Artigo defende direito à moradia em São Paulo
O geógrafo Aziz Ab'Saber, a psicanalista Maria Rita Kehl e o advogado Pádua Fernandes co-assinam o artigo “Revitalizar sem segregar: o direito à cidade”, publicado nesta quarta-feira na “Folha de S.Paulo”. Os trê
Publicado 12/04/2006 18:06
Revitalizar sem segregar: o direito à cidade
468 famílias , aproximadamente 1.700 pessoas, moram na maior ocupação da América Latina: a comunidade do edifício Prestes Maia, 911, centro da cidade de São Paulo. Trata-se de um prédio que estava abandonado há mais de uma década e que foi ocupado pelo Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), em novembro de 2002.
Nele, existe realmente uma comunidade: em um primeiro momento, por meio de um esforço coletivo, foram removidas toneladas de entulho, a água que inundava o subsolo foi retirada e o prédio ganhou condições de ser habitado. Em seguida, os moradores dividiram entre si os serviços de portaria e limpeza.
Em um terceiro momento, as atividades culturais surgiram: Severino Manoel de Souza, catador de lixo, organizou uma biblioteca que, hoje, conta com quase 4.000 títulos e chamou a atenção da Folha de S.Paulo no início de fevereiro. Em torno dessa biblioteca, se articularam uma série de atividades culturais: oficinas de alfabetização, trabalho com sucata, vídeo, poesia, um cineclube e exposições, tais como, em março, a sala especial "Território São Paulo", da nona Bienal de Havana, também noticiada pela Folha.
No entanto, todas essas ricas experiências correm o risco de ser destruídas devido a um processo de reintegração de posse movido pelo proprietário formal do prédio, Jorge Hamuche. Ele obteve sentença favorável ao despejo da comunidade no fim de janeiro, apesar de não ter dado função social ao imóvel -que estava abandonado e degradava o entorno urbano- e de dever cerca de R$ 5 milhões de IPTU.
Felizmente, na semana passada, a ameaça de despejo iminente foi provisoriamente suspensa pela interposição, pelos advogados do MSTC, de um agravo de instrumento no Tribunal de Justiça de São Paulo. Nele se apontam equívocos nos trâmites do processo, visto que os atuais ocupantes já tinham a "posse velha" do imóvel (por ali residirem há mais de um ano e um dia) e que o proprietário não poderia pedir a reintegração -ele não tem como comprovar a posse efetiva, pois nunca usou o imóvel. De todo modo, mesmo a salvo do despejo, enquanto esse agravo não for julgado, os moradores continuam numa situação de precariedade extrema, que exige providências imediatas.
Por esse motivo, lançamos este apelo para o atual prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. Há na prefeitura um processo administrativo de desapropriação que precisa de vontade politica para andar. Caso o despejo ocorra, o prejuízo será não só dos moradores mas também de toda a cidade, que perderá essa rica experiência urbana.
Antes dessa comunidade, o local estava abandonado e servia de ponto para o tráfico de drogas. Os atuais moradores afastaram o crime e revitalizaram o comércio da região. Eles sobejamente demonstraram que a cidade é revitalizada pelos próprios cidadãos: se forem expulsos devido a um projeto segregacionista ou estetizante, é parte da cidade que morre.
Os prejuízos para a ordem urbanística com o eventual despejo serão imensos. O aumento repentino e brutal da população de rua de São Paulo em quase 2.000 pessoas levará a uma sobrecarga dos serviços e da infra-estrutura da cidade -o que poderia ensejar uma ação civil pública.
Embora o Judiciário não tenha se manifestado em favor desses cidadãos -que, vale dizer, construíram para a cidade um novo espaço onde o lixo, a lama e o crime vicejavam-, é preciso lembrar que o direito está do lado deles. A função social da propriedade e o direito à moradia estão previstos na Constituição brasileira -mas, quando ela será aplicada em favor dos pobres? O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU também os ampara -mas, quando o Brasil cumprirá seus deveres internacionais para com os direitos humanos?
Assim, junto com a Anistia Internacional (AMR 19/013/2006), apelamos ao prefeito Gilberto Kassab, recém-empossado em São Paulo, para que inicie sua administração com um gesto que marcará para sempre, positivamente, a história da cidade. A legalização da ocupação da comunidade Prestes Maia, além de resolver o problema da falta de moradia para as centenas de famílias que hoje vivem no prédio e cuidam dele, representaria um grande passo de civilidade para nosso município. Seria uma estratégia inteligente para que a vocação original do espaço urbano seja cumprida: a hospitalidade, a cooperação criativa, o trabalho coletivo, o encontro. E que o direito à cidade seja garantido àqueles que a constroem.