Idéias transgênicas sobre biotecnologia

Na semana passada Cuba realizou seu Congresso de Biotecnologia, realizado na cidade de Havana, com a presença de especialistas de 25 nações. Entre as várias abordagens do encontro – que foi amplamente divulgado – uma questão sumamente importante que para

Cuba foi um dos primeiros países a possuir um produto registrado a partir de plantas transgênicas, cultivados em condições muito controladas. Há um trabalho de anos para se obter um agente terapêutico contra a AIDS, atualmente em fase de investigação em animais (com resultados alentadores), com o início de estudos clínicos previstos para 2008.


 


Essa é apenas uma de tantas outras aplicações da transgenia que pode ser explorada em diversas áreas, por diferentes agentes, com várias finalidades e distintos interesses. O mérito da discussão sobre esse controverso assunto, em quase todos esses casos, deve partir justamente dos interesses em jogo, a destinação desses produtos e a propriedade de tais inovações. Um arroz transgênico resistente à salinidade de solos cubanos ou do litoral brasileiro pode ser uma boa opção se for explorado entre institutos de pesquisa nacionais dos dois países atendendo aos interesses dos seus povos, mas pode sucumbir toda uma cadeia produtiva composta por pequenos, médios e grandes produtores, se estiver apenas a mercê dos interesses do mercado, capitaneados por uma multinacional qualquer do ramo de sementes.


 


No nosso caso em especial, a necessidade de se fomentar ainda mais os diversos estudos e investigações científicas em torno da biotecnologia, investindo recursos necessários para consolidar a área de engenharia genética como centro de referência mundial – e com isso lograr uma posição de destaque nesse estratégico campo -, certamente é consenso entre todos os setores da academia comprometidos com uma ciência brasileira mais soberana e voltada aos interesses populares. Investir em ciência, principalmente em tempos onde se realça a propalada “sociedade do conhecimento”, é pressuposto básico para o desenvolvimento econômico e social de uma nação. Romper as amarras burocráticas da pesquisa é outro ponto de quase unânime reconhecimento.


 


Mas apenas reafirmar a necessidade de se ampliar recursos destinados à biotecnologia e a adoção do tal “princípio da precaução” nos estudos com organismos geneticamente modificados é quase sempre a justificativa mais fácil ou mesmo a fuga para um debate mais complexo e polêmico sobre produtos transgênicos. O outro extremo seria endossar campanhas do tipo “Por um Brasil livre de Transgênicos”.


 


Nessa disjuntiva, faz-se necessário um mergulho mais profundo não tão-somente nos campos das ciências biológicas, mas também nas ciências sociais, econômica e política para essa matéria que exige respostas mais satisfatórias. O pronto discurso de se investir em pesquisa é sempre o mais simples para qualquer objeto polêmico no campo da ciência. Foi e continua sendo assim com temas mais controversos como os biocombustíveis, energia nuclear, programa espacial, tecnologia militar, pesquisa com células tronco, entre outros.


 


Mas e sobre os principais produtos transgênicos que dispomos na atualidade no Brasil, e que se refere ao plantio comercial de espécies vegetais, o que temos a argumentar?


 


Um bom exemplo é a liberação do plantio da soja transgênica da multinacional Monsanto, resistente ao glifosato (princípio ativo do herbicida Roundup da mesma empresa) que até hoje rende intensos e calorosos debates pelo país afora e mesmo no exterior – como comprova esse Congresso -, e provoca uma verdadeira clivagem na comunidade científica, entre os favoráveis e os contrários, não havendo espaço para um meio termo.


 


Acontece que tanto de um lado como do outro encontramos visões extremadas, algumas abordagens sectárias e limitadas a uma avaliação meramente científica e outras movidas por fantasias, como os prosélitos da transgenia como solução ao problema da fome no planeta. Há também aquelas opiniões que claramente referendam o discurso mercantilista das multinacionais. Contudo, encontramos muitas apreciações coerentes que conseguem abordar o complexo tema biológico sob uma ótica dialética e multidisciplinar, imprescindíveis nessa análise.


 


Antes de tudo é importante esclarecer que plantações de transgênicos na China, Estados Unidos, Índia e Argentina, por exemplo, guardam características específicas dessas regiões, não podendo ser colocadas no mesmo plano de análise. As próprias modificações genéticas incutidas nas espécies plantadas guardam diferenças significativas entre esses países, afora as realidades ambientais, sociais e econômicas.


 


Um dos apelos mais fortes favoráveis à liberação do plantio dos transgênicos no Brasil tem sido o da redução dos custos de produção. Esta – e não outra – é a razão dos milhares de hectares com soja trangênica contrabandeada da Argentina e do Paraguai plantados em safras passadas. Os agricultores que semearam a soja contrabandeada não tiveram aumento na produção (pelo contrário), mas encontraram na soja transgênica da Monsanto uma oportunidade efêmera de se economizar em herbicidas (diminuindo o número de aplicações), uma vez que essa soja é resistente ao herbicida não-seletivo glifosato.


 


Pobre agricultor brasileiro, refém de um modelo agrícola caduco, dependente de grandes aportes químicos, enfiado goela abaixo pelas multinacionais.


 


Não há ilusão de que essa economia seja eterna. Pelo contrário, além da cobrança dos royalties pela Monsanto, a soja que hoje é plantada, em uma próxima safra de milho, por exemplo, será uma planta daninha invasora dessa cultura (sempre ficam restos de sementes no campo entre uma safra e outra) e os agricultores terão que providenciar a aplicação de outros herbicidas, pois a soja transgênica plantada na safra anterior é resistente ao glifosato. Essa é apenas uma, das várias armadilhas que esperam os agricultores, amarrando-os ainda mais a esses novos produtos, atrelados cada vez mais aos “pacotes tecnológicos”.


