“Quatro minutos”: radical elaboração

Filme do diretor alemão Chris Kraus trata do conflito entre as culturas clássica e popular, no confronto entre professora de piano e jovem presidiária, que desafia convenções.

Numa demonstração de que o ser humano é capaz de traduzir seus estados psicológicos através da ferocidade com que reage a qualquer cerceamento ou afeto, Jenny von Loeben, de 19 anos, presidiária condenada pela morte de um desconhecido, mantém durante os 112 minutos de “Quatro Minutos”, filme do alemão Chris Kraus, o ar de quem está pronta para provocar danos irreversíveis ao próximo, sem sentimento de culpa algum. Há nela uma violência latente, que gera mal estar. Seu olhar intenso, seus gestos bruscos e uma capacidade de infligir dor ao outro, não produzem qualquer simpatia do espectador. Em determinado momento, ele imagina estar diante do mal absoluto. Distante da imagem que passa a professora de piano Traude Kruger (Monica Bleibtreu), com sua articulada calma. Ela representa, em suma, a contenção da alta classe alemã, por sua cultura e empenho em se dedicar às presidiárias entregues aos cuidados do Estado.


 


 


Ambas, Jenny (Hannah Hersprung) e Kruger, irão se intercambiar, inverter seus papéis ao longo do filme, mostrando o quanto o ser humano se esconde à medida que as camadas de seu passado vão sendo retiradas. Ninguém sabe por que Kruger, sabedora da alta periculosidade de Jenny, decide tomá-la como aluna, até a jovem desfazer, sentada ao piano, todas as dúvidas. Trata-se de uma pianista genial, carente de orientação para fazer sua criatividade emergir. Ninguém poderia imaginar que a garota vista seqüências atrás, na abertura do filme, alheia à agonia da companheira de cela, fosse capaz de traduzir seu rancor no belo encadeado do “Concerto para Piano”, de Mozart. O faz com virulência, como se atacasse as teclas do piano, e eles mutassem sua dor em arte. Com selvageria, desprezo por quem, como Kruger, estivesse a seu lado, ela mostra que muito ainda precisa ser desbastado em seu ser para estar pronta a executar a peça em público.


 


 


Professora de piano diz que Jazz é música de negros


 


 


As tentativas de Kruger de domesticá-la, indicando-lhe caminhos a seguir, ao invés de aproximá-las terminam impondo desafios. Jenny, embora jovem, revela uma tendência musical execrada pela mestra. Cultora dos clássicos, principalmente Schulman e Mozart, Kruger chama o Jazz, adorado por Jenny, de música de negros. Duas personalidades fortes, dispostas a não se submeter à tendência da outra, terminam por se chocar. E representam, por outro lado, o conflito entre a tradição clássica alemã e o som vindo das camadas populares, no caso os negros estadunidenses. A Kruger parece algo menos elaborado, que não exige técnica ou disciplina. É justamente a estes que Jenny não quer se submeter. Algo de intransigente, de certeza de que será levada por caminhos que não refletem suas angústias e sonhos, emerge dela a todo instante. Não se traduzem em palavras, transbordam em gestos, violência insuportável ao seu redor. Das companheiras de cela que a odeiam; aos carcereiros que a temem. Nada em sua volta se mantém intacto.


 


 


Essa pedra bruta, feita por Hannah Hersprung com total entrega, é fascinante pela intriga que cria no espectador, interessado em saber como ela emergirá do inferno em que se meteu. Quando seus dedos trafegam pelas teclas do piano o sublime logo é substituído pela amargura. Sente-se que há algo preso, querendo saltar, explodir em sangue e fel. Ela se lança ao instrumento como se atracasse com alguém que inferniza sua vida. E dele tira ao invés de pus a beleza das notas da peça de Mozart. Contribui para isto, o clima que a envolve, a partir das paredes do presídio, dos móveis e do espaço envolto sempre em sombras. Quando ela se move ou mesmo excuta notas do “Concerto para Piano”, eles vêm sempre acompanhados de uma profusão de sons metálicos, quedas de peças de ferro, bater de grades, refletindo assim a luta interior que trava naquele momento. Os espaços por onde se desloca ou se encontra não lhe dão liberdade para soltar-se, sempre a empurram para a escuridão.


