Flávio Aguiar: “Crônica da cidade desvairada”
Quem sabe algo parecido houve na revolta dos tenentes em julho de 1924, quando, além de combates nas ruas, aviões bombardearam bairros e parte do centro da cidade. Na segunda-feira, São Paulo teve um troço, um colapso cardíaco.
Publicado 16/05/2006 16:21
Mas, na segunda-feira, São Paulo teve um “troço”, um colapso cardíaco, um AVC, algo desse teor e naipe. E quanto mais autoridades iam para o rádio e a TV acalmar a população, dizendo que “estava tudo sob controle” e outras quejandas bobagens, mais se via povo em pânico ou desespero nas ruas.
Todas e todos que lêem esta coluna sabem que para mim verde-oliva só cai bem em azeitona, quartel e sete de setembro. Mas na segunda cheguei a desejar que o Exército viesse às ruas, porque o clima era de guerra civil. Passei a tarde na Cidade Universitária da USP, enfiado numa banca de mestrado (aliás, excelente). Pela primeira vez em meus 40 anos de universidade (desde que entrei na UFRGS como estudante) e desde que se criou a telefonia celular, participei de uma banca em que os aparelhos ficaram ligados, recebendo notícias de toda a cidade, mensagens escritas, recados de parentes e de amigos. Para meu desespero, lá pelas tantas a bateria do meu telefone se foi, e eu ainda tinha mensagens registradas de que eu ainda não tinha tomado conhecimento.
Confesso que passei angústias parecidas com as do tempo da ditadura, quando a gente aguardava prisões que podiam ocorrer ou más notícias que podiam chegar a qualquer momento. Apesar de tudo levamos a banca até o final, e com galhardia, para não prejudicar o estudante, que mereceu aprovação elogiosa. Quando saí, duas palavras contraditórias entre si descreviam a cidade universitária: ela estava semideserta, e num pandemônio indescritível.
Explico-me: as atividades como aulas, o funcionamento das secretarias, etc., tinham sido suspensas a partir das 16 horas. Os prédios, os estacionamentos, estavam desertos, pareciam abandonados. Já nas três saídas viárias da Cidade Universitária o congestionamento era espantoso. E vinham notícias mais espantosas: shoppings fechando, outros sendo evacuados, as marginais ganglionadas (como diria Euclides da Cunha), as avenidas com artrite ou com artrose, massas e massas humanas indo a pé para lares distantes.
Só consegui sair da USP pelas 20 horas, para encontrar um cenário inusitado: ruas e avenidas relativamente às escuras, pelo apagar dos luminosos, supermercados fechados, postos de gasolina bloqueados com correntes, ruas com delegacias barricadas e ninjas mascarados com escopetas e carabinas calibre 12 à mão, nos edifícios as janelas guarnecidas por suas venezianas, enfim, um cenário de desolação. Na minha casa houve um rosário de telefonemas, os que eu dei e os que recebi, pedindo notícias. Meu irmão me ofereceu asilo no Rio Grande do Sul… e por aí foi: uma movimentada noite de noticiários, boatos e comentários.
Em muitas manifestações pela imprensa falada, televisionada, internáutica e impressa, notei uma constante: uma dissociação curiosa, como se houvesse de um lado “a sociedade”, e de outro, “o crime”, “a bandidagem”, ou, para citar a expressão do governador Cláudio Lembo, “os homens de má vida” (sic). Não há possibilidade de se montar uma ação organizada como a que se montou em São Paulo sem um forte enraizamento de organizações como o PCC nessa “sociedade”. Esse enraizamento é amplo e de profundidade, pois envolve planejamento, financiamento, treinamento; não há crime organizado sem corrupção no aparato repressivo e sem seu acolhimento pelo mundo da circulação financeira, irregular ou não. A questão é pois muito complexa, e assim deve ser tratada.
Ficam algumas perguntas no ar:
1) Por que o governo de São Paulo rejeitou sistematicamente a ajuda federal? Timidamente, aceitou uma ajuda no plano da inteligência, coisa em que as polícias de S. Paulo revelaram rotundo fracasso.
2) Se é verdade que o governo de S. Paulo sabia que algo vinha sendo preparado (e ações como as que tomaram conta da cidade desde a sexta-feira 12 exigem tempo de preparo, não se fazem de uma hora para outra), por que não preparou as polícias do estado para enfrenta-las?
3) O que, afinal, foi negociado com representantes do PCC para por fim de golpe, na segunda feira, às dezenas rebeliões nos presídios do estado? Quem negociou, e em nome do que ou de quem? O governo do estado jura que não houve negociação. Mas não é possível que as rebeliões tenham acabado “espontaneamente” e sem concessões, pois visivelmente houve uma ordem para que elas chegassem a termo.
Para amiga minha presente a um dos telefonemas da segunda à noite, este foi o aspecto mais acabrunhante de tudo, pois indicava que, na guerra civil, que custou, nesses quatro dias de sexta à segunda, a vida de quase 100 pessoas, houvera uma vitória das organizações criminosas. Na primeira ação de monta em alguns anos na cidade de São Paulo, elas tinham obtido uma espécie de “reconhecimento informal” pelo povo e pelas autoridades. Provocaram um “toque de recolher” virtual na maior cidade da América do Sul, desorganizaram e acuaram momentaneamente as forças policiais, e, pelo menos por hora, apesar das “baixas”, recuaram ainda intactas do ponto de vista estrutural, para a dispersão relativa que deve se seguir.
O governo federal teve uma posição correta na crise, oferecendo insistentemente a ajuda sempre recusada, mas é necessário também que reveja a política de cortes de investimento na área da segurança, provocada, pelo menos em parte, pela síndrome do superávit primário, síndrome que favorece a plutocracia que agora também anda abalada pelas ruas pânicas da paulicéia, é verdade, que ficou desvairada numa segunda feira que entrou para a história da cidade.
Fonte: Agência Carta Maior