Engels e os estertores do “socialismo de mercado” na China

Ao lado da mitificação do papel do capital estrangeiro e da variável “preço da mão-de-obra”, outro senso comum muito comum utilizado para “explicar” o crescimento chinês está numa certa “restauração capitalista” cuja expressão reside na legalização da pro

Evidente que uma pretensa esquerda se aferra a este tipo de “argumento baseado na ignorância” para espalhar veredictos que em detrimento de observações baseadas no estudo do processo histórico em si tem guarida sob bases puramente morais, para não dizer religiosos…


 


 


Logo, em um momento histórico onde – para muitos “marxistas”  –  o materialismo já deixou de ser histórico se transformando num “arremedo de positivismo” acredito ser necessário resgatar alguns pontos de vistas desenvolvidos por Engels e Lênin acerca da transição socialista e o papel da propriedade privada e do mercado no processo que envolve a cristalização de uma sólida base econômica socialista. Além claro, da utilização da concorrência – como mecanismo de ajuste econômico – não somente entre empresas estrangeiras, mas também entre todos os tipos existentes de capitais privados, estatais ou coletivos.



 


 


O princípio da concorrência


 


 


Falando em concorrência entre os setores privados e socialistas como forma – na gestação da nova sociedade – de fortalecer a produção socializada, julgo necessário – como parte da discussão em tela -, trazer a tona pelo menos dois pontos de um total de 12 como forma resposta à questão levantada a Engels acerca dos caminhos a serem tomados pela revolução socialista. Seguem abaixo os dois primeiros pontos (1):
 


 


1) Limitação da propriedade privada mediante impostos progressivos, fortes impostos sobre as heranças, supressão dos direitos hereditários em linha colateral (irmãos, sobrinhos, etc), empréstimos obrigatórios, etc.


 


 


2) Expropriação gradual dos proprietários fundiários, fabricantes, proprietários de ferrovias e armadores navais, em parte mediante a concorrência das indústrias do Estado (grifo nosso), em parte diretamente, mediante indenização em hipotecas.


 


 


Em outro momento ao questionado sobre a possibilidade de eliminar a propriedade privada “de um só golpe”, o mesmo Engels expôs (2):


 


 


“Não, do mesmo modo que as forças produtivas existentes não podem ser multiplicadas de um só golpe na medida necessária para a instituição da comunidade dos bens. A revolução do proletariado, que com toda a probabilidade está para se produzir, só poderá, portanto transformar gradualmente a sociedade atual e só poderá abolir a propriedade privada quando tiver criado a massa de meios de produção necessária para isso.”



 


 


As citações lançadas acima tem por objetivo servir de base para demonstrar as diferenças entre as essências das reformas iniciadas em 1978 na China com as sugeridas pelo Consenso de Washington. Resumindo enquanto os países que seguiram o rumo do neoliberalismo selvagem, cuja estratégia consistia em privatizações e desnacionalizações em massa, combinadas com aberturas comerciais indiscriminadas e desregulamentação financeira total, a governança chinesa planificadamente incentivou a concorrência entre os setores estatal, privado e estrangeiro da economia e dinamizou o próprio setor estatal com o desmembramento de imensos setores, como por exemplo os relacionados à aviação civil e petróleo, na intenção de a partir da concorrência entre empresas estatais do mesmo setor serviriam como o dínamo de busca de inovações tecnológicas e oportunidades de negócios lucrativos no exterior.


 


 


O resultado imediato dessa política por um lado foi o fortalecimento do setor privado da economia, significando possibilidades de abertura de novos campos de investimentos, institucionalização de reserva de mercado e possibilidade de entrada de milhões de camponeses na economia de mercado, que anteriormente empregavam-se numa dita economia natural, ou produção para auto-sustento. Para muitos esse fortalecimento do setor privado é classificado como um retrocesso ao capitalismo. Pura falta de visão de processo histórico e de visão de conjunto. Pois, o florescimento de uma divisão social do trabalho e na esteira de uma economia de mercado nascente só pode ser classificada como um grande avanço. Bom mais uma vez recorrermos à Engels (3).



 


 


“De tudo que dissemos, infere-se, pois, que a civilização é o estágio de desenvolvimento da sociedade em que a divisão do trabalho, a troca entre indivíduos dela resultante, e a produção mercantil – que compreende uma e outra – atingem seu pleno desenvolvimento e ocasionam uma revolução em toda a sociedade anterior”



 


 


Retornando por outro lado, executou-se um vigoroso programa de reestruturação das empresas estatais – que fechou inclusive 54.000 micro-empresas do Estado -, implicou: 1) num processo planejado de conglomeração em direção a grandes grupos monopolistas de Estado (energia, eletrônica, ferro e aço, farmacêutica, construção, transporte, petróleo), destacando-se oito deles em energia e química e 2) na redução da participação relativa dessas empresas na economia: caiu de 78% para 65% (4).


