Agrarismo e industrialismo: o primeiro encontro do marxismo com o Brasil

A Editora Anita Garibaldi acabou de relançar uma obra fundamental do pensamento político brasileiro: Agrarismo e Industrialismo: Ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil – 192

Não deixa de ser sintomático o fato de que, apenas agora,  quando o livro completa 80 anos de existência, tenha conseguido uma merecida segunda edição. Vários fatores contribuíram para este prolongado esquecimento.

O primeiro deles, sem dúvida, é a cultura autoritária de nossas elites econômicas e políticas. O livro foi produzido e começou a circular em meio ao estado de sítio imposto pelo governo de Arthur Bernardes. A Revolução de 1930, que pôs fim ao domínio da oligarquia, também não deu trégua aos comunistas. Ainda em 1931, Octavio Brandão e sua família foram exilados pelo novo regime e só puderam voltar ao país após o fim do Estado Novo.

A legalidade do Partido, conquistada em 1945, durou menos de dois anos. Ao longo do século XX, o Brasil conheceu ainda o governo autoritário do General Dutra (1946-1950) e uma ditadura militar que durou mais de 20 anos (1964-1985). Essas rupturas democráticas ocasionaram também rupturas na memória da esquerda brasileira. Foram muitos os re-começos e muitos os esquecimentos. 

Nasce um clássico. 

“A 28 de julho de 1924, os revoltosos evacuaram a cidade de São Paulo. O governo Bernardes delirou com a ‘vitória’. Os pequenos burgueses urbanos ficaram muito desanimados (…) No fundo da sala de jantar, sentado no primeiro degrau de uma escada de ferro, ouvi a narrativa da derrota e, serenamente, comecei a escrever Agrarismo e Industrialismo. Terminei a parte fundamental menos de um mês depois, a 22 de agosto de 1924. Tirei imediatamente cópias à máquina e espalhei-as entre os amigos”. Assim, Octavio Brandão descreveu o início da produção da obra que teria um impacto decisivo na vida do Partido Comunista do Brasil naqueles anos.

No entanto, passaria mais de um ano e meio para que o livro pudesse, finalmente, vir a público. Tempo que Brandão aproveitou para adicionar-lhe mais duas partes: Síntese, datada de março de 1925, e A revolta permanente, de março de 1926.

Quando estava sendo composto, a polícia política do governo Bernardes invadiu a tipografia. Ela pretendia dar o flagrante e apreender a edição que supunham estar quase pronta. Rapidamente, sem que se percebesse, os operários “jogaram toda composição nas caldeiras das linotipos”. Não conseguindo as provas que necessitavam, os policiais tiveram que se retirar cabisbaixos. Na mesma noite, reiniciou-se o trabalho de composição e impressão daquela que entraria para história como a primeira tentativa de interpretação marxista e leninista do Brasil.

Em abril, ainda como a capital da República sob estado de sítio, Agrarismo e Industrialismo começou a circular. Ele trazia como autor um tal de Fritz Mayer e a informação que havia sido editado em Buenos Aires. Os comunistas espalharam que Mayer era um oficial alemão que havia participado do levante tenentista de São Paulo e fugira para Argentina. Tudo isso foi feito com o objetivo de despistar a polícia brasileira. A artimanha parece ter dado resultados.

Naquele mesmo ano, mais de uma dezena de exemplares foi levada à Moscou e um acabou chegando às mãos do líder dos tenentes revolucionários Luís Carlos Prestes. Mas, os mais entusiasmados com aquela obra foram os operários ligados ao PC do Brasil. A grande imprensa, como era de se esperar, ignorou solenemente a sua publicação.

Uma obra pioneira e original

Os objetivos centrais de Agrarismo e Industrialismo eram: expor a dinâmica da revolução democrática em marcha no país e apresentar uma estratégia adequada para o jovem movimento comunista. Não havia, até então, nenhuma formulação tática ou estratégica mais consistente que norteasse a ação política da esquerda marxista brasileira. Por isso as teses ali expostas tiveram um forte impacto nas formulações do Partido Comunista e influenciaram as resoluções dos seus II e III Congressos, realizados em 1925 e 1928.
 

Octavio Brandão procurou apresentar as peculiaridades da revolução brasileira e o papel das diversas classes naquele processo. Ele foi um dos primeiros a compreender os danos causados pelo domínio imperialista e identificar a luta existente entre os interesses do imperialismo inglês, decadente, e o norte-americano, ascendente. Por fim, teve o mérito de compreender a importância da luta que se travava entre a oligarquia latifundiária (os agraristas) e os setores vinculados à indústria (os industrialistas).

