Há 62 anos, livro inaugural do ambientalismo moderno era lançado

Primavera Silenciosa, de Rachel Carson, apontava os efeitos nocivos dos pesticidas para o meio ambiente

“Era uma primavera sem vozes. Outrora, as manhãs pulsavam com o coro de tordos, pombos, gaios, curruíras e dezenas de outros pássaros. Agora não havia som algum, apenas o silêncio reinava sobre os campos, bosques e pântanos. Até mesmo os riachos estavam sem vida. Nenhuma bruxaria ou qualquer outra ação inimiga tinha silenciado o renascimento da vida neste mundo alquebrado. As próprias pessoas haviam se encarregado disso (…). Sobre áreas cada vez maiores dos Estados Unidos, a primavera agora não é anunciada pelo retorno dos pássaros, e as primeiras manhãs são estranhamente silenciosas, onde antes estavam cheias da beleza do canto dos pássaros.”

Em 27 de setembro de 1962, era publicado nos Estados Unidos o livro Primavera Silenciosa (Silent Spring), da bióloga e ecologista estadunidense Rachel Carson. A obra é considerada um marco fundador do movimento ambiental moderno, figura em listas de principais livros de divulgação científica e é um ponto de virada na história da ciência, por ter sido uma das primeiras a popularizar a ideia de que a ciência, além de resolver problemas e ser um motor de desenvolvimento, também apresenta riscos e efeitos colaterais que precisam ser identificados, calculados e refreados.

Em seu livro, Carson alertava sobre os perigos do diclorodifeniltricloroetano (DDT) e pesticidas em geral. Seu principal argumento era o de que os pesticidas têm efeitos prejudiciais ao meio ambiente, uma vez que esses efeitos raramente se limitam às pragas-alvo, se estendendo à fauna e flora e aos seres humanos. Carson se refere a esses pesticidas como “biocidas”, por conta de seus efeitos tão abrangentes. Os efeitos da bioacumulação gerada por conta do uso do DDT e outros pesticidas sintéticos são minuciosamente descritos pela bióloga em sua obra. Carson denunciava na década de 1960 problemas que até hoje são vistos na sociedade global em questões ambientais, como quando acusava a indústria química de espalhar intencionalmente a desinformação sobre os usos e efeitos dos pesticidas na agricultura e a cooptação do estado, já que seus agentes e funcionários aceitavam as alegações da indústria de forma acrítica.

Ainda na década de 1960, Primavera Silenciosa marcou a agenda política estadunidense, fomentando um debate nacional sobre a utilização excessiva de pesticidas como o DDT, possibilitando tomadas de decisão mais bem informadas por parte dos cidadãos. A obra contribuiu para a mobilização da sociedade civil e serviu de base para o chamado movimento ambientalista. O livro condicionaria mudanças históricas na esfera política e industrial. Em 1972, uma década após a obra ter sido lançada, o DDT seria banido nos Estados Unidos. Primavera Silenciosa também influenciou mudanças legislativas em prol da proteção ambiental nos Estados Unidos e no mundo.

A obra foi uma das primeiras – ou mesmo a primeira – a popularizar a ideia do efeito poderoso e, por vezes negativo, da ação humana no mundo natural. Ideia essa bastante difundida nos dias de hoje, ainda que os resultados práticos dessa ideia para mitigação dos danos ambientais sejam tímidos quando comparados ao tamanho dos riscos e desafios. O livro dava início a um modo de interpretar a questão ambiental que perdura até hoje, que pensa o planeta como um organismo relativamente frágil, cujos recursos são limitados. Uma nave-mãe que precisa de cuidados por parte de seus tripulantes.

Para Sverker Sörlin (2008), de forma simplificada, Primavera Silenciosa se junta a outros marcos para compor essa narrativa de consciência ambiental ao longo da segunda metade do século 20, como a popularização da imagem do planeta Terra visto do espaço, primeiramente na marcante transmissão da Apollo 8, no Natal de 1968, e depois popularizada na TV pelo trabalho do astrônomo e divulgador científico Carl Sagan, principalmente na década de 1980. Segundo Sörlin, essa narrativa solidificou importantes iniciativas de políticas públicas, como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

Rachel Carson | Foto: Alfred Eisenstaedt, Imagens Time & Life/Getty Images

Mais do que tudo isso, o livro Primavera Silenciosa se tornaria um ponto de virada na história da ciência. Para o historiador, professor da Unicamp e autor do livro Capitalismo e Colapso Ambiental (editora Unicamp), da revolução científica do século 17 até meados do século 20, a ciência teve posição de destaque, destronando discursos como o religioso e o artístico. Isso porque ela foi capaz de oferecer às sociedades ocidentais em expansão a energia, a mobilidade, os bens em geral, a capacidade de sobrevivência e a segurança que elas precisavam. Os benefícios da ciência eram claros e confirmavam uma promessa de crescimento ilimitado. 

