“O Segredo do Grão”:Tragédia burguesa

Com uma história sobre operário árabe às voltas com as transformações no mercado de trabalho e as contradições familiares, o diretor franco-tunisiano, Abdellatif Kechiche, analisa as relações de classe e de família numa França em transformação.

De repente, em “O Segredo do Grão”, do franco-tunisiano, Abdellatif Kechiche, o que parecia ser um filme sobre o cotidiano de uma família árabe vivendo em Marselha, cidade portuária francesa, se transforma numa narrativa sobre o absurdo de uma existência, que escapa ao controle de seu protagonista, o operário Slimane Bejá (Habib Boufares). O entrecho antes centrado nas relações entre ele, Bejá, sua ex-mulher Souad (Bouraouïa Marzouk), a atual companheira, Latifa (Katika Karaoui), e seus filhos e a enteada,  Rym (Hafsia Hersi) se amplia e a tragédia humana surge em toda sua dimensão. De forma que a família, como microcosmo da sociedade francesa, enriquecida pelos imigrantes árabes, comporta uma leitura onde entram do Estado às estruturas capitalistas, passando pelas relações amorosas, até chegar ao acaso que dita o desfecho do filme.


 


Há um quê de parábola nesta história, cujo título em francês é “La Graine et lê Mulet”, ou seja, o “O Grão e a Mula”, que se configura na semente que gerou vários frutos, os filhos, e a mula, o pai, que os carrega ao longo da vida, sem ter condições de ater-se às suas próprias contradições. Nestes desencontros, ditados pela cultura de seu país, a Tunísia, nunca mencionada no filme, mas implícita nos diálogos entre Bejá e seus filhos Riadh e Hamid, ele, embora já os tenha criado e às filhas, ainda se sente apegado e responsável por eles. Como se sua responsabilidade não cessasse jamais. O que traduz as relações familiares árabes, onde o homem se divide entre suas várias mulheres sem que isto seja recriminado. Tal é a cultura milenar sobre a qual está assentado. Mas sobre seus ombros recai a supervisão dos grãos por ele plantados.


 


Numa cena, logo no início do filme, vemos Bejá perambulando por seus ninhos, o habitado pela ex-mulher, Souad, o da filha Karmina e, finalmente, o hotel onde agora mora com Latifa. Ele não vive mais com Souad, porém se sente na obrigação de visitá-la, provê-la do peixe fresco que traz do cais, onde trabalha como reparador de embarcações. O vemos depois se dividindo para manter boas relações com os cinco filhos de seu casamento com Souad e trocar idéias com a enteada Rym. Este ser de poucas palavras, rosto vincado, olhar desconfiado, em momento algum rompe as amarras, pelo contrário, sente-se vergado, tal é o peso que a tradição o enreda. Nem quando o Hamid, percebendo seu cansaço, o exime de continuar a sustentar tal situação, incentivando-o a regressar ao seu país, supostamente a Tunísia, ele não responde afirmativamente, apenas escuta. Amoldou-se àquela situação e dela não parece querer se afastar.


 


Bejá não é, no entanto, acomodado em suas relações de trabalho. Nela reage quando o administrador da empresa de reparação de embarcações o adverte por não mais produzir como antes. Ele o questiona, retruca com veemência sobre seus direitos depois de mais de 30 anos de trabalho. Teme por ser dispensado. Aos 60 anos de idade o mercado de trabalho se fecharia para ele. Do que se aproveita o administrador para empurrá-lo contra a parede. E a discussão avança para as relações de trabalho ditadas pela globalização e o neoliberalismo, que impõem a substituição do contrato de trabalho pleno (carteira de trabalho assinada e direitos trabalhistas garantidos), pelo contrato precário (jornada de trabalho reduzida, com salários menores e limitados ou nenhum direito trabalhista). Sua fragilidade enquanto mão-de-obra especializada se esboroa ante o poder do administrador, interessado em substituí-lo  por outro imigrante árabe, porém mais jovem.


 


A compreensão deste perverso processo em que o capital se sobrepõe ao interesse e o direito do trabalho vem numa brilhante seqüência na casa de Karmina, onde Bejá se encontra com o genro, trabalhador na mesma empresa. Este lhe explica, em detalhes, como os ganhos da empresa se multiplicam com os contratos precários.  A cada número e detalhe o expectador percebe o engodo da tão elogiada flexibilização dos contratos de trabalho, reclamada pelos empresários como forma de, segundo eles, destravar as relações capital/trabalho e deslanchar os negócios, truncados, ainda segundo eles, pelos “excessivos” direitos trabalhistas. Kechiche desmascara tais discursos em diálogos ágeis, cheios de nuances, enquanto Karmina se vê às voltas com a filha de dois anos, a quem ensina os rudimentos higiênicos.