 


 


Relação entre professora e aluna retrata conflito entre o velho e o novo 


 


 


Este tratamento dado pelo diretor/roteirista Chris Kraus contribui para a compreensão do personagem, reforça a regressão ao estado selvagem em que ela se encontra. É a barbárie em estado bruto. Torna-se visível que sua recuperação é quase impossível. Seu contraponto é a calma Kruger; velha, andar lento, gestos comedidos, que a trata como uma aluna rebelde. Apenas ela vê chances de torná-la alguém capaz de apresentar-se para uma platéia seleta, não dotá-la de sociabilidade. A cada ação desmedida de Jenny, ela é obrigada a se desdobrar para que sua tarefa não seja suspensa. Observa-se que ela busca algo mais do que transformá-la numa concertista digna do nome. Kraus introduz, para isto, flash-backs que tentam criar um elo entre seu comportamento atual e o que lhe aconteceu no passado. Qualquer mestra, por mais dedicada que fosse, não se esforçaria tanto. Ela esconde algo grave, que precisa reparar. Jenny é sua chance, ainda que sujeita a um fracasso de difícil superação.


Têm-se assim, ao estilo “filme sala de aula”, o choque entre a mestra e a discípula, e ao gênero “filme de prisão” as perseguições de carcereiros e as hesitações da direção do presídio sobre o temor de se ter alguém de tal periculosidade solta, exercitando-se ao piano. Só que em “Quatro Minutos” os clichês destes gêneros de filme terminam por reforçar sua estrutura. Eles formam uma espécie de ganchos que vão, aos poucos, adensando a narrativa, impondo obstáculos a Jenny e a Kruger, para tornar sua tarefa ainda mais difícil. Afinal, Jenny criou inimigos demais para escapar ilesa. Estas camadas vão surgindo tanto no passado de Kruger quanto no de Jenny. O lado de fora se impõe ao que ocorre do lado de dentro. A narrativa de Kraus, ajudado pela brilhante fotografia de Judith Kaufmann, avança nesta construção. Principalmente ao usar pouca luz nos espaços por onde ambas circulam. Representam a ausência de saídas interiores e opções reais no exterior. Há, enfim, um todo, como o faz também a música de Annete Focks, que traduz estados psicológicos, como nas cenas em que Jenny está ao piano ou hesita em aceitar as orientações de Kruger.


 


 


Luta interior da jovem é o choque entre eros e thanatos


 


 


Muito contribuem para isto, a tradição imagética alemã, cujo expressionismo surge nos flash-backs. Nas lembranças de Kruger, nos ataques ao quartel, agora transformado em presídio. Corredores, subterrâneos mal iluminados, figuras que se movem iguais a fantasmas pelos escombros, nunca são vistos em sua inteireza. São recortes, quase nuances. São, no entanto, o passado de Kruger; revelam seu envolvimento com forças que ela prefere ignorar, ainda que a faça se remeter a alguém a quem amou. Enquanto as lembranças de Jenny são mais claras, centradas na figura paterna. Lembrança que ela prefere expulsar para seu profundo inconsciente. Esta, na verdade, é sua luta: com fato que insiste em emergir e entre Eros e Thanatos. Eros é a música, Thanatos seu ódio a tudo que a rodeia, incluindo seres humanos; principalmente o pai. Nada que queira, por prazer, fazer vir à tona. Diferente de Kruger, que atravessou décadas de sua vida no mesmo prédio, do Nazismo à etapa histórica atual, cheia de culpa, em busca da redenção, dado que sua perda foi suficiente, a seu ver, para purgar seus crimes.


 


 


Ambas, cercadas pelas grossas paredes da prisão, regras draconiamas, vigiadas pelos carcereiros, têm como única saída a música. Jenny custa a percebê-lo. Kruger, com seu jeito estudado, vai desbastando as camadas do diamante bruto, enquanto desbasta as suas próprias. A música aqui é o meio para ambas chegarem à liberação. Não apenas de acerto de contas consigo mesmas, muito mais: a superação da cultura burguesa pela popular. A articulada Kruger cria códigos que são obedecidos a contragosto pela desnorteada Jenny; esta, vendo ser sua única chance, obedece, não sem desafiá-los. Muitas vezes fracassa. Embora inteligente, falta-lhe a esperteza suficiente para manipular as regras a seu favor. Ao espectador parece haver articulação entre a dureza de Kruger e a aspereza da jovem. Elas são, na verdade, lados opostos da mesma porta, que ao se abrir, dará espaço para ambas. Atrelam-se de tal forma que o fracasso de uma levará a outra ao abismo. Nenhuma poderá triunfar sem outra.