Mas a partir de 1962, com Primavera Silenciosa, Rachel Carson pela primeira vez exporia ao mundo, de forma contundente, o lado sombrio das conquistas da ciência: agrotóxicos como o DDT aumentavam, de fato, a produtividade agrícola, mas ao preço de enormes danos à saúde e à biodiversidade. A partir daí, a ciência começa a mudar seu discurso. Ela passa a anunciar que havíamos saído da idade das promessas e entrado na idade das escolhas, para tentarmos evitar a idade das consequências, na qual os prejuízos para a humanidade podem ser irreversíveis. De condutora da humanidade à terra prometida do progresso ilimitado, a ciência se torna, aos poucos, sinal de alerta sobre o potencial destrutivo de uma expansão sem limites do modelo de sociedade capitalista.

Com a chegada do século 21, a ciência deixa claro algo que não estava posto no auge do Iluminismo, no século 18: a ideia de desenvolvimento econômico ilimitado esbarra na finitude dos recursos naturais. Portanto, não é possível a acumulação infinita de riquezas. Não é possível domesticar a natureza como o Iluminismo supôs. Essa nova racionalidade científica, preocupada com a sustentabilidade e com os riscos ambientais, obviamente desagradaria a uma elite econômica que sempre se beneficiou do processo predatório de acumulação de riquezas, assim como também desagradaria a todos aqueles que se enxergam como emergentes, logo, também candidatos a novos membros dessa elite econômica, sejam esses emergentes nações, grupos econômicos ou pessoas.

Marques destaca a convergência entre o negacionismo ambiental e a extrema direita emergente no mundo: diante do esgotamento dos recursos naturais e da evidente insustentabilidade do modelo econômico capitalista conforme conhecemos, a extrema direita parece dobrar a aposta no capitalismo predatório, e o negacionismo científico é uma de suas principais armas para isso.

Para Jason Hickel, em seu livro “Less is more” (2020), a atual controvérsia política e o negacionismo em torno da crise climática evidencia que a civilização não se organizou em torno da ciência como prega a narrativa iluminista, mas sim em torno do capital. A ciência é adotada quando está a serviço dos interesses do capital, sendo frequentemente ignorada quando não está. Primavera Silenciosa é o primeiro e um dos mais proeminentes exemplos desse modus operandi de uso conveniente da ciência. Com o sucesso da obra, empresas químicas responsáveis pelos pesticidas organizaram uma campanha contra Rachel Carson, rotulando o conteúdo do livro como um tipo de histeria sem rigor científico. Recomendamos o documentário American Experience: Rachel Carson (2017) para quem quiser saber mais sobre esse embate público e também sobre a vida da bióloga.

Mas o tempo mostraria quem tinha razão: Carson sairia vitoriosa, e Primavera Silenciosa deixaria um importante legado para o mundo e a ciência. Com o tempo, as verdades se acumulam e fica cada vez mais difícil negá-las. A questão é se desta vez teremos tempo suficiente para evitar consequências irreversíveis.       

Referências:

HICKEL, J. Less is more: how degrowth will save the world. Londres: William Heinemann, 2020.

MARQUES, Luiz. Negação da ciência ganha força em nacionalismo que une esquerda e direita. Folha de S. Paulo. 06 jan 2019. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/negacao-da-ciencia-ganha-forca-em-nacionalismo-que-une-esquerda-e-direita.shtml#:~:text=Contesta%C3%A7%C3%A3o%20do%20aquecimento%20global%20mostra,com%20avan%C3%A7o%20cient%C3%ADfico%2C%20diz%20pesquisador&text=%5BRESUMO%5D%20Nega%C3%A7%C3%A3o%20de%20consensos%20cient%C3%ADficos,direita%20se%20confundem%2C%20escreve%20pesquisador. >.

SÖRLIN, Sverker. Narratives and counter-narratives of climate change: North Atlantic glaciology and meteorology, c.1930–1955. Journal of Historical Geography 35, 2009. Disponível em < http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0305748808001072  > Acesso em 4 jul 2017.

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