2º SEMCINE: Quixotes e outros heróis da resistência
Por Eduardo Carvalho
O último dia de debates públicos do II Semcine trouxe surpresas na programação e mostrou que a difusa Ibero-américa tem mesmo vocação para aspirações quixotescas que impulsion
Publicado 06/04/2006 17:21
Aconteceu nesta quarta-feira, 05, o terceiro e último dia dos debates promovidos pelo 2º Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, que prossegue até domingo, 09, com o encontro entre produtores e distribuidores ibero-americanos e com a mostra de filmes ibero-americanos e a dos filmes do cineasta alemão, Jünger Strawalde.
Um dia de muitas surpresa que incluiu uma reengenharia na última mesa, pois o cineasta espanhol Benito Zambrano avisou na véspera o cancelamento de sua vinda por motivo de um súbito problema de saúde. Assim, Orlando Senna que ocuparia a neutralidade da mediação da mesa foi posto na ribalta. Salvou-o a nova mediadora, Edyala Yglesias que, além de cineasta e acadêmica, é organizadora das mesas. A seu pedido, Orlando Senna pode deixar o posto de Secretário de Audiovisual do MinC para ocupar-se apenas de sua própria e estimulante cinebiografia durante sua exposição. E como um muito especial brinde, o público ganhou a presença da cineasta Tetê Moraes que está em vias de lançar seu novo filme, repleto de baianidade, “O Sol Caminha Contra o Vento”, um título bastante provocativo para um documentário co-escrito por Martha Alencar que estreou na mostra Première Brasil do Festival do Rio, em 2005.
A primeira mesa do dia contou com a mediação do cineasta baiano Pola Ribeiro que permitiu que o melhor debate do seminário até aqui se desenrolasse com naturalidade e desembocasse em temas com forte apelo político como o da articulação de um bloco ibero-americano de cinema.
Pola lembrou da necessidade daquilo que chamou de abertura para dentro, que se caracteriza pela urgência de criarmos no Brasil uma mentalidade receptiva em relação à produção cultural latino-americana em todas as instâncias que este processo abarca, do público aos distribuidores e produtores. “Apenas alcançaremos uma abertura para fora [reconhecimento internacional da produção brasileira], que muitos pleiteiam, se tivermos abertura para dentro”, sentenciou o cineasta.
O mediador ocupou-se também com uma enfática defesa das políticas de audiovisual do Ministério da Cultura, MinC, afirmando que o perfil balcão de negócios com produtores, no velho modelo de lobbies políticos converteu-se num padrão voltado para os interesses públicos. Desenhou-se uma política de Estado para a Cultura que frutificará e será lembrada, “apesar da sabotagem feita pelas elites do audiovisual brasileiro, a Ancinav, por exemplo, foi abortada antes mesmo de ser votada no Congresso, o que é um absurdo. Foi abortada, mas continua sendo gestada”. Para o bem da futura produção audiovisual no país, na opinião de Pola.
Por fim, ainda apontou que, embora o eixo Rio-São Paulo não seja o eixo do mal, apesar de às vezes ser satanizado, é preciso aumentar a participação de outras regiões do país na produção cinematográfica. Algo nesse sentido já se desenha, principalmente pela enorme capilaridade do audiovisual no tecido social. “Revelando Brasis e DocTV são exemplo disso”, ilustrou Pola Ribeiro.
O excluído, o revolucionário e o sobrevivente – Depois dos provocantes estímulos do cineasta Pola Ribeiro, mediador desta quinta mesa do 2º Semcine, ouvimos o abatido depoimento de Rui Simões. Um cineasta português que produziu apenas dois filmes, dois libelos. O primeiro contra o fascismo e o segundo sobre a Revolução dos Cravos.
