Época assombrada por mudanças.
O que Hugo Chaves, Ernesto Cardenal, Paulo Freire, Thiago de Melo e Faha Diba teriam a ver com uma improvável revolução brasileira.
Publicado 16/05/2006 15:44 | Editado 04/03/2020 16:13
Em 1979 duas revoluções sacudiram o mundo, uma na América Latina e outra no Oriente Médio. Na época tudo indicava que nos seus propósitos em nada eram semelhantes. Hoje porém, quase três décadas depois, o benefício da história nos permite identificar pontos de contato entre os dois eventos aparentemente distintos.
Naquele momento, enquanto na Nicarágua os Sandinistas tomavam o poder de assalto e desbancavam a ditadura de Somoza, inspirados na façanha cubana de Fidel Castro, no Irã um levante fundamentalista comandado por Ayatolás depunha o governo do Chá Reza Pahlev e instalava em seu lugar um regime obscurantista baseado no alcorão.
No governo liderado por Daniel Ortega, ao ser designado para o cargo de ministro, com a tarefa de elevar a educação à condição de política redentora, o poeta Ernesto Cardenal adota a pedagogia do oprimido como modelo de ensino, uma proposta tão popular entre os educadores do terceiro mundo que rapidamente transforma Paulo Freire em popstar da insurreição e verdadeiro herói do povo nicaragüense.
Enquanto isso, no Brasil o método Paulo Freire de alfabetização não era ensinado nas escolas nem aprendido nas universidades. A ditadura não tolerava a educação para a liberdade e talvez por isso, uma estranha personagem gozava de relativo prestígio entre nós. Era Faha Diba, a primeira dama do Irã até o momento da derrocada final de Reza Pahlev. Esta gentil senhora posava de benemérita nos eventos humanitários enquanto o seu marido belicoso atacava de verdugo do seu próprio povo.
Foi assim que se produziu a Declaração de Alma Ata trazendo a assinatura de Faha Diba como secretária do conclave internacional que propugnou pela a adoção da medicina preventiva e dos cuidados primários como estratégias para se atingir à meta de “saúde para todos no ano 2000”.
Para a Organização Mundial de Saúde-OMS, o fórum ocorrido na República do Cazaquistão da antiga União Soviética para produzir o tal documento, tem a mesma relevância de um conclave ecológico como a Conferência do Rio de Janeiro em 1992, entretanto, a assinatura de Faha Diba no texto da OMS equivale a ter o vilão número 1 da causa ambientalista, ou seja, o próprio George Bush, como signatário do protocolo de Kioto.
O fato é que, enquanto Paulo Freire alfabetizava os campesinos insurretos na Nicarágua, por vias tortas Faha Diba ajudava a cidadania Brasileira com os postulados de Alma Ata que viriam a servir de base doutrinária para a reforma sanitária que levou à implantação do Sistema Único da Saúde – SUS.
Mas o que isso teria a ver com o Brasil, com Lula ou Chaves? Aparentemente nada ou tudo. Se admitirmos que há duas novas revoluções em curso, desta vez uma na Venezuela e outra no Brasil, podemos nos valer caminho trilhado para tirar lições práticas, principalmente se tomarmos a história como um ensinamento para o presente vivido e não apenas como registro do tempo passado.
No processo de mudança liderado por Hugo Chaves na Venezuela, novamente a educação é tomada como paradigma ao lado de outras iniciativas como um inusitado Banco do Crédito popular que torna acessíveis os ativos financeiros gerados pela exportação do petróleo e do enfrentamento do problema agrário pela revisão dos títulos de propriedade das terras
No processo em curso na Venezuela, tal é a importância dada à educação que, ao mesmo tempo em que se reage à sanha golpista de uma elite ensandecida que diuturnamente organiza levantes o governo de Hugo Chaves fortalece o ensino criando novas universidades e comemora as conquistas do país com a distribuição de 1 milhão de exemplares do romance Dom Quixote de Cervantes. Não por acaso, o lema da revolução bolivariana é: estudar e lutar, lutar e estudar.
No Brasil também há uma revolução em curso. Silenciosa, sem dúvida, porém não menos cruenta. Por aqui, no entanto, o mesmo presidente Lula que inspira as ações de Chaves na Venezuela, age com sabedoria e parcimônia acumulando sem arroubos, avanços que preparam o povo para o grande salto que o país precisa dar no rumo do desenvolvimento e de uma transformação radical.
A reserva de vagas universitárias para alunos de escola pública associada às cotas destinadas a negros e indígenas assim como o financiamento de vagas para alunos pobres em escolas privadas cria essa possibilidade.
Num país marcado pelas desigualdades, onde as elites tentam desconstruir a idéia de nação e povo, as políticas afirmativas e compensatórias ainda podem produzir algum efeito benéfico. Trata-se de um resgate, pela educação, de uma dívida social de 500 anos de discriminação contra os pobres, negros, mulheres e indígenas, ou seja, o povo enfim.
É bem verdade que no fim da vida o educador Paulo Freire, herói de várias revoluções como a cubana, angolana e nicaragüense alertava que ele próprio já teria sido um daqueles que acreditaram que a educação podia tudo e depois que a educação não podia nada, concluindo, finalmente, que nenhuma política tem poder absoluto nem validade nula e que o caminho das mudanças está, terminantemente, associado a um conjunto de ações e conquistas que devem se acumular para garantir a democratização da terra, da educação, da cultura e dos recursos financeiros.
Freire estava certo e talvez por isso precisemos olhar com atenção a revolução em curso na Venezuela. Um processo que se faz tão moderno, exatamente por demonstrar com seus percalços que, mais válido que o caminho é o jeito de caminhar, tal qual também nos ensina o poema de Thiago de Melo, este que deveria ser distribuído aos milhões pelo país afora como foi feito com Cervantes na Venezuela.
Thiago prega a esperança em contraponto ao pessimismo, enquanto a alienação é induzida pelas elites conservadoras que difundem a idéia de que a derrocada das experiências socialistas anunciaram o fracasso definitivo de todas as possibilidades revolucionárias.
No Brasil o pensamento elitista está bem representado pelos partidários do retorno dos tucanos ao poder. Os mesmos que ressaltam com tanta veemência os defeitos do atual governo, que por vezes nos constrange de reconhecer os acertos que nós próprios protagonizamos. Os neoliberais que desmantelaram o patrimônio nacional e provocaram a crise que se busca superar, argumentam cinicamente que José Serra teria feito mais pelo social do que todo o governo de Lula. Nada mais improvável pois, ainda que se pudesse admitir um desempenho satisfatório do ex-ministro da saúde de FHC, não passaria de um paradoxo comparável à ação benemérita de Faha Diba, a primeira dama da ditadura sanguinária do Irã que se dava ao luxo de fazer apologia das boas intenções.
É melhor que nossos exemplos sejam: o sandinismo de ontem que apostou em Paulo Freire e a revolução bolivariana de agora que tem como inspiração o libertário Dom Quixote, do contrário, só nos resta o retrocesso que representa o retorno do obscurantismo moderno do PSDB que se nutre da pobreza e da ignorância.
Quanto às limitações do governo Lula é preciso saber valorizar cada conquista, mesmo que seus ganhos não sejam tão explicitos pois o que importa é que a mudança seja assimilada como possível desde que entendida como necessária e assumida como desejável.
Por: Antônio Levino