Antes mesmo que o VI Congresso da Internacional Comunista (1928) viesse a estabelecer o cânone da predominância de relações feudais (ou semi-feudais) na totalidade dos países da América Latina e Ásia, Brandão já afirmava o caráter feudal da nossa formação econômica, política e social. Escreveu ele: “Dominado por esse agrarismo econômico bem centralizado, o Brasil tinha de ser dominado pelo agrarismo político (…) O agrarismo político é a dominação política dos grandes proprietários (…) O fazendeiro de café, no sul, como o senhor de engenho, no Norte, é o senhor. O senhor feudal implica a existência do servo. O servo é o colono sulista das fazendas de café, é o trabalhador de enxada dos engenhos nortistas. A organização social proveniente daí é o feudalismo na cumeeira e a servidão no alicerce”.

A chamada “tese feudal” teria uma longa vida no interior do movimento comunista brasileiro, até começar a ser questionada mais fortemente por marxistas como Caio Prado Jr. na década de 1960. Os Partidos Comunistas (PCdoB e PCB) somente vieram a superá-la no início da década de 1990. 

Uma estratégia leninista para o Brasil

Para enfrentar o agrarismo dominante propôs a constituição de uma frente única poli-classista: “O fazendeiro de café só será derrubado pela frente única momentânea do proletariado com a pequena–burguesia e a grande burguesia industrial”. A estratégia da revolução no Brasil teria como paradigma a revolução francesa de 1789 e russa de fevereiro de 1917. Buscou reproduzir, ao seu modo, a tática leninista indicada por Lênin em 1905.

Continuou ele: “Apoiemos, como aliados independentes, como classe independente, a pequena-burguesia na sua luta contra o fazendeiro de café, pois, segundo Marx, é preciso sustentar os partidos pequeno-burgueses quando estes resistem à reação. Empurremos a pequena-burguesia à frente da batalha (…) Procuremos arrastar as grandes massas operárias e camponesas em torno de palavras de ordem simples, concretas, práticas e imediatas. Não esqueçamos que o Brasil, como a Rússia, é um país agrário (…) Empurremos a revolução da burguesia industrial – o 1789 brasileiro, o nosso 12 de março de 1917 – aos seus últimos limites, afim, de transpostas a etapa da revolução burguesa, abrir-se a porta da revolução proletária, comunista”, escreveu ele.

Brandão tinha a convicção de que ocorreria uma terceira revolta e que esta seria uma conseqüência das duas revoltas tenentistas anteriores, ocorridas em 1922 e 1924. As contradições que geraram aquelas conflagrações armadas continuavam de pé e se agravando.

Tendo por base esta perspectiva, ele fez uma previsão genial sobre a crise revolucionária que se abriria alguns anos depois: “Temos, pois em perspectiva, sérias batalhas de classe, isto é uma situação revolucionária. Se os revoltosos pequeno-burgueses souberem explorar a rivalidade imperialista anglo-americana e a luta entre os agrários e os industriais, se procurarem uma base de classe para a sua ação, se o proletariado entrar na batalha e se essas contradições coincidirem com a luta presidencial e as complicações financeiras, será possível o esmagamento dos agrários (…) Dada esta situação objetiva, a vitória da pequena-burguesia aliada a grande burguesia industrial e, posteriormente, a vitória do proletariado, serão meras questões subjetivas. Dependerão da capacidade dos revoltosos pequeno-burgueses e dos revolucionários proletários”.

As resoluções do 2º Congresso do PC do Brasil (1925), baseadas no esboço inicial de Agrarismo e Industrialismo, apontavam a "luta entre o capitalismo agrário semi-feudal e o capitalismo industrial moderno como sendo a contradição fundamental da sociedade brasileira após a República".

Tendo em vista as particularidades da primeira etapa da revolução brasileira, os comunistas a definiram como revolução democrático-pequeno-burguesa. Baseavam tal formulação na destacada participação política das classes médias urbanas, através do movimento tenentista, nos processos revolucionários que vinham ocorrendo.

Era nítida a confusão entre o conteúdo social das tarefas a serem realizadas pela revolução – burguesa ou proletária – e as forças sociais que teriam um papel mais destacado no processo revolucionário em curso. No entanto, devemos destacar que o próprio termo utilizado para definir a revolução brasileira (democrático-pequeno-burguesa) visava distingui-la da revolução ocorrida na Rússia em 1917; ou seja, procurava captar as suas peculiaridades e sua originalidade. Afinal, no Brasil, as classes médias urbanas estavam tendo uma importância política e social bem maior que a dos camponeses. A situação brasileira era bastante diferente da que existiam na Rússia e na China revolucionárias.