O emocionante depoimento inicial — condensado a seguir — do cineasta português teve o seguinte tom: “Depois desses dois, não consegui fazer mais nada em cinema. Acabaram com minha carreira, sem dúvida a censura foi causa. Não fui cineasta do regime e não fui um cineasta que pode continuar a obra depois do regime. Como fui expulso da indústria do cinema, adotei o vídeo para continuar vivendo a experiência cinematográfica. Em 82, fiz um filme no Rio de Janeiro, na noite do dia 31 de dezembro, intitulado Noite de Iemanjá. Nele, apareço depositando uma flor ao mar como um pedido por mais sorte e quem sabe para poder voltar a filmar. Pedi muita ajuda por aí, estive com Costa Gravas que não pode me ajudar na França, tentei muitas coisas, mas nunca mais realizei um filme. Acho que Iemanjá também não pode me ajudar.”
Depois do desabafo, que se revelou o mais impactante manifesto sobre exclusão que se poderia ver por aqui, Rui declarou que a produção cinematográfica em Portugal é um blefe. Confessou-se incapaz de falar sobre ela, pois é tarefa impossível, dadas as altas doses de corrupção e censura que se impõe de maneira preventiva, na adequação que os projetos tem que obedecer para serem aprovados pelos financiadores.
A seguir, falou Tarik Souki, personalidade e personagem Venezuelano que tem se destacado nos debates internacionais como um interlocutor da cultura em nome da permanente Revolução Bolivariana que seu país vem vivendo. Não veio com função oficialista, mas como representante do Centro Nacional Autônomo de Cinematografia. Ainda assim, não pode deixar de elencar algumas daquelas mudanças que Chávez vem implantando. Deteve-se, obviamente, em cultura, com ênfase no cinema. Mesmo assim, não conseguiu concluir a lista de feitos selecionados por ele para serem expostos devido ao tempo que lhe foi destinado à mesa e que, como reza a tradição de oratória de seu governante, foi extrapolado com larga margem.
Tarik basicamente fundamentou a afirmação feita na abertura de sua fala de que “a Venezuela está vivendo uma explosão de vontades transformadoras que estão acontecendo com bases fincadas nas raízes da cultura latino-americana”. Justificou a necessidade da Revolução Bolivariana com uma frase do próprio Bolívar: “é preciso perseguir a possibilidade de se conseguir na terra a maior soma de felicidade possível”. Deteve-se um pouco no discurso de defesa do socialismo que Chávez está reinventando e que está sendo distorcido pela imprensa internacional. Afirmou que, se não fosse ali desfeita um pouco desta visão errada, não seria possível entender os aspectos culturais desta revolução e como o cinema está inserido nela. Para tanto, chegou a ler trechos do preâmbulo e de artigos direcionados à cultura na Constituição Venezuelana e demonstrou como a cultura é ali tratada como bem fundamental do povo e garantido pelo Estado e frisou a incorporação neste processo das massas trabalhadoras e dos povos indígenas.
O fomento estatal para produção de cinema, política de distribuição e exibição de obras, um protecionismo mínimo para a produção nacional, disponibilização de recursos no curto prazo, criação de salas de exibição, leis de responsabilidade social para rádios e TVs e extensão do ensino de cinema, com introduções desde o ensino fundamental até a consolidação do ensino de cinema na Universidade foram alguns dos pontos exuberantemente ilustrados com números, leis e datas, fatos e artigos ou até panfletos, deixando a impressão de que algo de muito concreto está sendo feito na Venezuela para a articulação de uma rede capaz de estabelecer a implantação de uma indústria cinematográfica no país. Uma indústria fora dos moldes neoliberais, de certo, e com fortes interfaces com outros países da América Latina, pois, enquanto a demanda por filmes nacionais venezuelanos gerada pela nova legislação não puder ser absorvida pela ainda insipiente produção naquele país, é o cinema latino-americano com obras de relevância que a suprirá.
