Convertido ao que já era

Num artigo recente em Vermelho (“Uribe e a conversão de Clóvis Rossi”), Altamiro Borges chama a atenção para a deriva político-ideológica do referido jornalista, membro do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo. “Já faz algum tempo que […] t

Altamiro, ou Miro, como é chamado por seus numerosos amigos e companheiros, costuma ser justo e equilibrado em suas avaliações. É daqueles que não confundem firmeza de posição com linguagem agressiva. No caso presente porém, não estou inteiramente de acordo com a afirmação de que ninguém entende a conversão do eminente folhógrafo. Minha dúvida é: terá mesmo havido conversão?


 


 


Nunca será demais notar, com efeito, que o jornal da família Frias é tucano, no sentido mais próprio da metáfora adotada pela “social-democracia” brasileira. Com um bico longo e pesado e um pescoço mole, tem sempre a cara voltada para onde o vento sopra. Um vento de morte, sabemos, está soprando forte sobre as Farc. Para a mesma direção está virado o bico de Rossi. Novidade? Nem tanto. Em 1991, quando ainda projetava imagem de lutador pela “redemocratização” do país, ele investiu contra o primeiro volume de A esquerda militar, que vinha de ser publicado, começando por contestar o próprio título: “Passa pela cabeça de pouquíssima gente supor que houve, há ou poderá haver uma esquerda entre os militares brasileiros”. Certamente, a cúpula da empresa em que trabalha conhece principalmente militares de direita, com os quais colaborou vergonhosamente durante a ditadura. Os Frias, porém são espertos. Adestraram, no ocaso do regime militar, alguns jornalistas “levando um papo de esquerda” como se dizia coloquialmente. Um “papo” venenoso, claro. Daqueles de que a direita gosta, porque na verdade, servem apenas para confundir e ocultar as lutas da esquerda, por exemplo, negando que “houve uma esquerda entre os militares brasileiros”. Difícil revelar (ou, o que seria ainda pior, supor no leitor) desconhecimento mais espesso de episódios decisivos da história do Brasil como a luta abolicionista do Clube Militar, a conspiração dos oficiais republicanos que derrubaram o imperador Pedro II, os levantes tenentistas dos anos 20, a participação decisiva na derrubada da República oligárquica e no combate ao facho-integralismo, a mobilização revolucionária da ANL etc. 


 


 


Talvez percebendo ter exagerado na tolice, o audaz jornalista procurou mais adiante ajustar a crítica, afirmando que ''não há esquerda militar no último meio século de História'', o que nos teria ''obrigado a remexer no passado já remoto para tentar demonstrar o esquerdismo de setores das Forças Armadas […]''. Deixamos por sua conta o projeto de ''demonstrar o esquerdismo''. Será que confunde ser esquerdista e ser de esquerda? Mas mesmo restringindo a alegada inexistência de militares de esquerda ao “último meio século”, isto é, a partir da década de 1940 (já que a pífia crítica do pensador da Folha a nosso livro é de 1991), a besteira persiste, embora diminuída cronologicamente. Não seria preciso, com efeito, ''remexer no passado já remoto'' para encontrar, entre muitos outros, os dois combates vitoriosos que a esquerda militar travou desarmada, no início dos anos 1950: a luta para impedir que o Exército brasileiro participasse da intervenção norte-americana na Guerra da Coréia e a campanha em defesa do monopólio estatal do petróleo, à qual devemos a Petrobrás e tudo que esta tem significado para a economia brasileira.


 


 


No primeiro desses combates, militares anti-belicistas, armados apenas com a força de suas convicções, impediram a poderosa corrente pró-Pentágono dentro do Exército brasileiro de enviar nossos compatriotas para servir de tropa auxiliar da expedição norte-americana em terras coreanas. O gesto mais corajoso foi o da comunista brasileira Elisa Branco, que durante o desfile militar de 7 de setembro de 1950, no Vale do Anhangabaú, quando eram mais fortes as pressões para que nosso país participasse da intervenção bélica na Coréia, desfraldou uma grande faixa onde se lia: Os soldados nossos filhos não irão para a Coréia. Os “liberais” pró-estadunidenses não a perdoaram. Condenada a mais de quatro anos de prisão, ficou dois encarcerada num presídio de São Paulo.


 


 


Também desarmadas, esquerda civil e esquerda militar defenderam juntas a causa nacional-popular nos anos 60 (mobilização militar anti-golpista pela posse de João Goulart, movimento dos sargentos, dos marinheiros e fuzileiros navais). Não por acaso os militares de esquerda ou simplesmente anti-golpistas figuram entre as categorias profissionais mais pesadamente atingidas pela repressão desencadeada com o sucesso do golpe reacionário de 31 de março de 1964.


 


 


Exorcizar o espectro de um Exército em que predominem idéias de transformação social é um ritual importante na liturgia de um “intelectual orgânico da direita” (assim Miro com razão caracteriza Clóvis Rossi). Não se lhe pode negar coerência nessa faina. Dezesseis anos depois de ter negado a existência (salvo em tempos remotos) de militares de esquerda no Brasil, ele desponta na vanguarda da ofensiva de seu jornal contra o mais detestável (para a direita) militar de esquerda da atualidade. Entre muitas outras do mesmo teor, lançou uma nota editorial na Folha de São Paulo de 1º de dezembro de 2007, sob título brilhantemente original “Stalin não morreu”, em que toca estridente sino de alarme: “Chávez revive […] o pior do socialismo do século 20. Ou, mais exatamente do estalinismo”. Só faltou ao plumitivo colocar uma foto da Regina Duarte dizendo em voz lúgubre: “-Tenho medo…”. Mas não perde em alarmismo programado para a ex-namoradinha da reação brasileira. Logo no começo de sua nota, simulando isenção ideológica, declara não ter “nada contra (nem a favor) do socialismo do século 21, do presidente Hugo Chávez, até porque ninguém sabe direito do que se trata”. Nada contra? Ninguém sabe?  Suspeitamos que ele não está sendo sincero. Pois embora não saiba muita coisa, já sabe que é um socialismo “estalinista” (sic) e que deve ser tratado como tal. 

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