 


 


Desculpem, mas creio ser necessária ainda algumas observações acerca do processo de fortalecimento da propriedade privada na China. Para Marx, em contraposição aos seus contemporâneos tendentes a relacionar o socialismo como uma espécie de sociedade igualitarista, o objetivo do socialismo – como fase de transição ao comunista – é a eliminação das diferenças entre campo e cidade, trabalho manual e intelectual e entre indústria e agricultura. Enfim, o objetivo do socialismo é a erradicar a divisão social do trabalho.


 


 


Neste aspecto, sobre a China, é nodal expor que dada sua grandeza territorial e populacional do país faz-nos sugerir que – na China – estão em plena convivência não somente três chamadas “revoluções industriais”, significando que ao lado de formas típicas da 2ª Revolução Industrial (RI) existem ainda grandes parcelas da economia transitando tanto à  primeira quanto à segunda e desta à terceira RI (setor espacial, por exemplo), mas também tanto a pequena produção mercantil (pequeno modo de produção precursor do capitalismo), quanto a economia natural.



 


 


O comércio como variável de primeira grandeza


 


 


Fica uma pergunta, como executar as tarefas elencadas por Marx em uma sociedade, cuja população camponesa é maior que a população total de continentes como a África e a poderosa Europa, sendo que boa parte delas com instrumentos de trabalho do século 17? O problema da transição é mais complexa do que muitos simplistas de “esquerda” imaginam.


 


 


Sob uma outra ótica, um Estado de tipo socialista convivendo numa época em que a o comércio internacional transformou-se em variável de primeira grandeza, o que nos sugere que a variável comércio internacional tem sido o lócus primário da luta-de-classes em âmbito internacional, não deve prescindir de poderosos monopólios estatais prontos ao enfrentamento desta “guerra comercial” em curso. O resultado foi a estréia de empresas chinesas no chamado ranking Global 500 elaborado pela Revista Fortune, conforme tabela abaixo:



EMPRESAS CHINESAS NO RANKING DA REVISTA FORTUNE 500


__________________________________________________________


 


1 SINOPEC – 23º
2 STATE GRID – 32º
3 CHINA NATIONAL PETROLEUM – 39º
4 INDUSTRIAL & COMMERCIAL BANK OF CHINA -119º
5 CHINA MOBILE COMMNICATIONS-202º
6 CHINA LIFE INSURANCE-217º
7 BANK OF CHINA -255º
8 HUTCHISON WHAMPOA – 259º
9 CHINA SOUTHER POWER GRID-266º
10 CHINA CONSTRUTION BANK-277º
11 CHINA TELECOMUNICTIONS-279º
12 BAOSTEEL GROUP-296º
13 SINOCHEM -304º
14 AGRICULTURAL BANK OF CHNA-377º
15 CHINA RAILWAY ENGINEERING -441º
16 COFCO -463º
17 CHINA FIRST AUTOMOTIVE WORKS- 470º
18 SHANGAI AUTOMOTIVE- 475º
19 CHINA RAILWAY CONSTRUTION- 485º
20 CHINA STATE CONSTRUCTION-486º


 


 


FONTE: CORRÊA, Domingos S.:  “Desenvolvimento Econômico e Estratégias de Expansão de Empresas na Ásia”. In, Revista de Geografia Econômica. Dossiê Ásia-China 1. Edição Piloto, págs. 210-219. Núcleo de Estudos Asiáticos do Depto. de Geociências do CFH-UFSC. Junho de 2007.


 


 


Conforme demonstrado na tabela, ao todo 20 empresas chinesas estão entre as 500 maiores do mundo. Importante frisar que 18 das empresas incluídas no ranking são estatais. Tratam-se de empresas que atuam nos setores de petróleo, energia, financeiro, telecomunicações, automobilístico, ferroviário e de construção (5).


 


 


Em outras palavras os capitais estatal, social ou coletivo estão devidamente centralizados nos setores estratégicos da economia, algo muito em harmonia ao dito “estágio primário do socialismo”.



Notas


 


 


(1) ENGELS, F.: “The Principles of  Communism”. In, MARX, K. & ENGELS, F.: Selected Works, Volume 1, p. 91, Progress Publishers, Moscow, 1969.



(2) Idém, pág. 89.


(3) ENGELS, F.: “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”. In, MARX, K. & ENGELS, F.: Obras Escolhidas. Vol. 3, p. 138-141. Vitória.


(4) JABBOUR, Elias: China: infra-estruturas e crescimento econômico. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006. p. 55.


(5) CORRÊA, Domingos S.:  “Desenvolvimento Econômico e Estratégias de Expansão de Empresas na Ásia”. In, Revista de Geografia Econômica. Dossiê Ásia-China 1. Edição Piloto, págs. 212-213. Núcleo de Estudos Asiáticos do Depto. de Geociências do CFH-UFSC. Junho de 2007.

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