 


 


Ambos, Bejá e o genro, ajudados por Karmina, se vêm envoltos em algo cuja dimensão lhes escapa. Encontraram o rabo do dragão, mas ainda não sabem como derrotá-lo. Kechiche tampouco aponta caminhos, apenas sobrepõe camada sobre camada, para mostrar o peso que Bejá, o mulo, carrega em suas costas. De um lado está sua família, os cinco filhos, de outro a atual companheira e a filha desta, a vergá-lo está a empresa, que pretende dispensá-lo numa idade em que os caminhos se bifurcam e as soluções se estreitam. Com esta exposição, Kechiche termina por nos levar há pistas falsas, do cotidiano da família, onde muitas vezes Bejá não se encontra, mas seu nome é citado e seu comportamento é avaliado. Noutras vezes, ele está presente e apenas ouve; mergulhado que está em suas contradições, ditadas pela tradição árabe, as relações familiares e de trabalho e a idade, enfim uma vida sobre a qual tenta ter algum controle. O que vem na forma de construir seu próprio caminho, adverso ao que seguiu até aquele momento.


 


Estes entrechos de “O Segredo do Grão” vêm entremeados por seqüências dominadas pelas relações familiares, reforçando a parábola e lançando luzes sobre a vida que Bejá viveu até aquele instante. Numa delas, brilhante, com uma direção iluminada, a câmera de Kechiche passeia pela sala, debruça-se sobre os personagens e retira delas o microcosmo da sociedade globalizada. Trata-se do almoço na casa de Souad, com a presença dos cinco filhos: as filhas Karmina, Lilia e Olfa, e os filhos Riadh e Hamid. A eles vêm se juntar os russos, Serguey e sua irmã Júlia, companheira de Hamid, e a filhinha destes. Aos poucos chegam outros e outros:  Thomas, marido de Lilia, Henry, companheiro  Olfa, e os filhos destes. Ficam se deliciando com cuzcuz tunisiano. Várias culturas estão presentes, numa fusão de povos, onde as relações familiares se impõem. Pouco importa o que dizem; não muito diferente do que falam filhos, noras, genros e netos, aos domingos em volta de uma mesa ou de uma churrasqueira; o que vale ali é a ausência de Bejá.


 


 


Às vezes a conversa se desvia dele para as relações entre Lilia e Thomas, mas logo retorna para a convivência dele com Souad. Esta, sob a brincadeira das filhas, principalmente Karmina, deixa antever mágoa, por ter sido preterida, mas se diz livre, disposta a seguir em frente. Aflora, neste instante, outro tipo de relacionamento entre aquelas mulheres, vindas de uma cultura em que a submissão ao parceiro é traço cultural, milenar. Elas se desprenderam da tradição e deixam agora emergir suas predileções, seus desencantos e desejos. Em várias seqüências, Kechiche expõe o comportamento de Souad, já na terceira idade, presa aos ditames milenares de sua cultura, e suas filhas, ainda jovens, libertas destas amarras, sem discurso, que o explicite. Em sua casa, quando na visita do pai, Karmina mostra-se rompida com o costume de a mulher manter-se distante da conversa dos homens. Intromete, dá opiniões e confronta-os. Nenhuma referência há dos costumes árabes, nem mesmo a presença de símbolos que os emule.


 


 


Se Karmina, como seu desprendimento, traduz com excelência a libertação da mulher árabe dos adornos e rituais, em seu contexto ocidental, seu reflexo maior é Rym. Espécie de mentora de Bejá, dada à sua disposição para a luta, o confronto e o linguajar afiado. Jovem, saindo da adolescência, ela é hábil e inteligente o suficiente para orientar e acompanhá-lo em sua nova empreitada. A de se tornar um empreendedor. Se Karmina e suas irmãs não guardam nenhum traço de sua cultura, tal a assimilação aos costumes franceses, Rym a guarda para uma surpresa para o espectador. São dela duas brilhantes seqüências deste surpreendente “O Segredo do Grão”. A discussão, espécie de monólogo que ela trava com a mãe, Latifa, cheia de imprecações, desafios, mimos e desaforos, é bela, dotada de variações, silêncios e amargura. Duas mulheres tentando demarcar seu espaço, tendo uma noite a desafiar. Para isto teriam que jogar todo seu encanto, charme, sensualidade e ousadia.


 


 


Quando elas se encontram no espaço onde isto se dará, Kechiche fazer emergir toda a beleza, criatividade e emoção que o cinema hoje raramente nos dá. Pena que não se pode ir adiante para não tirar do espectador o direito de se surpreender e encantar. A garota Rym se transforma, usa trejeitos, artifícios e o poder da cultura árabe para, com sensualidade, fechar um dos entrechos do filme. Ela usa o corpo como arma, num instante em que tudo poderia vir a abaixo. E se percebe de onde vem toda aquela energia; de uma cultura milenar não negligenciável. E ela a usa com inteligência, como o faz quando se torna assessora de Bejá, em suas caminhadas pelos gabinetes da prefeitura de Marselha. É como se dissesse: use a arma que puder, no momento necessário. O conflito que havia tomado conta do ambiente, no momento em que tudo poderia explodir, é contornado por ela, com equilíbrio.


