicos. Sabe, 1964 fez muito mal ao Brasil.
O senhor já dizia isso?
Eu sempre falei, você sabe disso. Tem O Jogo da Coragem, um livrinho meu, tem uma matéria lá que diz isso. O que estou falando está no meio do livrinho…
…1964 fez mal porque interrompeu um processo.
No regime militar eu falei, e com os militares no poder com o AI-5. Nunca tive muita preocupação pessoal. Mas veja o seguinte, o que está faltando: os militares, em 64, tomaram o civismo para si e aí a sociedade rejeitou o civismo. O que é civismo? Ter identidade nacional, ter valores nacionais, não são os valores próprios, ter símbolos que a gente possa demonstrar que aquilo representa um território, valores culturais, as várias etnias. Nós deixamos isso tudo de lado porque não era de bom tom. Isso era coisa de militar. Eu acho que nós temos que recompor, agora como civis, a cidadania.
 

Na segunda-feira uma cidade de praticamente 12 milhões, em especial os templos do que o senhor diz ser a burguesia cínica, estavam fechados já no final da tarde. E também as universidades em vez de abrir, fecharam as portas…
…as universidades fecharam e foi uma coisa absolutamente errada…
Resta a imagem de que a sociedade se escondeu de três homens…
O que mostra uma coisa interessante: que nós brasileiros não estamos acostumados aos desafios.
…Doze milhões de brasileiros se renderam ao Marcola, ao Julinho Carambola e ao Gegê do Mangue?
Nós não estamos acostumados a desafios e isso talvez tenha sido bom para um choque. Temos que ser fortes. Eu até me lembrava nesses dias todos: quando as tropas soviéticas estavam chegando em Berlim, os alemães estavam ouvindo Mozart na Filarmônica de Berlim. E os nobres, pá, fugiram para dentro de casa.
Mas não foi assustadora essa reação em São Paulo?
Foi assustador.
A sociedade se render e se esconder em casa…
É assustador. Não ter capacidade de reagir.
Por conta disso, de respostas como essa, dirão que o senhor é maluco, irresponsável, que o senhor está dizendo coisas absurdas… mas o que o senhor está dizendo é que uma sociedade não deveria se esconder inteira dentro de casa?
É um bom momento para se dizer: "olha, precisamos ter condição de suportar situações difíceis". É o paternalismo brasileiro. E aí todos ficam contra o Estado. Ah, o Estado não fez, o Estado tem que fazer. O Estado é um instrumento de segurança sim, eu até como liberal acho que o Estado tem que dar segurança, saúde e educação. Mas também tem que ter consciência de que é preciso ter coragem cívica para suportar determinados momentos.
Voltando ao cerne: isso que aconteceu, eventualmente acontece todo final de semana na periferia. Há chacinas de finais de semana em que se matam 20, 30 pessoas e mal se sabe. E na periferia, infelizmente, a vida segue…
Desta vez foi assim porque não era só deles (da periferia). E os policiais? Os policiais podem morrer? Não podem morrer, isso que é o dramático. Eu queria tanto ter visto todos os que falaram no enterro do bombeiro. Isso era uma sociedade que tinha solidariedade, ir ao enterro do bombeiro, pobre moço, que não porta nem arma, que só preserva a vida. Mas nos jornais eu não vi nem cartas falando do pobre bombeiro, pobre família de um jovem que trabalhava para salvar vidas. Não ouvi nada. Isso me dói.
O senhor diz que tem um discurso moralista. Quando o senhor registra amnésias telefônicas tucanas o senhor está cobrando solidariedade, responsabilidade inclusive moral para com a população?
Claro que sim. Isso que nós precisamos criar, esse sentido de, olha, o brasileiro antes de tudo ele não é solidário, ele é insolidário.
Como dizia o Otto…
É, isso é o que dizia o Otto Lara Rezende. Esse grupo brasileiro (os mineiros) específico, mas que…
Aliás, um deles lhe ligou…
Ligou, foi o Aécio (Neves). O Aécio me ligou, foi muito elegante. Aécio, Rosinha, Mendonça, de Pernambuco. Foram esses os governadores que ligaram. Mas quem dizia que o brasileiro é insolidário e nunca é solidário, que o brasileiro está sempre pronto a ir à praia junto, que sempre estão prontos a fazer um salvamento juntos, foi Oliveira Viana, que é filho de um conservador. Portanto eu continuo conservador.
Há quem diga que o senhor agora esta à esquerda da Heloísa Helena…
A Heloísa Helena usa umas camisetas estranhas, coloridas. Eu continuo um pequeno burguês com roupas escuras, soberbas. Bem diferente.
E há quem o critique dizendo que o senhor, como burguês, não pode falar dos burgueses…
Eu não sou hipócrita…
O senhor seria hipócrita porque diz dos burgueses…
Eu não sou hipócrita, eu sou é realista. E burguês eu não sou. Sou um pequeno burguês e tenho plena consciência disso. Porém o grande problema da burguesia brasileira é que ela é…
Hipócrita?
…e ela tem avareza total. Veja, enquanto a burguesia americana cria as fundações e efetivamente aplica o dinheiro das fundações em grandes atividades sociais, as fundações brasileiras são para os filhos da burguesia, então é uma coisa louca.
Para eles viverem bem?
É, para viverem, para terem um lócus de vivência?
Para eles eventualmente à noite terem o que dizer…
…o que dizer e fazer um grande saber. Então eu acho isso um grande erro.
Quando o senhor, na entrevista à Folha, falou daquele jantar cinco estrelas com figuras da política, antes da colunista falar de conhaque de R$900 o preço de uma dose, não sei porquê vi alguns cardeais do PSDB jantando no restaurante Massimo. Não é lá o conhaque, mas eu estou enganado?
Não, eu também vi essa fotografia, que é muito simbólica, né?
Nessa foto estão o Tasso, o Fernando Henrique, o Serra, não sei se o Aécio também estava… Estavam várias pessoas. Mas hoje eles estão em Nova York, basicamente. É, e não conheço os restaurantes de Nova York. Só como hambúrguer em Nova York, então não sei qual eles estão freqüentando.
Fonte: Terra Magazine