Rappers lançam livro ''Falcão'' na Daslu
Quarta-feira (05) na zona sul paulistana. A super boutique Daslu, santuário do consumo envolto a polêmicas desde sua inauguração, sediou uma atividade inédita e não menos polêmica: o lançamento do livro de MV Bill e Celso Athayde, ''Falcão meninos do tráf
Publicado 06/04/2006 15:54
Por Toni C.*
Chegamos na Daslu enquanto o documentário Falcão: meninos do tráfico era exibido. Estava ali causa e a consequência, só que dessa vez invertidas; a causa na platéia e a consequência dentro da tela.
Andar para conseguir um banheiro ou um ângulo para fazer uma foto ou filmagem atraia olhares assustados.
Um debate sem conforto
Inicia o debate, tendo como mediador Paulo Lima, da revista Trip e da revista da Daslu. Os debatedores são Aliado G., do grupo Face da Morte e o rapper carioca e MV Bill.
Nem todo o luxo do terraço da Daslu consegue oferecer conforto num debate desses.
Um jornalista do jornal Folha de S. Paulo pergunta se eu posso oferecer algumas informações. Concordo. Ele pede para irmos para um canto, eu aviso que não posso descuidar de minha mochila que está no chão. Explico que, em eventos numa comunidade onde sou conhecido, deixo a mochila num canto qualquer sem preocupação; mas aqui tenho que ficar atento; não confio nessa gente.
O debate aquece quando o microfone é aberto para o público.
Somos todos vítimas: e os culpados?
Um homem de terno sob medida, boa retórica provoca: “Estes jovens são mostrados como vítimas do tráfico”. Apontando para platéia, prossegue: “Nós somos também vítimas do tráfico, porque não podemos comprar um carro melhor, não podemos usar um relógio mais caro, devido à criminalidade.”
Bill responde: "Nem entramos no mérito de quem é o culpado. Isso quem colocou foi você. Mas se todo mundo é vitima… então não existe culpado? (…) Presenciei jovens sendo assassinados na minha frente e eu não podia fazer nada. E o fato nem na imprensa local era repercutido. Enquanto isso, se houver uma troca de tiros sem vítimas no Leblon isso vira manchete nos jornais. (…) Uma bala perdida num bairro nobre é importante. Ninguém se importa se essa bala antes de ir parar naquele bairro atravessou três barracos(…) Se fomos atrás de um culpado vamos ter que voltar a 500 anos e perceber que um povo foi escravizado. Que há duas classes. E que isto se mantem até hoje. As senzalas atuais são os morros…
Aliado G. emendou: “O trafico só pode ser mantido com muita esrutura. Como chegam nas comunidades aquelas armas de fabricação israelense? Ninguém nos morros tem avião, não tem navio para trazer a droga do exterior. Para manter o tráfico é necessário também o poder aquisitivo de pessoas que fazem compra aqui na Daslu, com vocês.
“A solução? está nas músicas do Bill”
O questionamento sobre o caráter e a abordagem do vídeo fez Bill responder: “Tenho convicção de que esse vídeo é necessário para impor um debate”. E Aliado: “O documentário não tem a pretensão de mostrar solução, se não não é documentário. Quer saber o que o Bill pensa a respeito? Isso não esta no vídeo, mas você encontra nas músicas do Bill. Se o documentário fosse igual a um rap, seria um romance; e se o rap for apenas documental perderá sua função.”
O momento onde ficou explicito o preconceito foi quando uma moça passou a tecer elogios aos rappers, demonstrando a boa educação que teve em colégios caros. Disse que eles, ao contrário do restante da comunidade, conseguiram se estruturar. Que são inteligentes; e que isso demonstra que o meio onde eles vivem não pode servir de desculpa para alguém entrar no tráfico ou não evoluir.
Foi quando uma moça sentada no centro do auditório passou a questionar que a maior afronta e causa dessas condições são o consumismo, a desigualdade e violência social materializados no templo consumista que é a Daslu. Os debatedores não puderam responder as colocações. Porque outra moça, negra, apresentando-se como moradora da comunidade Coliseu, pegou o microfone para defender a Eliana Tranchesi (dona da Daslu), sentada ao seu lado. Contou que Eliana esteve naquela favela, sem segurança, e ao entrar em seu barraco, elogiou como ele era limpo e as panelas brilhavam.
Esses baratos é difícil de identificar se é armação, se tá combinado, se é teatro… Sei lá!? De qualquer forma, aquilo me fez lembrar do raciocínio de Malcom X, que dizia que há dois tipos de negros. O negro da senzala e o da casa grande. Se o negro da senzala diz “Vamos fugir?”, o negro da casa grande responde: “Fugir? Porque iremos deixar o patrão? O que pode ser melhor que aqui?”.
Falcões invadem ninho tucano
É inevitável e legítimo o questionamento de pessoas da periferias, e até do próprio movimento hip-hop. Eles indagam qual a importância de nossa gente ir para espaço como a Daslu. Dizem que quem vai se vendeu ou foi cooptado.
A poucas semanas fui procurado e intermediei uma pré-entrevista de um grupo de rap num programa de TV. Na ocasião a entrevistadora perguntou qual o maior problema da favela. A resposta de um dos integrantes do grupo foi roubada da ponta da minha língua: O maior problema da favela não está na favela. O maior problema da favela é a elite.
É por isso que não se soluciona o problema do tráfico, da violência das periferias, apenas com a própria periferia, mas quando temos coragem e competência de enfrentar olho no olho debates com os verdadeiros culpados.
O encerramento na Daslu, para apaziguar os ânimos, se deu com três garotas da instituição dos filhos dos funcionários da loja fazendo perguntas. Thais, de 14 anos, leu em sua prancheta uma folha digitada: “No capítulo ´Brincadeira de Criança´, você (se dirigindo ao Bill) finaliza o capitulo com a frase: ´Percebi que infelizmente, aquela seria mais uma fonte de inspiração para a arte das crianças. A arte de imitar a realidade´. Diante dessa conclusão os alunos da 6º e 7º série fizeram uma reflexão e citaram algumas sugestões que poderiam amenizar esse quadro como: a instalação de um centro juvenil; oferecer cursos profissionalizantes; instalar consultório dentário; promover atividades esportivas.” Bill disse que não havia nada mais forte nem nenhum comentário que poderia acrescentar sob a reflexão das crianças.
Aliado encerrou dizendo: “Agora somos nós que estamos contando nossa realidade, não é nenhum especialista que não vive essa realidade. Isso aconteceu no documentário do Bill, nas nossas letras, no livro “Hip-Hop a Lápis”, no livro “Falcão”.
E Bill: “Quando me dão parabéns, fico encabulado. Porque o que eu fiz não é uma coisa bonita. Também não considero que tive coragem”.
Colaborou Marcelo Buraco
*Da coordenação da Nação Hip Hop,
colunista do “Hip Hop a Lápis”, webmaster do Vermelho