Mundo fashion

A mixaria de negras nas passarelas detonou um sertão virando mar: o protesto de modelos negras exigindo maior participação nos desfiles.

Minha mãe, que se chama Arcângela, é uma “costureira fina”, daquelas que se chamava “modista” – inventava os modelos, cortava e costurava. Foi professora de corte e costura. Em sua casa sempre havia uma ou duas moças aprendendo a sua “arte”. Papai odiava, pois ela esquecia do mundo enquanto costurava. Panela de comida queimava, a filharada (sete, aos 25 anos!) estripuliando e ela não dava conta de nada!



Era “fixada” no que fazia e adorava costurar à noite. Só hoje pensei que talvez nem adorasse, mas como passava o dia ensinando, à noite fazia as roupas da freguesia. Ela também borda à máquina de uma forma divina. Aprendi a bordar com ela. “Fazer roupa”, eu não quis aprender. Mas gostava de “roupa nova”, bonita, diferente e de visual avançado.



Filha de uma costureira com tantos predicados, herdei o gosto por roupas bem feitas, com detalhes bem trabalhados, num estilo “desleixo chic”. Durante cinco anos, já médica, fui dona de loja de roupas de estilo vanguardista, a Xikita Bakana. Anos 80, época do boom das butiques, era da Fenit – precursora do Morumbi Fashion Brasil, que virou a São Paulo Fashion Week (SPFW, 1996), que expõe em janeiro a moda inverno, e em julho, a verão.



Não sou fanática por moda, mas desenvolvi um olhar especial sobre ela. Jamais entendi roupa como futilidade. Interesso-me pelo aspecto arte e pela filosofia que cada uma encerra (da “modinha” à “alta costura”). A moda circunscreve espaços socioculturais (“o hábito faz o monge”) e é um setor importante da economia de um país. A França que o diga.



Concordo plenamente que a “moda fala”. Reverencio estilistas de todas as tendências e os espaços de moda – vanguardistas, antimoda, neo-hippie, hippie pop, punk – como expressões simbólicas de uma visão de mundo. Uma roupa expressa o estado de espírito de quem a veste, posto que ela diz como estamos no momento em que a usamos.



Viajei em minha vida para contextualizar a esquina sobre a qual opinarei: a ínfima presença de modelos negras/os no mundo fashion, aqui e alhures. Aqui, tanto na Fashion Rio quanto na São Paulo Fashion Week. A mixaria de negras/os nas passarelas na Fashion Rio detonou um sertão virando mar: o protesto de modelos negras/ os na entrada principal do evento, na marina da Glória, exigindo maior participação nos desfiles, pelos mesmos motivos que a produtora e realizadora do evento, Eloysa Simão, tentou sair pela tangente do espinhoso tema, quando indagada: “Sou contra qualquer tipo de cota. Até porque, se formos começar por aí, daqui a pouco teremos cotas para ruivos. Além do mais, não posso intervir na escolha do 'casting', é uma decisão artística que cabe às grifes. Existe uma estética a ser seguida”.
 


Traduzindo: no mundo fashion vigoram umas palavrinhas dos classificados de emprego: “Exige- se boa aparência”, igual a estética branca! Choca a candura racista da modelo Barbara Fialho: “A modelo tem que ter o corpo e a cor que as compradoras querem ter. E a mulher que compra é clara”. Revolta aturar Gianne Albertoni: “Olha, o país tem negras lindas, só não sei se tem muita negra no mercado. As negras são lindas, né? Fora o corpo, todo durinho! Só não sei se elas querem ser modelos”. Já leram sobre a compra de negros no mercado de escravos?



Causa comichão que nossa neoestrela negra global, “ícone fashion da temporada”, “it-girl dos fashionistas”, Taís Araújo, tenha viajado na nau racista, se verdadeira a manchete: “Taís Araújo não defende cotas para modelos negros”. Poderia ter calado, já que declarou: “Faço parte da geração Xuxa. Fui aquela criança que ligava a televisão e só via meninas loiras. Hoje em dia, a coisa mudou bastante, mas ainda falta muito”.



Publicado originalmente em http://www.otempo.com.br/otempo/noticias/?IdNoticia=67332&

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