Miguel Littín, que já participara da mesa sobre o cinema político na América Latina, voltou no último dia para deixar de lado sua cinebiografia e apresentar algumas provocações que pontuam sua visão sobre o continente. Aliás, entre os presentes, talvez tenha sido o único a explicitar seu desejo de falar mais dos anseios coletivos voltados ao futuro do que sobre as histórias das lutas do próprio passado e, vejam, sua história é tão radiante que parte dela se transformou em livro escrito por Gabriel Garcia Marques. Isso dá notícias da condição sempre bem controlada de seu ego e reafirma o valor deste artista que nunca desistiu de lutar, mesmo agora, quando poderia apenas desfrutar das benesses de sua laureada profissão, luta com o entusiasmo daqueles que, por tanto crerem em liberdade são absolutamente livres para continuar lutando por ela. Deixou entrever, em mais de uma fala, ser um homem que abdicou do curso de sua vida para fazer um tipo de cinema que, por ser estandarte da esperança daquela liberdade que sempre buscou, é a justa liberdade que alcançou e que lhe impulsiona, ad infinito, a mais lutar. Se não viveu sua vida, com certeza sobreviveu sua vida. Um sobrevivente das lutas contra o autoritarismo, um sobrevivente da crença de que não há vitória enquanto houver pelo que lutar.
Littín, nitidamente provocado pela eloqüência de Tarik Souki, demonstrou que simpatiza com a revolução permanente, mas enfatizou sua preferência por governos democráticos e saudou o que se instala em seu país. Categorizou que nenhum país sul-americano reúne todas as condições para solucionar sozinho os problemas que rondam o cenário cinematográfico. Neste sentido, reconhece a liderança do Brasil, motivada pelos resultados do ciclo produtivo que estamos apresentando, e propõe uma aliança continental que poderia começar a ser urdida a partir da extinção dos bairrismos até atingirmos uma real integração. Sobre isso, contou que, por exemplo, o último filme da vizinha Bolívia ele assistiu na Índia, e o último filme brasileiro também viu na Índia. “É preciso acabar com isso. Precisamos criar leis de reciprocidade entre os países sul-americanos que favoreçam a troca de fundos e de público”. Citou, ainda, números da Índia e do Egito que produz atualmente a espantosa marca de mil filmes ao ano. “Não é possível… nós temos um entrave colonial!”, conclui o cineasta chileno.
O debate que se seguiu com o público, composto basicamente por universitários, mostrou um amadurecimento no entendimento dos processos e entraves históricos que determinam o cenário do cinema latino-americano. Pontos relevantes das questões recorrentes já estão registradas no relato das exposições.
O autor de filmes que não existem – A pedido da mediadora Edyala Yglesias, Orlando Senna abriu o debate da tarde declarando-se alentado pela possibilidade de, depois de 4 anos falando só de assuntos oficiais, poder falar um pouco de seu cinema. Estava ali o cineasta e não o Secretário de Audiovisual do MinC.
Começou o relato com sua versão própria de “Cine Paradiso”, narrando sua infância de clandestino freqüentador de um cinema de propriedade de seu primo, depois a adolescência na Baixa do Sapateiro, onde assistia 3 filmes por dia, a juventude de documentarista no fervente caldo cultural da Bahia nos anos 60. Desde sua estréia profissional com Roberto Pires, produziu significativa obra que inclui filmes censurados nos anos 70, como “Iracema”. Foi roteirista e professor de importantes escolas de cinema, com destaque para a Escola Internacional de Cuba, como costuma ser chamada.
O que mais marcou, no entanto, foi seu relato de dois episódios envolvendo dois filmes que ele fez e que não existem. Um deles, “69: a construção da morte”, narra a história de um jornalista que compra a morte de um suicida em troca da exclusividade da notícia. O ano da ação é 1969 e o filme era um painel daquele ano terrível. O produtor, ao ver a primeira exibição, negou-se a dar continuidade ao projeto, pois aquilo era muito perigoso. Pelo que assistira, seus realizadores não seriam censurados, não seriam degredados, seriam sumariamente eliminados. Diante da insistência para reconsiderar, o produtor pediu uma noite para pensar. O filme nunca mais foi visto. Ele o destruiu durante aquela noite.
O outro filme que não existe está imerso em um cenário também bem característico daqueles anos. Tratava-se de um filme adaptado de uma peça de Augusto Boal, intitulado “Rebelião em Novo Sol” e de um documentário sobre ligas camponesas, ambos produzidos para comporem um espetáculo multimídia do CPC. Senna conta que a película ia sendo destruída por um tenente durante o interrogatório no qual ele era acusado de subversão. Alguém devia filmar estas histórias!