 


 


Momentos iguais a este, dominados pela força das personagens, todas fortes, embora isto não aflore a todo instante, tende a reforçar o papel da mulher na sociedade francesa. E vale para outras sociedades, a brasileira inclusive, pontuam “O Segredo do Grão”. Kechiche, ao invés de usar apenas o discurso, tão comum no cinema francês, vale-se da ação. Contrapõe o uso que Hamid faz de sua cultura, ao se relacionar com várias mulheres, ao direito de Júlia de repreendê-lo. O faz aos trambolhões, xingamentos, como se expelisse fel, no instante em que o irmão Serguey a visita. Bom malandro, ele, Hamid, não a contesta, no seu entender, ela deveria entender seu direito. Quem o chama às falas é a irmã Karmina, aliada da cunhada neste combate ainda desigual. O que vale aqui não é somente a posição da mulher, de reagir, de contestar uma posição, ainda que milenar, mas sua insubmissão. Algo está em mutação e precisa se estender ao papel exercido por ela, numa sociedade ainda machista.


 


 


A exacerbação da cena, da fala de Júlia, de Rym e de Karmina, em longa seqüência, serve de alerta. É como dar voz a milhares de mulheres, não só nas sociedades árabes, mas de todo o planeta, onde os focos de constrangimento perduram. A manutenção dos costumes e rituais, libertados do que impõe submissão à mulher e aos demais segmentos sociais desfavorecidos, como forma de manter saudáveis diferenças; significa também resistência à globalização dessa mesma cultura. Não é preciso ser igual para ser desenvolvido, é necessário ser diferente para contribuir para a igualdade entre os povos e classes sociais. Kechiche bem o demonstra na exemplar seqüência do almoço na casa de Souad. Ali estão árabes, russos e franceses à mesa, tendo a uni-los mulheres de cultura totalmente diversas à deles.


 


 


Estas cenas se sucedem sem gerar ganchos para as seguintes. O que vem depois de um entrecho (seqüência sem ligação com a anterior e a próxima) amplia o leque de observações do roteirista, no caso, Kechiche, diretor do elogiado “A Esquiva”, sobre as conseqüências das ações dos personagens. E, sem gerar expectativa para o que vem a seguir, abre espaço para a introdução de novos elementos que elucidam o papel de mula que Bejá exerce no filme. Além da família e da empresa, ele se vê nas teias da burocracia estatal. Ela o joga de um lado para o outro quando tenta levar adiante seu empreendimento: o de instalar um restaurante num barco, a ser ancorado no melhor espaço do porto de Marselha. A sucessão de guias, licenças, projeto e liberação de recursos lhe mostram o quanto é difícil transladar das condições de reparador de embarcações para o de pequeno empresário, dono de restaurante típico, pois sua idéia é servir cuscuz à colônia árabe da cidade e aos freqüentadores franceses. É preciso muito mais do que capital para conseguir isto.


 


 


Todo esse esforço surge ao longo de “O Segredo do Grão” quase sem ênfase ou a criação de ganchos, que abrisse espaço para, no final, os elos irem se fechando. Kechiche não está interessado neste tipo de cinema. Com sua parábola quer tão só deslindar o modo como Bejá se vê envolvido pela cultura que não lhe ofereceu alternativas aos impasses criados pela bigamia; e encurralado pela estrutura capitalista que o expele há todo momento. E uma sucessão de fatos aparentemente banais abre um leque de ações que vão se fecham, enquanto cria uma tensão que leva o espectador a indagar sobre como afinal irá acabar aquilo tudo. Suspense, mistério e drama se estabelecem; dominados pelo absurdo que toma conta de Bejá. A cada dessas ações criam possibilidades de soluções as mais desencontradas.Todas elas surpreendentes, demonstrando a capacidade de Kechiche de unir reflexão a entretenimento. 


 



De qualquer modo, o que fica na mente do espectador é a montagem dessas mesmas ações, que ele quer ver resolvidas, mas percebe que Kechiche acabou por armar para ele um quebra-cabeça. Ele tem que esperar que cada janela aberta se feche, e não do jeito que ele imagina. A o invés do encontro, haverá sempre o desencontro. Ao invés da solução, ele, Kechiche, achará um meio de não dá-la explicitamente. Dará dicas, através de elipses. O espectador desatento não as desvendará. Ficará preso ao absurdo das seqüências finais, enredado nos labirintos abertos pela circulação incessante de Bejá por escadas, passarelas, ruas escuras, entre risos e roncar de motor de motocicleta. A mula, enfim, verga-se sobre o peso das contradições da cultura que o criou e do sistema capitalista que o vitimou. Brilhante!


 


 


“O Segredo do Grão” (“La Graine et lê Mulet”). Drama. França. 2007. 151 minutos. Roteiro/direção: Abdellatif Kechiche. Elenco: Habib Boufares, Hafsia herzi, Faridah Benkhetache, Katika Karaoui. 


 


 


(*) Prêmio Especial do Júri, Prêmio Melhor Atriz Jovem (Hafsia Herzi), Prêmio Crítica Internacional no 64º Festival de Veneza de 2007.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor