“Crônica de uma Fuga”: Tortura no cárcere argentino

Filme do argentino Adrián Caetano concentra narrativa em tortura de jovens militantes durante ditadura militar em seu país

Existe nos filmes sobre as ditaduras latino-americanas dos últimos anos uma tendência a concentrar a narrativa no confronto entre a repressão e os militantes das organizações de esquerda. Principalmente nas prisões, onde os que caíram foram submetidos às mais cruéis torturas físicas e psicológicas. E com isto, eles correm o risco de transformar esses instantes na parte central da luta contra os generais. Deixam de fora o contexto histórico que os produziu e as motivações de ambos os lados para aquele combate nas trevas. Trata-se, sem dúvida, de uma opção dramatúrgica para prender e emocionar o público, mas pode se constituir numa armadilha, pois lhe falta informações para compreender o que ele vê na tela.



         
Esta é a uma impressão que se tem assistir a “Crônica de uma Fuga”, do diretor argentino Adrián Caetano. Toda a narrativa se concentra na prisão e na tortura de um grupo de militantes de uma organização de esquerda, durante a ditadura militar na Argentina (1976/1985). Não fossem as explicações iniciais sobre o que se verá a seguir, nenhuma noção teria o espectador sobre o que se passa na tela. As informações são parcas, inclusive sobre os militantes de esquerda. E o filme poderia ser, de repente, uma alegoria, um pesadelo, vivido por um grupo de insurgentes de qualquer país. O que justificaria a opção dos roteiristas Esteban Studant, Adrián Caetano e Julian Loyola, pelo suspense gerado por situações já mostradas eficientemente por outros filmes.


 


Filme cai no
lugar comum


          


No entanto, trata-se da história real de um grupo de militantes de uma não denominada organização de esquerda contra a ditadura presidida pelo general Jorge Videla. E que, ao ser concentrada nas prisões e nas sessões de tortura, cai no lugar comum desse tipo de filme já tornado gênero da cinematografia terceiro-mundista. Caetano tenta escapar a uma imposição do filme sobre a prisão de militantes de esquerda, criando a figura do delator, do dedo-duro, do que sofre ao ser mergulhado no tonel ou no tanque de água podre, ou do esperto que se finge de delirante para não cair de novo nas mãos dos torturadores. Mas não a ponto de o espectador se identificar com qualquer um deles e tampouco com o frio policial-chefe que se mantém sempre à distância deles como se nada tivesse com as dores e sofrimentos infringidos aos jovens militantes de esquerda. 


 


            
É como se dissesse que ali todos perdem a dignidade, a personalidade e a possibilidade de refletir sobre o que lhes acontece, sem chance de escapar. Este era, na verdade, o intuito da repressão, conseguido num limitado espaço em que a vítima entrava em choque para, depois, ir se adaptando aos castigos até reconquistar a dignidade e saber lidar com os maus tratos. Havia, é claro, os que eram levados ao limite da resistência humana e sucumbiam sem nada revelar, que prejudicasse a luta contra os generais e a burguesia que sustentava aquela forma de tentar eliminar seus opositores. Caetano, porém, não desce a estes detalhes, quando muito discorre sobre a relação entre os torturados e deles com os policiais. E transforma “Crônica de uma Fuga” num filme que narra o combate desigual entre a repressão e os jovens militantes de esquerda, que, embora bem estruturado, não é mais do que isto.


 



Filme é válido por
mexer em feridas
históricas


           


 


A base para sua narrativa é o livro de Claudio Tamburrin, no filme Daniel (Rodrigo de la Serna). Mas não se concentra nele como personagem principal. No princípio isto se dá, mas, aos poucos, esta vertente é abandonada, para se fixar rapidamente nos demais até o desfecho. Ele se transforma, assim, numa referência entre os demais militantes de sua organização de esquerda. Não há, além disso, nenhum confronto deles com os policiais. Eles estão ali trancafiados, sem chances de escapar, e vão se adaptando até que um relaxamento dos policiais lhe permite pensar na anunciada fuga, seqüência mais bem elaborada do filme. Como filme é válido por mexer nas feridas históricas recentes da Argentina e mostrar que os generais se valeram de maneiras pouco dignas de enfrentar aqueles que a eles se opunham.



          
as ao trilhar este caminho, Caetano mostra o quanto poderia ter avançado e contribuído para este gênero de filme, a exemplo de Cao Hamburguer em seu esplêndido Quando meus pais saíram de férias”. Neste a ditadura militar brasileira está presente na tela o tempo todo, sem que se veja tortura ou confronto entre policiais e militantes de esquerda, salvo nas seqüências finais. Hamburguer escapa desta forma ao clichê e nem por isto deixa de denunciar a brutalidade dos generais, que privam o garoto do convívio com seus pais.  Caetano, não, preferiu explicar no final, à maneira de muitos filmes americanos, o que enfim motivou o relato de Claudio Tamburrin e de outros três companheiros   de luta antiditadura militar argentina. Para o espectador fica um vazio, por mais que ele torça pela fuga dos quatro jovens o tempo todo.


 


           
Combate de oprimido
contra opressor


           


Esta perspectiva é insuficiente porque o contexto histórico da época era o da conquista da independência de países africanos (Angola e Moçambique, por exemplo), da vitória do povo vietnamita sobre o exército norte-americano, da queda de Nixon e do início da decadência das ditaduras militares na América Latina e, notadamente, do confronto entre as superpotências União Soviética e Estados Unidos. Mas, sobretudo, pela urgente luta contra o imperialismo norte-americano, que sustentava as ditaduras militares existentes, sendo a tortura a forma de seus dirigentes sobrepor-se às organizações de esquerda. 



            
Nenhuma referência há sobre isto em “Crônica de uma fuga”, quando muito uma referência a um suposto plano de atentado não se sabe contra quem. Então, a contextualização contribuiria, e muito, para transformar a tortura numa conseqüência da luta entre a repressão e as organizações de esquerda, ficando sua condenação mais contundente, pois se tratava do justo combate do oprimido contra o opressor que, ao escapar, triunfa sobre seu algoz e, ao denunciá-lo, como ocorreu, derrota-o em seu próprio campo. O que é, em suma, o objetivo final dos que lutam contra a opressão nesta etapa de capitalismo globalizado.


 


“Crônica de uma Fuga” (Crónica de una fuga). Argentina, 2006, 103 minutos. Roteiro: Estaban Studant, Adrián Ceatano e Julian Loyola. Direção: Adrián Ceatano. Elenco: Rodrigo de la Serna, Nazareno Caseno, Matías Marmorato, Martín Urruty.

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