Foi dentro desse esquema teórico-político – nascido com Agrarismo e Industrialismo – que Astrojildo Pereira, secretário-geral do PCB, elaborou o relatório sobre a situação brasileira, que foi enviado ao Secretariado Sul-americano da Internacional Comunista e publicado na revista Correspondência Internacional em 1928. Vejamos o que afirmavam os comunistas brasileiros: “a situação econômica e política do país, objetivamente examinada, faz prever uma conjuntura francamente revolucionária, que resultará da coincidência dos seguintes fatores: 1) Crise econômica resultante de uma catástrofe na política cafeeira (…); 2) crise política vinculada ao problema da sucessão presidencial no Brasil (1930); 3) possibilidade de uma repetição de um novo 5 de julho”.

Diante desta terceira revolta que se aproximava e “que tomará proporções muito maiores que as de 24/26”, afirmaram que não era de se “supor que as massas trabalhadoras se mantivessem indiferentes ou neutras (…) Nessas condições, o dever do partido comunista consistirá em colocar-se à frente das massas, procurando conquistar não somente a direção da fração proletária, mas a hegemonia de todo o movimento”.

Para derrotar as possíveis tendências direitistas existentes no movimento tenentista, eles apresentavam sua proposta tática: “No nosso entender, a intervenção decidida do Partido Comunista no movimento, em estreita aliança como os revolucionários pequeno-burgueses, na primeira fase do movimento, na luta comum contra o inimigo, pelo menos dificultará e poderá vencer como maior facilidade essa tendência fascista”.
Esses parágrafos demonstram a capacidade teórica e política que aqueles jovens dirigentes comunistas haviam adquirido. Eles previram, com anos de antecedência, a crise revolucionária de 1930 – e o fim da República Oligárquica – e apresentaram uma estratégia bastante ajustada àquela situação, especialmente tendo em vista o domínio ainda limitado que tinham do instrumental teórico fornecido pelo marxismo e pelo leninismo.
 
A guinada esquerdista e a crise no PCB

Em 1929 o movimento comunista pendeu perigosamente para a esquerda. Ao lado do esquerdismo começavam a predominar práticas autoritárias e sectárias – a política leninista de proletarização se transformava em “obrerismo”.  Foi nesse ambiente, marcado pela intolerância, que foram analisadas a tática e a estratégia dos comunistas brasileiros.

As idéias de Octávio Brandão e Astrojildo Pereira sobre a terceira revolta e a política de aliança centrada na pequena burguesia urbana – traduzidas nas resoluções dos 2º e 3º Congressos do PCB – foram duramente criticadas pela Internacional Comunista (IC). Na Conferência do Bureau Sul-Americano da IC, realizada entre abril e maio de 1930, Astrojildo e Brandão foram acusados de desvios de direita e de serem "pequenos burgueses". A sua tese sobre o caráter "democrático-pequeno-burguês" da revolução brasileira foi acusada de ser menchevique, anti-marxista e anti-leninista por, supostamente, negar a hegemonia do proletariado na revolução democrática e superestimar o papel da pequena burguesia urbana (os tenentes) em detrimento das massas camponesas.

Logo após a Conferência Sul-americana, Brandão e vários outros camaradas foram retirados do Comitê Central. Em novembro de 1930 foi à vez de Astrojildo Pereira ser afastado da Secretaria-Geral, que exercia desde 1922, e do próprio Comitê Central. Assim, em poucos meses, quase toda antiga direção, forjada no curso das lutas dos anos 1920, foi afastada de seus postos e substituída por novos militantes, que em sua maioria eram operários com pouquíssima experiência partidária.

Uma das resoluções do pleno que afastou Brandão afirmava: “O Partido Comunista do Brasil deverá acrescentar sua atividade em sua luta política, estabelecendo sua própria fisionomia, tendendo a adquirir a todo preço a hegemonia do movimento revolucionário que se desenvolve no Brasil, cujas principais forças motrizes serão o proletariado, a massa de assalariados agrícolas e os camponeses pobres”.

Esta era uma aplicação mecânica das resoluções da Internacional Comunista. Elas não tinham em conta o processo revolucionário real que já vinha se desenvolvendo no país e refletiam um profundo desconhecimento das forças sociais em presença, subestimando o papel das classes médias urbanas e superestimando o papel dos camponeses.

A partir de então o esquerdismo e o obreirismo, também, passaram a imperar no interior do partido. Abandonou-se a proposta de aliança preferencial com a pequena-burguesia urbana, através do movimento tenentista. Os prestistas foram considerados os principais inimigos do proletariado revolucionário. No final de 1930 o Bloco Operário e Camponês – órgão de frente única criado pelos comunistas – foi fechado pela direção partidária.

