Anacronismo: Mal para História e Mal para Política

O verdadeiro debate que o Congresso Nacional de Negras e Negros do Brasil – Conneb tem que enfrentar está submerso.

Além da força proponente estar perdida, não saber que rumo indicar para construção do Projeto Político da População Negra para o Brasil, atribuo a essa submersão uma premeditada supervalorização da divergência e a não obediência do processo democrático de discussão coletiva que rejeitou – no voto após exaustiva discussão – a realização de uma Assembléia Extraordinária para reformulação do Regimento Interno aprovado na Assembléia Nacional de Belo Horizonte, nos dias 21 e 22 de abril de 2007, com a participação de 23 estados. A maioria das organizações que compõe a Comissão Executiva Nacional e a Coordenação Política Nacional compreendeu a legitimidade do Regimento Interno e da Assembléia de Minas Gerais. Compreenderam também não há necessidade de mobilizar novamente todo o país para numa outra assembléia fazer o que já fora feito. Optaram pelo ajuste dos pontos omissos e/ou com problema de formulação no último ponto de pauta da Assembléia Nacional de São Paulo – fato não concretizado em razão do boicote organizado contra o Conneb na última assembléia ocorrida em São Paulo.


 


 


Outro elemento que tem mantido a submersão do debate político no Conneb é a incapacidade de importantes lideranças compreenderem que nem sempre serão vitoriosos em suas propostas ao longo da realização do congresso. Isso não é demérito pra ninguém, faz parte dos processos coletivos de construção política. O congresso receberá contribuições sempre, será produto de muitas cabeças. As propostas sendo certas ou erradas, quando deliberadas coletivamente têm que ser respeitadas. Não há espaços para arrogantemente afirmar que o nível intelectual do movimento negro está aquém dos desafios do Conneb e através da desqualificação da coletividade insistir, ou melhor, tentar impor ponto de vista discutido, votado e rejeitado. O ego sempre será inimigo das construções coletivas, todos devem estar atentos, pois nem sempre emerge deliberadamente.
 


 


Após vários documentos elaborado com explícito propósito de impor uma agenda “internista, desgastante e em detrimento do desenvolvimento do debate político do Conneb”, desde 27 de junho de 2008 está postado no site do Conneb (www.conneb.org.br) um texto intitulado “O que há a ser definido: um Projeto Político ou um Plano de Ação”, de Yedo Ferreira. Essa iniciativa pode abrir espaços para cumprirmos com o nosso dever como negras, negros, organizações e forças políticas do movimento negro que compreendem a importância do Conneb e dizer o que queremos construir, mais ainda, o que podemos construir através desse congresso. Em política quando se subestima ou ignora a necessidade de analisar os projetos dentro de um quadro de força objetivo, constrói alternativas inaplicáveis, elabora projetos utópicos e lançam mãos de ações disfuncionais. Trocando em miúdos, se mal diagnosticado, será mal formulado e mal aplicado. Falo isso porque a base analítica do texto referido acima contém ranço que deve ser superado, sob pena de caminharmos de mãos dadas ao atraso.
 


 


Analisar fatos ou conjunturas presentes utilizando conceitos, valores e idéias de outro tempo histórico é um grave erro, recorrente nas analises históricas. A humanidade perdeu muito com leituras anacrônicas, o pensamento iluminista quando considerou incivilizado, ahistórico e sem luzes toda construção civilizatória passada, cometeu um grave erro com o futuro, pois deliberadamente ignorou toda contribuição da idade média na Europa, ignorou toda história e saberes de matriz africano e eurocentrizou o pensamento universal. Saber reprimido significa conhecimento reduzido, de modo que as civilizações atuais foram prejudicadas pelos desperdícios causados pelo anacronismo, tornou-se intelectualmente mais pobre.


 


 


O texto “O que há a ser definido: um Projeto Político ou um Plano de Ação”, nos remete a um equívoco ainda mais complexo, pois estamos diante de bases analíticas inadequadas no espaço e no tempo, mais grave que o temível anacronismo.   Um olhar pouco atento verá que se trata de uma leitura aplicável para um país africano – qualquer – na fase de luta contra o colonialismo. Não diz respeito ao Brasil, as nossas experiências históricas, idiossincrasias políticas e identidades. Sabemos que as gerações de ativistas negros pós-Abdias do Nascimento, especialmente nas décadas de 70 e 80, foram bastante influenciadas pelo panafricanismo, pelas construções intelectuais africanas e pelo processo político do continente mãe, sabemos também, que as medidas adotadas para superação dos impasses africanos não podem ser transplantadas integralmente ao Brasil, estamos em tempo, lugar e conjuntura diferentes. O anacronismo é um mal para História e mal para Política.


 


 


No âmbito do Movimento Negro, lutamos pela superação do racismo, da discriminação racial, do preconceito e contra a desigualdade social, política, econômica, educacional entres negros e brancos. Nossa perspectiva é anti-racista, por isso considero que a cor da pele é importante, mas não determinante do lugar político e ideológico –  embora invariavelmente defina o lugar sócio-econômico -, os negros e negras brasileiras não são um todo homogêneo, diversifica em tudo, inclusive no projeto político. Parafraseando o mestre Solano Trindade “não basta ser negro para ser meu irmão”, completo a frase com: “… ou branco para ser meu inimigo”. Sabemos que historicamente há inimigos e amigos da luta anti-racista entre os brancos e entre os negros.