 


 


Sons e música contribuem para reforçar estados psicológicos


 


 


Este o acerto de Kraus, driblar os clichês, criando uma obra harmoniosa. Os personagens não agem em linha reta: criam obstáculos para si próprios. Kruger tentando levar Janny a abraçar a oportunidade, ela mesma não querendo ter mais um fracasso. Sua idade não lhe permitirá uma derradeira chance. Jenny, por seu turno, tem de se apegar a Kruger para soltar-se, evadir-se. Não se trata de escapar aos muros da prisão, pelo contrário, é desvendar para os que a cercam de que há algo errado com o que lhe apregoam. Kraus lembra a todo instante que a culpa a move, mas a inocência também. A música é, então, sua saída para o sol. Ao dar esta abordagem ao filme, uma realista, do presídio, com sua crueza diária, outra simbólica, permeada pelas situações históricas e psicológicas, Kraus tornou-o rico em nuances, ação e buscas. 


 


 


Poucos cineastas hoje conseguem entrar num turbilhão dramático deste e não se perder. Mesmo quando usa certos truques, como a fuga urdida por Kruger, denuncia a hipocrisia do chefe da carceragem, Kowalsky, torna Jenny personagem de “filme de ação”, o todo se fecha. Consegue manter a narrativa no chão. Ainda que o espectador nesta altura tenha se perdido no cipoal de janelas, entrechos e linhas narrativas, com atitude, como a do policial, inimigo de Jenny, e a hesitação do diretor do presídio. Nada disso, no entanto, obscurece o que interessa em “Quatro Minutos”: a dualidade que pode existir entre o clássico e o popular, com acordes de vanguarda. Janny o faz com ferocidade, uma violência inaudita, que silencia a platéia onde ela se apresenta e prende o fôlego do espectador que a assiste boquiaberto com a capacidade de Kraus torná-la um personagem moderno. Ela não se submete aos ditames de Kruger, encontra sua própria manifestação, unindo os acordes do “Concerto para Piano In A Minor Op 54”, de Schulmann, aos improvisos do Jazz.


 


 


Comportamento de Jenny rompe com estrutura mercadológica


 


 


Jenny rompe, desta forma, a estrutura mercadológica atual, que considera qualquer rebeldia um dano aos cofres das produtoras culturais. Nada pode escapar ao aceitável, ao consumível, padronizado, feito o classicismo de Kruger, conservador, e, denuncia Kraus, nazista. Caso isto aconteça, quem o fizer acabará nos corredores ou em estreitos espaços ditos de arte, quando muito. Ao lançar-se ao piano, ela abre caminho para a manifestação cultural que quer emergir, porém, vê-se tolhida pelas estruturas mercadológicas. O faz assim mesmo. A princípio causa estranheza, silêncio, depois colhe os frutos, para espanto e, depois, efusividade de Kruger. Por momentos, ela se confunde com o piano, tornado seu brinquedo, usando todas suas teclas, cordas, tampo, como se fossem vários instrumentos. Imagina-se que alguns deles se romperão, dada à violência com que os toca. Nunca se viu tal radicalidade, numa interpretação. Hersprrung, com seu jeito agressivo, deixa de lado qualquer tendência de interpretação – do distanciamento brechtiniano à elaboração introspectiva do Actor Studios para viver a deslocada Jenny. Difícil deixar o cinema sem conservar por horas seu jeito radical de interpretação. Sua Jenny é cheia de vida!


 


 


“Quatro Minutos” (“Vier Minuten”). Drama. Alemanha, 2006, 112 minutos. Direção/roteiro: Chris Kraus. Fotografia: Judith Kaufmann. Música: Annete Focks. Elenco: Mônica Bleibtreu, Hannah Hersprrung, Sven Pippig.


(*) Vencedor do 57º Prêmio do Cinema Alemão de 2007.

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