Maringoni: “A mídia brasileira está cada vez mais venezuelana”

No episódio da nacionalização dos hidrocarbonetos bolivianos, mídia queria sangue. Como os fatos desmentem sua conduta, o problema, para a revista Veja, a Folha e o Estadão, está com os fatos.

por Gilberto Maringoni*

A posição do governo brasileiro sobre a nacionalização do gás boliviano se constitui numa das páginas luminosas da política externa brasileira. Pautado pela maturidade e pelo diálogo –e não pelos setores radicais e extremados da mídia – o Brasil estreitou laços com as administrações progressistas da América Latina, não entrou no jogo rasteiro de intrigas que só beneficiaria a direita e a Casa Branca e reconheceu a soberania do país vizinho sobre seus recursos energéticos.

O maior atestado da correção oficial brasileira é a lambança que a maior parte da mídia fez da questão. Aqui transparece, ironicamente, a grande influência venezuelana nos países do continente, após a chegada de Hugo Chávez ao poder. Elitistas, racistas, preconceituosas, entreguistas e sobretudo alicerçadas no pantanoso terreno da ficção, publicações como “Veja”, “O Estado de S. Paulo” e “Folha de S. Paulo” foram cuidadosas na escolha de lorotas para entreter o leitor. Até mesmo o ex-ministro Rubens Ricupero – o que se auto definiu, em 1994, nas telas da Globo,como sem escrúpulos – resolveu dar o ar de sua graça. Acompanharam-no ex-auxiliares do governo tucano, ávidos por se livrarem do merecido ostracismo.

PRÊMIO DE FICÇÃO
A revista “Veja”, nessas horas, supera qualquer parâmetro racional. Em linguagem chula e mentirosa – a expressão mais leve é que Lula teria levado “um chute no traseiro dado por Hugo Chávez e seu fantoche boliviano, Evo Morales” – a publicação dos Civita deveria se candidatar a receber algum prêmio internacional na área de ficção. Lá pelas tantas é dito o seguinte: “Morales expropriou ativos que pertencem ao povo brasileiro e rasgou, como se não valessem nada, tratados negociados de Estado para Estado nos últimos trinta anos”. Primeiro, o decreto governamental não tem uma linha sequer falando em desapropriação. Segundo, nenhum tratado foi rasgado. O que há é uma renegociação em curso, comum em qualquer acordo. A matéria de capa desta semana maltrata tanto as informações que não vale a pena perder tempo com ela.

A “Folha de S. Paulo”, tradicionalmente mais sóbria, busca pelo em ovo. A manchete de domingo (7) é sensacional: “Bolívia já prepara desapropriação de terras de brasileiros”. É assim sem mais. No mundo encantado da grande mídia, o pérfido governo de Evo Morales e seus asseclas, monitorados pelos arqui-vilões Hugo Chávez e Fidel Castro, pensaram num plano diabólico só para prejudicar brasileiros. Quando o espantado leitor avança até o caderno de Economia, verifica ter sido vítima de uma pegadinha do jornal. Muito jocosa, por sinal. O repórter Fabiano Maisonnave relata: “São aproximadamente oito decretos e um projeto de lei, que têm a finalidade de reverter ao Estado boliviano todas as terras que não cumprem uma função econômica e social ou cujos títulos de propriedade tenham sido obtidos fraudulentamente", disse à Folha o ministro de Desenvolvimento Rural, Agropecuário e Meio Ambiente, Hugo Salvatierra. E vai adiante: "Isso representará a recuperação de 11 a 14 milhões de hectares de terras, que serão distribuídos a camponeses sem-terra, comunidades indígenas e originárias e a todos os bolivianos que não possuem terra e estão dispostos a trabalhá-la. Mas representará também a segurança jurídica para todos os pequenos, médios e grandes proprietários e empresários que cumprem a função socioeconômica, trabalham a sua terra e a possuem de maneira legal”.

Ah, bom, então não é contra brasileiro? É contra grileiro? Mas quem se importa? A rima é a mesma. É tudo festa! Esse pessoal da “Folha” é realmente muito espirituoso.

RICUPERO PEDE PIQUES
O ex-ministro Ricupero é outro pândego. Pede a solução do caso, através da “Associação de Arbitragem de Nova York, utilizando leis do Estado de Nova York”. Já o folclórico ex-chanceler Celso Lafer, aquele que tirou os sapatos para entrar nos EUA, saiu-se com esta: “A tradição do Itamaraty sempre foi de firmeza sem estridência, agora é de estridência sem firmeza”. Se nos lembrarmos do que foi a política externa do governo FHC, de aproximação com o falido grupo da Terceira Via e com os retumbantes fracassos no terreno comercial, torna-se necessário saber de que planeta Lafer fala.

A imprensa claramente quer sangue. Desejosa de fracionar a aliança entre governos que rejeitaram a Alca e tentam outro tipo de integração, não subordinada a Washington, irá espernear cada vez mais. E cada vez mais se parecerá com a direita venezuelana e seus repetidores encastelados na mídia.

“INTERESSES NACIONAIS”
Os meios de comunicação brasileiros precisam apenas avisar ao distinto público que os defensores dos “interesses nacionais”, cujos holerites eram pagos pelo governo FHC, foram coniventes ou partícipes dos seguintes atos, entre 1995 e 2002:

Primeiro, a aprovação da Lei 9478/1997, que acabou com o monopólio estatal do petróleo e possibilitou a empresas estrangeiras explorar jazidas brasileiras e a comercializar e exportar petróleo;

Segundo, a venda de 59% das ações da Petrobrás. Destes, 40 % foram comercializados em Wall Street e 19 % foram passados a investidores e especuladores brasileiros. Embora a maioria dos votos na direção da empresa pertença ao Estado, tem sofrido pressões crescentes para não atender prioritariamente os interesses do país, mas a de contentar seus sócios privados. Houve aqui uma privatização por dentro.

E terceiro, o governo FHC assinou, em 1999, um contrato de fornecimento 30 milhões de metros cúbicos de gás, por 20 anos, com empresas multinacionais que exploravam as reservas bolivianas. O Brasil consumia pouco mais da metade deste volume. Houve intensa pressão internacional para que nosso país mudasse sua matriz energética hídrica, possibilitando a produção de eletricidade através de usinas térmicas. Na raiz desse fato estava a privatização de nosso sistema elétrico. Mais caras e mais poluentes, a instalação de termelétricas, no entanto, era de interesse das grandes transnacionais do setor que acabaram vindo para o Brasil. Não é à toa que a Enron, por exemplo, atuasse em duas frentes, na Bolívia e no Brasil, durante esse período. O contrato é denominado “take or pay”. A Petrobrás teve de pagar pelo gás, mesmo sem utiliza-lo integralmente.

A imprensa e a direita têm repetido que a nacionalização do gás boliviano enfraquece a integração dos países latino-americanos. Ao contrário. Uma integração justa e sólida só será possível se for baseada em países soberanos.

Mas a mídia não está aí para isso. Está para nos fazer pegadinhas. Muito, mas muito engraçado, mesmo.

*Gilberto Maringoni é jornalista  e escreve para a Agência Carta Maior, onde este artigo foi originalmente publicado.