Patrícia Flores, representante do Conselho Nacional de Cinema da Bolívia, apresentou, em seguida, um triste inventário da cinematografia e da estrutura do cinema em seu país, que conta com apenas estimados 2,5 milhões de espectadores em todo o país, em cuja capital há apenas umas 20 salas, sempre mais vazias do que todas as muitas e antigas salas hoje convertidas em igrejas e templos. A cinematografia exibida é quase totalmente hollywoodiana e a pirataria apoderou-se do mercado de audiovisual.
Contou que só restaram fragmentos da produção anterior a 1950, toda ela voltada ao registro do folclore e da exuberância da natureza, sempre com tom exótico. De lá para cá, pouca coisa foi feita e poucos nomes de expressão foram lembrados. Existiram alguns filmes autorais, realizados por quixotescos cineastas independentes que eram diretores, produtores, roteiristas, editores, montadores de seus próprios filmes.
Quanto à chegada de Evo Morales ao poder, Flores diz que ainda é muito precoce para se falar em uma política cultural a ser implantada, pois a nova administração está mergulhada na busca de solução para problemas bem mais prementes. Ela encerrou declarando a urgência da criação de legislação nova para o cinema em sua pátria e em toda América do Sul, para que aumente o diálogo entre os países vizinhos e para que, com isso, a Bolívia possa contribuir de modo bem mais efetivo com a diversidade cultural da filmografia do continente.
A cineasta e jornalista Tetê Moraes, muito atuante no registro documental de demandas sociais e culturais, encerrou a última mesa do seminário destacando a liberdade do trânsito entre diferentes tecnologias, suportes, materiais e gêneros, o que aponta para uma excelente qualidade da produção cinematográfica nacional da atualidade: a diversidade de resultados destas combinações. De resto, elencou temas já discutidos em mesas anteriores, como as dificuldades de distribuição. Exibiu o trailer de seu mais recente filme, um documentário sobre a trajetória do precursor do jornalismo alternativo brasileiro “Sol”, cujo título é “O sol caminha contra o vento”. Um documentário com depoimentos de muitos que viveram aqueles anos, como Caetano, Gil, Ziraldo, Chico Buarque, Ruy Castro, entre outros.
Curso de cinema na ufba e Ancinav – Durante o debate com a platéia, voltou a reivindicação, presente desde o primeiro dia, pela criação de um curso de cinema na Universidade Federal da Bahia. O Secretário presente sugeriu que um abaixo-assinado fosse elaborado. Alguém da platéia provocou, perguntando se ele assinaria. Respondeu afirmativamente e, em poucos minutos, chegou às mãos de Orlando Senna um documento com a reivindicação. Assim abriu-se o abaixo-assinado: com a assinatura de um cineasta baiano, Secretário de Audiovisual do MinC, durante um seminário de cinema no salão da UFBA que acaba de conceder o título de doutor honoris causa ao ilustre cineasta Nelson Pereira dos Santos. Parece que há elementos suficientes para que tal reivindicação seja acatada.
Perguntado sobre o projeto da Ancinav, Senna declarou que “a lei está agora na mão de um coletivo de ministros e a decisão do presidente Lula foi a de encaminhar a questão em duas direções: a formulação da lei geral e a subseqüente ampliação da Ancine para uma Agência do Áudio Visual que será responsável pela regulamentação da lei, numa dinâmica que tem mais aceitação por parte das muitas forças e poderes que convivem em nosso país. Neste momento estamos trabalhando para que a Ancine esteja pronta para quando isso acontecer. O encaminhamento da lei agora, deixou a coisa melhor para alcançarmos uma regulação correta com a questão da TV digital. A radiodifusão e a radiofonia deram-se conta de que sem uma regulação adequada, a TV digital não vai funcionar no Brasil da maneira democrática que o governo e a sociedade esperam”.