Bolívia, Brasil e petróleo: história de uma conspiração
O setor midiático do tucanato/pefelista/udenista (a chamada “grande imprensa”) talvez seja o principal entrave ao entendimento do que realmente está acontecendo nas relações da Bolívia com seus vizinhos, principalmente o Brasil.
Publicado 07/05/2006 16:13
Por Osvaldo Bertolino
Ativos obscuros viajam de alíneas para incisos. As posições acionárias, então, desafiam em complexidade as potências dos números adimensionais ou o Princípio da Incerteza de Heisenberg. Empresas se entrelaçam umas nas outras, com participações que se cruzam, entrecruzam, sobrepõem-se. A propósito: uma olefina é um alceno. E um alceno? Ora, é um composto binário de carbono e nitrogênio — acíclico, é claro. Mas atenção: é não-saturado e tem dupla ligação. Certo? Não, tudo é muito incerto, e isso determina não apenas o tom mas possivelmente o desfecho da tempestade diluviana que a “grande imprensa”, principalmente, formou em torno do assunto. Quem conhece as suas olefinas, é claro, sabe perfeitamente o que está acontecendo, mas o público em geral passa batido.
Sabe-se, vagamente, que é alguma coisa que tem a ver com plásticos, que há um monte de dinheiro em jogo e que deve estar ocorrendo algo de muito errado na história toda. O resultado é que mesmo o mais renitente dos curiosos, pouco a pouco, perde a coragem de continuar se interessando pelas discussões e, derrotado pela brutal chatice do assunto, acaba por bater em retirada — deixando aos protagonistas, no devido tempo, o conforto de cuidar dos seus interesses longe dos olhos da opinião pública. É aí que entram em cena as cassandras. (Cassandra é aquela personagem mitológica filha de Príamo e de Hécuba, rei de Tróia, a quem Apolo conferiu o dom da profecia e que, por não conceder favores ao deus, foi punida com o fato de não se fazer acreditar, como no episódio da queda de Tróia.)
Histórico jogo bruto contra a Bolívia
A “crise boliviana”, que parece outro fim do mundo, tem a ver com esse emaranhado de interesses tecido na “era FHC”. E como no script de ataques ao governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva o Itamaraty está nas primeiras linhas da lista, o chanceler Celso Amorim e o secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães são os alvos da vez. Quem ainda não leu ou ouviu em algum lugar que a política externa do governo Lula submergiu como martelo sem cabo? Eles escondem o histórico jogo bruto contra a Bolívia. Sequer dizem que a intenção do governo do presidente Evo Morales era pública pelo menos desde o dia 26 de janeiro passado quando o jornal local El Deber publicou declaração nesse sentido do então recém-nomeado presidente da empresa estatal de petróleo da Bolívia, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), Jorge Alvarado.
Foi um ato de violência contra a Bolívia. Sánchez de Lozada, um grande empresário de minério, representava uma linha de atuação boliviana estreitamente ligada à história do imperialismo no setor. A indústria do petróleo, que nasceu no final do século 19, é fonte constante de riqueza e por isso se tornou desde cedo essencialmente monopolista. A Bolívia é exemplo da história da paz e da guerra, das correlações de forças que se modificam, das soberanias nacionais que desaparecem, se restauram ou se conquistam. Já no começo da década de 50, o governo do presidente Victor Paz Estensoro nacionalizou 163 minas de estanho debaixo de protestos do governo norte-americano do general Einsenhower e da fúria do senador McCarthy.
O Brasil também entrou com tudo nessa nova fase – a confirmação da existência do petróleo em nosso país foi uma vitória do povo e das forças progressistas. Mas a linha demarcatória já estava bem definida entre o verdadeiro patriotismo e a traição nacional. É a mesma que hoje vemos opondo dois campos sobre o decreto de nacionalização boliviano. A malta de “analistas” – destaca-se entre eles, pelo cinismo ao defender “os interesses brasileiros”, a “comentarista” Miriam Leitão, das Organizações Globo – repete o tom de quando Brasil e Bolívia não se aproximaram mais no setor de petróleo porque no caminho estava o pai dos neoliberais brasileiros, Eugênio Gudin, ministro da Fazenda do governo Café Filho, em meados da década de 50.
Estrada de ferro Corumbá-Santa Cruz
O assunto remonta ao tratado de limites de 1867, denunciado oficialmente pelo Barão do Rio Branco, que declarou litigioso o que hoje é o Estado do Acre. O petróleo na Bolívia já era conhecido. Os índios chamavam o óleo escuro que escorria no solo da zona subandina de “azeite de pedra”. Mas foi somente depois da Primeira Guerra Mundial que os monopólios estrangeiros começaram a disputar a sua posse. E nesse jogo, tanto governos da Bolívia quanto do Brasil foram usados para defender seus interesses. O mais dramático episódio dessa história é a chamada “Guerra do Chaco”, tramada pela Standard Oil. No seu final, o Brasil assinou os “Tratados de 1938” pelos quais nosso país ganhou uma “área de estudo” para pesquisar petróleo.
O Brasil havia construído a estrada de ferro Corumbá-Santa Cruz de la Sierra e recebeu a “área de estudo” como pagamento. Depois de idas e vindas, no dia 5 de janeiro de 1955 o presidente Café Filho, na inauguração da ferrovia, recebeu de Paz Estensoro, que retornara à Presidência da Bolívia devidamente mancomunado com a Standard Oil, um Memorial pelo qual ficaria eliminado o conceito de garantia geográfica e, em conseqüência, a área de reservas estabelecidas pelos “Tratados de 1938” e convênios complementares. A área até então reservada ao Brasil passaria à YPFB, que por sua vez a repassaria à Standard Oil. Paz Estensoro também disse que ele pagaria a ferrovia Corumbá-Santa Cruz. Seria a hora de o Brasil, por meio da Petrobrás, iniciar as perfurações na “área de estudo”.
Torpe campanha contra a Petrobras
Mas no Ministério da Fazenda Estava Eugênio Gudin, que se recusou a liberar os recursos necessários já aprovados pelo Congresso e destinados ao reinício das atividades do Conselho Nacional do Petróleo na região subandina boliviana. A “grande imprensa”, que no Brasil combatia ferozmente o monopólio estatal do petróleo, saudou a atitude de Gudin como um gesto de “coragem e bom senso”. Em La Paz, a “grande imprensa” de Paz Estensoro procedeu da mesma maneira. Festejavam, assim, o entreguismo brasileiro-boliviano, na pessoa de Gudin. O episódio é tido com mais um lance em que se evidenciou a mão do imperialismo agindo para perturbar a boa vizinhança dos povos do Brasil e da Bolívia.
O alvo era a Petrobrás, que surgia como desmentido aos que só acreditavam nas maravilhas da iniciativa privada – como era o caso de Gudin, um liberal “ortodoxo” que infelizmente fez escola no Brasil. Os monopólios sabiam que a Petrobras era a solução certa para o problema do petróleo brasileiro e que do seu êxito surgiria a base econômica-financeira que proporcionaria as condições ao Brasil, como de fato aconteceu ao longo de sua história, para cumprir integralmente os tratados com a Bolívia. Foi nesse contexto que surgiu a mais torpe campanha contra a Petrobras – retomada com vigor na “era FHC”. Hoje, o que se vê, em verdade, é mais um capítulo de uma conspiração ignóbil contra o Brasil. Uma conspiração também contra o povo boliviano, nobre e altivo por natureza.
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