 


Caminho mais conseqüente para se reduzir o custo de produção passa por se aplicar vultosos investimentos na reconstrução da malha rodo-ferroviária, propiciando uma grande economia relativa ao escoamento da produção (frete), além de beneficiar todos os outros setores da economia; na construção de silos, secadores e armazéns públicos, auxiliando os agricultores na melhora da qualidade de seu produto a espera de preços mais justos, além da regulagem de estoque pelo governo; no aproveitamento de alguns rios para o transporte fluvial; em modernização dos portos nacionais, hidrográficos e marítimos; no fortalecimento da Embrapa como, entre outras coisas, distribuidora de sementes de qualidade, híbridos ou variedades, e, sobretudo, na mudança de paradigma da agricultura brasileira, investindo em um modelo sustentável e ecológico, com técnicas baseadas no controle biológico de pragas e manejos conservacionistas do solo.


 


Reduzir custo de produção é, sobretudo, investir em infra-estrutura e fomentar a implantação de um novo modelo de agricultura, o que depende de compromisso político. Usar apenas da transgenia para incrementar a produção e redução de custo acaba sendo o caminho mais oblíquo.


 


A ciência em geral deve trilhar o caminho da precaução. Sobre a exigência em torno do risco-zero dos transgênicos não se pode permitir confusões do tipo as comparações feitas entre agricultura convencional e plantas transgênicas, como promovem alguns ambientalistas. Dizer que até hoje não se encontrou nenhum cultivo, alimento ou remédio que preenchesse esse requisito e que a agricultura convencional é grande inimiga da biodiversidade, é apenas uma meia verdade.


 


Realmente, o plantio convencional no Brasil – importado errônea e mecanicamente da Europa – é grande inimigo da biodiversidade, agredindo nosso solo tropical e promovendo graves conseqüências ao ambiente. Entretanto, plantio convencional é um sistema de cultivo que pode ser feito utilizando-se variedades normais ou transgênicas. É perfeitamente possível plantar soja transgênica diretamente no solo (plantio direto) como também em um solo arado e gradeado (convencional).


 


Ademais, há milhares de anos a humanidade presencia o incremento da produtividade das principais espécies agronômicas através do processo contínuo de melhoramento de plantas convencionais. Há aproximadamente oito mil anos, com a “invenção” da agricultura, os primeiros agricultores iniciaram a domesticação das espécies de forma empírica, selecionando as características mais desejáveis, resultando nas primeiras mudanças gênicas dirigidas. Todo esse processo causou impacto, embora menor do que pode ser causado pela alteração genética dirigida em uma espécie vegetal e caso não seja avaliado os verdadeiros interesses em jogo.


 


Por outro lado, a resultante das inovações biotecnológicas incondicionalmente gera novas situações para a natureza, remetendo (ou não) as agências e institutos de pesquisa consolidados a estudos detalhados sobre ecologia e evolução de organismos, como as interações entre eles e deles com o meio ambiente. São estudos de médio e longo prazo.


 


Como bem afirma a professora do Departamento de Zoologia da Unicamp, Maria Alice Garcia, os “estudos de ecologia de invasão, fluxo gênico, ecologia de populações, e modelos de epidemiologia muito nos teriam a ensinar sobre alguns riscos potenciais dos organismos transgênicos. As experiências de inserção programada ou acidental de espécies não-transgênicas em novos ambientes já têm sido desastrosas o suficiente. Essas experiências existem no mundo todo e deveriam nos alertar a respeito dos riscos potenciais de desequilíbrios populacionais de animais e plantas e de funcionamento dos ecossistemas devido à inserção ou criação por hibridização de genótipos novos, com alguma vantagem adaptativa”.


 


Ainda chama atenção que, no caso de espécies transgênicas para a agricultura, essas poderão vir a cobrir extensões imensas e, se algo der errado, o impacto pode ser de escala planetária e esses impactos podem ser ainda maiores em ecossistemas tropicais e subtropicais, onde processos de interação biótica difusos e complexos tendem a ser muito mais relevantes para dinâmicas populacionais do que as respostas ao ambiente físico.


 


Também é necessário desvencilharmos da concepção ultrapassada de “progresso” difundida pelas multinacionais, latifundiários e certos empresários. Vale lembrar que no limiar da implantação da “revolução verde”, muitos setores progressistas caíram no canto da sereia de um progresso para os povos com a adoção dos híbridos como redenção da agricultura mundial. A história se encarregou de mostrar a catástrofe que sucumbiu a agricultura familiar de vários países, principalmente no continente africano.



 
O fortalecimento da Embrapa, universidades e institutos de pesquisa capazes de desenvolver outras linhas de pesquisas distintas das conduzidas pelas multinacionais -onde os interesses são distintos -, é cada vez mais vital. Estados Nacionais soberanos devem utilizar a transgenia para melhorar o nível e a qualidade de vida dos seus povos, com responsabilidade e precaução em relação às complexas biodiversidades envolvidas. O Brasil não pode ceder-se às pressões do mercado mesmo em uma economia com forte traço agrário-exportador.


 


A diferença das pesquisas em transgenia conduzida por Cuba em relação às desenvolvidas pelas multinacionais de sementes guarda as mesmas diferenças básicas do etanol brasileiro extraído da cana de açúcar do estadunidense feito do milho. Nos dois casos, tanto Cuba como o Brasil, desenvolvem tecnologias que servem aos interesses dos seus povos. Resta saber se faremos o mesmo com a biotecnologia nacional, dispersando concepções e idéias transgênicas meramente mercantis.


 


* Texto revisto de um artigo publicado originalmente no sítio da UJS (2005).

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