Carajás, 10 anos: Artigo relembra etapas do massacre
O jornalista Norian Segatto, da Agência CUT, publicou nesta segunda-feira o artigo “Dor da impunidade é maior do que a das balas”. Trata-se de um relato sobre os crimes brutais perpetrados pela polícia militar em abril de 19
Publicado 17/04/2006 16:55
Na manhã de 17 de abril de 1996, o ar seco que cobria a estrada no Sul do Pará prenunciava mais um forte verão. O vento levantava a fina poeira da estrada, mas não chegava a ser um incômodo para aquelas pessoas que haviam enfrentado situações bem piores. Cinco meses antes, em 5 de novembro de 1995, cerca de 1.500 famílias, organizadas pelo MST, haviam ocupado a fazenda Macaxeiras, 40 mil hectares de terra útil para plantio, mas que servia unicamente para engordar o gado do latifundiário Plínio Pinheiro.
A ocupação, pacífica, foi acompanhada de negociações junto ao Incra e aos governos federal e estadual para que fossem agilizados os procedimentos de desapropriação daquelas terras. No entanto, passados cinco meses a situação permanecia inalterada, à exceção das ameaças de capangas, que aumentavam a cada dia.
Para pressionar por uma solução, os moradores do assentamento resolveram realizar uma marcha até Marabá pela Rodovia PA 150. Após nove dias de caminhada, interditaram a estrada, no local conhecido como curva do S, na esperança vã de que suas vozes fossem ouvidas pelas autoridades. O que se ouviu, no entanto, foi o grito de dor, da morte e do choro de viúvas e órfãos daquele 17 de abril.
Assassinatos ideológicos – O confronto com a Polícia Militar deixou um saldo de 19 mortos e 69 feridos, pelos números oficiais, mas os assentados acreditam que houve mais vítimas. “Como é possível policiais darem rajadas de metralhadoras na multidão e só acertar homens, nenhuma criança ou mulher, é complicado, não dá para acreditar”, desabafou para reportagem da Radiobras Antonio Alves de Oliveira, o Índio, um dos sobreviventes da chacina.
O confronto poderia ter sido evitado pelo então governador Almir Gabriel (PSDB); no entanto, havia orientação implícita em seu partido para “endurecer” com os movimentos reivindicatórios, em especial contra sindicalistas e trabalhadores sem-terra. Era o início da administração neoliberal de FHC e o governo federal já havia enfrentado uma dura greve de petroleiros entre diversas outras manifestações dos movimentos populares. Endurecer, sem ternura, era a maneira de os tucanos tratarem os “baderneiros”, que queriam apenas um pedaço de terra para plantar, ter uma casinha e cuidar de seus filhos com o mínimo de dignidade.
Cerca de 150 policiais comandados pelo major José Maria de Oliveira e pelo coronel Mario Colares Pantoja atacaram a tiros os trabalhadores sem terra; a multidão se dispersou rapidamente, mas o que se viu não era mais uma batalha, era uma caça.
O legista Nelson Mancine, indicado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal para acompanhar o caso, confirmou que pelo menos 13 dos 19 trabalhadores mortos foram executados com tiros à queima-roupa, após já estarem dominados.
A pressão da sociedade e a farsa da Justiça – Certos de que a impunidade seria sua grande aliada, os mandantes e os executores dos assassinatos sabiam que a tragédia poderia ser evitada, mas não fizeram nenhum esforço para isso, pelo contrário, os policiais foram orientados a retirar os nomes de identificação de seus uniformes porque havia uma emissora de TV local filmando a manifestação.
As imagens gravadas pela emissora correram o mundo e chocaram até os mais acostumados com a violência policial. Diante dos fatos e da pressão da sociedade, não foi possível o governo jogar para baixo do tapete a “sujeira” feita pelos PMs com autorização do governador do Estado.
Os dois comandantes e mais 144 policiais foram levados a julgamento, em novembro de 1999. Todos foram absolvidos, mas diante das evidências de diversas ilegalidades no processo, o julgamento foi anulado. “Desde o primeiro momento estava clara a intenção do juiz de inocentar os PMs”, afirma Carlos Guedes, advogado do MST que acompanhou o caso.
Após a anulação, 17 dos 18 juizes do Pará não quiseram julgar o caso, que coube à juíza Eva do Amaral. O novo julgamento também foi anulado e a juíza substituída por Roberto Moura. Ao final do terceiro julgamento o júri absolveu os 144 policiais e condenou o major Oliveira a 154 anos de prisão e o coronel Pantoja e 228 anos de reclusão. Ambos recorreram e continuam em liberdade. O então secretário de Segurança Pública do Pará, Paulo Sete Câmara, e o governador Almir Gabriel sequer foram citados no processo.
À espera de justiça – Após o massacre, e sua repercussão, o Incra considerou improdutiva parte das terras da fazenda Macaxeira e desapropriou 18 mil hectares, que hoje abrigam cerca de 700 famílias e leva o nome de “Assentamento 17 de abril”, em memória às vítimas da chacina.
Nesta segunda-feira, o MST promoveu atos em diversos locais do país para lembrar a data e exigir novo julgamento para os policiais. Muitos dos sobreviventes guardam as marcas do confronto, com balas ainda alojadas no corpo. Mas a dor das balas é menor do que a da impunidade, porque esta incentiva outros massacres. Nos dez anos decorridos da chacina de Eldorado dos Carajás, centenas de outros trabalhadores rurais tombaram lutando pela reforma agrária. E seus mandantes e executores, na maioria dos casos, continuam impunes e rindo ao saber que a sociedade clama por justiça.