 


 


Considero adequada a terminologia população negra, por considerar correta a definição de população de Aurélio Buarque de Holanda: “um conjunto de habitantes de um território, de um país, de uma região, de uma cidade ou conjunto de pessoas pertencentes a uma determinada categoria num total de habitantes”. No campo da sociologia política, os conceitos, fundamentalmente, estão a serviço dos projetos e ideologias, por isso são sempre políticos. O uso de população negra é afirmação política de um conceito. Compreendo que os negros são os principais construtores da nacionalidade brasileira, através de dezenas e dezenas de gerações africanas e negras que estão aqui desde 1500 – sempre em maior contingente populacional -, 508 anos é tempo suficiente para construir historicamente uma identidade singular. Não existe uma nação negra no Brasil, existe negro na nação brasileira. Como nos ensinou Abdias do Nascimento “…não é possível pensar o Brasil sem o negro…”, somos o Brasil, o povo brasileiro, a maioria nacional. É um equívoco político e histórico a vanguarda de uma parcela desse povo construir identidades que apenas uma residual elite assimila. Segundo o IPEA 49% dos brasileiros são negros, por isso não cabe pensar em “ações a serem desenvolvidas para a libertação do povo negro”.


 


 


A luta pela libertação nacional, ou do povo negro, foi adequada para derrotar o apartheid na África do Sul e o colonialismo Europeu na maioria dos Estados africanos, ainda assim o cerne do conflito era quase sempre econômico – posse das terras, saques dos recursos naturais, anexação de mercados consumidores, apropriação de mão de obra semi-escravas, uso de cobaias humanas para pesquisas farmacêuticas, etc. Hoje essa forma de luta se coloca aos palestinos, iraquianos, afegãos, ou seja, aos povos sob intervenção bélica dos impérios capitalistas. Não estamos invadidos por estrangeiros nos dominando, somos um povo que sofre com profundas desigualdades entre negros e brancos, estamos entre os países mais desiguais do mundo. A população negra é a maioria dos brasileiros que se situam na classe social dominada, a maioria do proletariado, dos desempregados, dos pobres, dos marginalizados, daí o imperativo das mediações e alianças, pois a causa do movimento negro é a causa do Brasil, dos que lutam por justiça, negros e brancos devem se envolver.


 


 


Desde os primórdios do movimento negro – pós Lei Áurea – Arlindo Veiga dos Santos, primeiro presidente e formulador da Frente Negra Brasileira, dizia: “Não queremos uma segregação da vida nacional, senão uma afirmação nacional do Negro, uma integração real e leal”. Lutavam para integrar o negro no mercado do trabalho, no sistema educacional, nos espaços de decisão política – por essa razão transformaram a Frente Negra Brasileira em um partido político (erro reconhecido na época). Passados 71 anos da extinção da FNB, a população negra continua buscando as mesmas coisas, ainda é a minoria no gozo das riquezas e benesses socialmente produzidas. Temos que reafirmar os propósitos que motivaram a existência da FNB, com um pequeno ajuste sintetizado no seguinte lema: integrar o negro na sociedade brasileira e transforma-la.


 


 


Sobre o texto “O que há a ser definido: um Projeto Político ou um Plano de Ação”, tenho, também, que dizer que é antipático com o contraditório, na medida em que insiste em associar meu pensamento aos da “elite de esquerda eurocêntrica”, negando meus 18 anos de militância contínua no movimento negro. Aposta na desqualificação do outro e não aponta alternativa objetiva. Peca pelo enfadonho teoricismo, tenta colocar conceitos em uma “caixinha fechada”. Reduz o debate político, provando o diletantismo e uma capacidade incomum do autor tergiversar. Trata-se de um texto que não leva a lugar algum, ou melhor, confunde parte da militância, especialmente aquela que está no início do processo de formação.


 


 


Reitero a adequabilidade das opiniões encontradas nos textos que postei no site do Conneb: “Princípios norteadores para elaboração do Projeto Político da População Negra para o Brasil e Projeto Político da População Negra” ao projeto político da população negra ao Brasil. Se o projeto político dos negros e negras é eliminar o racismo, o machismo e extinguir as desigualdades sociais e econômicas que pesam negativamente sobre seus ombros, temos que elaborar idéias e ações que respondam como atingir esses fins. Considerando os impasses a ser superados, a correlação das forças políticas e sociais em jogo, as possibilidades de alianças, prioridades e metas a atingir, os mecanismos de sustentação das conquistas, etc.


 


 


Os textos criticados por Yedo Ferreira vislumbram uma sociedade socialista e sem racismo. Trabalhar para superação do capitalismo e do racismo é o Projeto Político da População Negra que os textos propõem. Para isso temos que elaborar a tática (ações postas em prática para atingir determinado objetivo) para viabilizar ou avançar no rumo do projeto. Por isso as ações têm que ser factível, ter capacidade de interação com a sociedade brasileira, assimilar importantes princípios (democracia, universalidade, equidade, anti-racismo e o princípio político operativo da hegemonia) e priorizar a intervenção em campos e estruturas sociais geradoras de desigualdades (trabalho, educação e participação política). O Conneb tem que elaborar mecanismos para: superar as desigualdades no mercado de trabalho considerando as diferenças salariais, acesso e qualidade do emprego; democratizar a presença do negro e do pobre em todas esferas educacionais, bem como impor a deseurocentrização do currículo escolar; garantir a presença dos combatentes do racismo nos executivos e legislativos nas três esferas de governo, daí a necessidade de aprofundarmos a discussão acerca do voto étnico – considerando o ensinamento do poeta negro patrono do nosso congresso: Solano Trindade.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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