Renegando tudo o que tinha defendido poucos meses antes, Octavio Brandão afirmou na tribuna da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro: “O que caracteriza a Aliança Liberal é a sua demagogia. Demagogia caracteristicamente fascista, empregada por Mussolini quando quis apoderar-se do poder, em 1922 (…) O fascismo declarado dos presidentes Washington Luis e Júlio Prestes a ninguém ilude. Mas o fascismo disfarçado da Aliança Liberal ilude muita gente”. Aqui temos uma adaptação da nefasta teoria do social-fascismo ao Brasil.

Em setembro de 1930, às vésperas da revolução, um documento do PC do Brasil afirmaria que “a Coluna Prestes era o inimigo pronunciado do movimento revolucionário, defendia os interesses dos capitalistas estrangeiros, sustentava os feudais e estava pronta a lutar contra todo verdadeiro movimento de massa”. A palavra de ordem dos comunistas passou a ser: “Criai o governo operário e camponês, baseado nos Sovietes!” e “Pela União das Repúblicas Soviéticas da América Latina!”. 

As reflexões originais sobre a formação econômica e social brasileira foram abandonadas e substituídas por esquemas mais rígidos que não correspondiam a nossa realidade. O resultado foi que quando, em outubro de 1930, chegou a “terceira revolta”, prevista por Octavio Brandão e Astrojildo Pereira, os comunistas estavam desarmados teórica e politicamente.

Os sucessivos erros políticos levaram ao isolamento do Partido em relação às massas populares e às correntes progressistas. Ao lado da crise política, ocorreu uma séria crise de direção que desorganizou quase completamente o Partido. Nos quatro anos que se seguiriam à destituição de Astrojildo, o PCB teve seis secretários-gerais.

Da crítica a reabilitação

Tendo em vista os nítidos limites teóricos deste trabalho pioneiro, alguns intelectuais buscaram, consciente ou inconscientemente, desqualificar o livro. Em geral, esses críticos caíram num evidente anacronismo ao cobrarem do jovem dirigente comunista um nível de conhecimento do instrumental teórico marxista que ele – e ninguém no Brasil – poderia ter naqueles anos. È bom lembrarmos que o Manifesto do Partido Comunista (1848) de Marx e Engels – obra seminal do socialismo científico – foi publicado no Brasil apenas em 1924, traduzido do francês pelo próprio Brandão. 

Na década de 1980, Michel Zaidan Filho escreveu uma série de trabalhos que, entre outras coisas, enalteciam as contribuições originais de Octavio Brandão e Astrojildo Pereira.. Nos anos 1990 Agrarismo e Industrialismo foi analisado, sem preconceito, por autores marxistas como Marcos Del Roio, Paulo Cunha, Ângelo José da Silva e Quartim de Moraes. Este último, no seu ensaio introdutório, escreveu: “A justiça histórica é lenta como a dos tribunais, mas às vezes não falha (…) Agrarismo e Industrialismo, assim, foi encontrando o lugar que merecia no pensamento marxista brasileiro”. O seu relançamento fortalecerá o processo ainda em curso de revalorização da elaboração teórica dos primeiros comunistas brasileiros.

Bibliografia

Brandão, Octavio – Agrarismo e Industrialismo: Ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil – 1924, Ed. Anita Garibaldi, S.P.,
——————— – Combates e Batalhas – Memórias, Editora Alfa-Ômega, S.P, 1978
Carone, Edgard – O PCB – 1922 a 1943, Vol. 1 , Ed. Difel, S.P., 1982
——————– – Classe Sociais e Movimento Operário, Ed. Atica, S.P., 1989
Cunha, Paulo Ribeiro da – “Agrarismo e Industrialismo: pioneirismo de uma reflexão” in Novos Rumos, nº 26, S.P, 1998.
Del Roio, Marcos – “Octavio Brandão nas origens do marxismo no Brasil” in Crítica Marxista, nº18, RJ. Ed. Revan, 2004.
Dulles, John W. Foster – Anarquistas e Comunistas no Brasil, Ed. Nova Fronteira, RJ., 1977
Silva, Ângelo José da – “Agrarismo e industrialismo: uma primeira tentativa marxista de interpretação do Brasil” in  Revista de Sociologia Política, Nº8,  DCS-UFPR, 1997
Quartim de Moraes, João – “A influência do leninismo de Stalin no comunismo brasileiro” in Moraes [et. Al.] História do Marxismo no Brasil, vol. 1, Ed. Paz e Terra, S.P., 1991.
——————————— – “A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros” in Quartim Moraes (org.), História do Marxismo no Brasil, vol.II, Ed. Unicamp, 1995
Zaidan Filho, Michael – PCB (1922-1929)  – Na busca de uma marxismo nacional, Ed. Global, S.P., 1985
—————————- – Comunistas em céu aberto, Ed. Oficina de Livros, BH., 1989

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