O satânico Chávez x o bento cristão

No dia 18 de maio, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, soltou as travas da língua e mandou uma mensagem ao papa Bento XVI: ''Aqui aconteceu algo muito mais grave que o Holocausto na Segunda Guerra Mundial e ninguém pode negar essa verdade. Sua Santida

No dia 22, em Roma, o papa não se desculpou, que não é de seu feitio infalível, mas acusou o golpe: ''Não podemos ignorar os sofrimentos e as injustiças impostas pelos colonizadores às populações indígenas, cujos direitos humanos e fundamentais foram freqüentemente ultrajados''. No Brasil, ao abrir a 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Ratzinger havia dito: ''O anúncio de Jesus e de seu Evangelho não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura estrangeira''… De volta ao Vaticano, o papa confessou terem sido ''crimes injustificáveis'' os cometidos pelos colonizadores.


 



Com os olhos mais voltados para o paraíso celeste do que para este infernal mundo, o papa decerto não leu a obra de um correligionário seu, um jesuíta, impressa em Lisboa em 1711, dedicada ao padre (atual beato) José de Anchieta, que dá orientações sobre como produzir cana-de-açúcar, minerar ouro e tratar negros e índios no então Novo Mundo. O Santo Ofício (Inquisição) deu aval à obra: “Não contém este tratado cousa suspeita contra a nossa santa fé, e pureza dos bons costumes, e assim, Vossa Ilustríssima servido, pode conceder a licença que pede o autor”. Trata-se de “Cultura e opulência do Brasil”, de André João Antonil, pseudônimo do toscano João Antônio Andrioni (1650-1716), que ingressou na Companhia de Jesus em 1667 e veio para o Brasil. O rei português D. João V chegou a proibir a distribuição do livro, temendo que atiçasse a cobiça de outros países pelas posses de Portugal no além-mar.


 



No capítulo IX, Como se há de haver o senhor do engenho com seus escravos, Antonil reconhece que esses explorados “são as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente”. Prefere “os mulatos; porém, muitos deles, usando mal do favor dos senhores, são soberbos e viciosos, e prezam-se de valentes, aparelhados para qualquer desaforo. E,contudo, eles e elas da mesma cor, ordinariamente levam no Brasil a melhor sorte; porque, com aquela parte de sangue de brancos que têm nas veias e, talvez, dos seus mesmo senhores, os enfeitiçam de tal maneira, que alguns tudo lhes sofrem, tudo lhes perdoam; e parece que se não atrevem a repreendê-los: antes, todos os mimos são seus”. Chega a considerar que “o Brasil é o inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas; salvo quando, por alguma desconfiança ou ciúme o amor se muda em ódio e sai armado de todo o gênero de crueldade e rigor”.


 


Assim como Ratzinger, Antonil preocupava-se com a doutrinação dos nativos e criticava os senhores que não obrigavam os escravos, nos dias santos “a ouvir missa, antes talvez se ocupam de sorte que não têm lugar para isso; nem encomendam ao capelão doutriná-los, dando-lhes por este trabalho, se for necessário, maior estipêndio”. Em defesa da pureza dos bons costumes, o jesuíta aconselha que “se o senhor se houver com os escravos como pai, dando-lhes o necessário para o sustento e vestido, e algum descanso no trabalho, se poderá também depois haver como senhor, e não estranharão, sendo convencidos das culpas que cometeram, de receberem com misericórdia o justo e merecido castigo”. Também como o papa, Antonil se preocupava com a interrupção da gravidez indesejada: “Ver que os senhores têm cuidado de dar alguma cousa dos sobejos da mesa aos seus filhos pequenos é acusa de que os escravos os sirvam de boa vontade e que se alegrem de lhes multiplicar servos e servas. Pelo contrário, algumas escravas procuram de propósito aborto, só para que não cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que elas padecem”.


 



Noutro capítulo, recomenda preocupado: “Aos feitores de nenhuma maneira se deve consentir o dar couces, principalmente nas barrigas das mulheres que andam pejadas, nem dar com pau nos escravos, porque na cólera se não medem os golpes, e podem ferir mortalmente na cabeça a um escravo de muito préstimo, que vale muito dinheiro, e perdê-lo. Repreendê-los e chegar-lhes com um cipó às costas com algumas varancadas, é o que se lhes pode e deve permitir para ensino. Prender os fugitivos e os que brigaram com feridas ou se embebedaram, para que o senhor os mande castigar como merecem, é diligência digna de louvor. Porém, amarrar e castigar com cipó até correr o sangue e meter no tronco, ou em uma corrente por meses (estando o senhor na cidade) a escrava que não quis consentir no pecado ou ao escravo que deu fielmente conta da infidelidade, violência e crueldade do feitor que para isso armou delitos fingidos, isto de nenhum modo se há de sofrer, porque seria ter um lobo carniceiro e não um feitor moderado e cristão”. Assim escreveu o jesuíta. Que os pesquisadores informem a que se refere o autor quando fala da  “escrava que não quis consentir no pecado”…


 


Como diz uma canção do Geraldo Pereira, “a razão dá-se a quem tem”, e nesta pendenga entre Chávez e o Sumo Pontífice, a história (terrena, diga-se de passagem) ficou com o venezuelano, tão satanizado pelas elites conservadoras do Novo e do Velho Mundo…

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