A Lula o que é de Lula
Como nos tempos de Getúlio Vargas, nunca se vira tanta ignomínia, tamanha crueldade no aviltamento, tão grande sanha para ferir um homem.
Publicado 12/04/2006 11:35
Desde que o mundo é mundo, prever o futuro tem sido um desafio constante. Da cigana que lê a mão aos videntes e futurólogos de todos os matizes, ainda não se conheceu ninguém que fosse capaz de predizê-lo regularmente e com precisão. Seria demasia, portanto, esperar que os “analistas” políticos que proliferam na “grande imprensa” formassem um gênero diferenciado e mais eficaz de pitonisas. Eles sempre erram, e isso qualquer observador do mundo político que se preze sabe. Mas, convenhamos, suas bolas de cristal talvez poucas vezes estiveram tão turvas quanto agora. Em sua esmagadora maioria, as previsões feitas para o comportamento das pesquisas eleitorais mostraram-se disparatadas e são desmentidas dia-a-dia pela realidade.
O problema é que o fiasco tem um preço: quem seguiu essas previsões ao pé da letra viu seu projeto político virar pó. E aí, no desespero, emerge o submundo da política. Pegue, como exemplo, o site do Partido Popular Socialista (PPS). “Freire: Quebra do caseiro foi ação de governo e Lula é o responsável”, dizia a manchete principal na teça-feira (11). Pegue, ainda, as avaliações subqualificadas do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). "É como se ele (Luis Inácio Lula da Silva) não fosse presidente do Brasil", disse ele sobre os índices positivos obtidos por Lula nas pesquisas. Essa gente sabe que não pode enganar a todos o tempo todo e por isso faz do terrorismo político e do golpismo as suas principais armas de combate.
Luta entre a ética e a picaretagem
A tática inicial de “sangrar” o presidente naufragou. Mas mantiveram o impeachment sempre à vista — como uma bomba atômica para assolar e não para matar, segundo FHC — e regularam o fogo do denuncismo de acordo com suas conveniências. No entanto, praticamente nada mudou. "Há impeachment quando há uma comoção popular que faça o cidadão pressionar o seu parlamentar para votar. Isso não se configurou", afirmou o senador José Agripino (RN), líder do PFL no Senado. A senadora Heloísa Helena (AL), pré-candidata do PSOL à Presidência da República, disse que existem "motivos legais" para abrir processo por crime de responsabilidade contra Lula mas, segundo ela, faltam as "condições políticas".
O presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini, resumiu bem o motivo pelo qual a oposição não arrisca suas fichas no impeachment. "Medo das urnas; esse é o principal motivo”, disse ele. A direita sabe que essa contenda reflete, no fundo, a luta entre a ética e a picaretagem, o debate político e o proselitismo. E sabe também que a evolução desse combate levará o Brasil para frente ou para trás. O que ela não sabe ao certo — assim como ninguém — é o que vai acontecer. Mas todos sabem que os prosélitos daqui a pouco, por um motivo qualquer, levantarão mais tsunamis políticos. Esse script está elaborado há muito tempo. Quem acompanha o mundo político, mesmo que à distância, vê diuturnamente que nesse espetáculo circense os atores têm papéis bem definidos.
Regras do jogo político democrático
É um ato em que os líderes da oposição nem precisam aparecer — os ataques são feitos por prelados da mídia, economistas de direita e adivinhos profissionais que vendem seus serviços como “analistas”. O objetivo — ou o mais adequado seria dizer desejo? — é ver o governo imobilizado. As votações parlamentares, por exemplo, estão praticamente paralisadas. Não se pode, evidentemente, desconsiderar a grande parcela de culpa do governo nisso, que manteve uma relação política com o Congresso Nacional marcada por vacilações e equívocos. Faltou vontade política necessária para deflagrar e sustentar o processo de mudanças. Mas o fundamental é o jogo rasteiro da oposição.
Formalmente, temos uma democracia robusta. A questão é que o conceito de democracia baseia-se, em poucas palavras, na aceitação das regras do jogo tidas como razoáveis para todos. Num país onde um número muito grande de cidadãos acha que os ganhos econômicos não estão sendo compensadores, essas regras serão constantemente questionadas. Sempre haverá, por conseguinte, uma crise latente no sistema. De um lado, temos os trabalhadores habituados à busca do ganho na proporção do trabalho realizado e da produtividade. De outro, temos uma elite que entende o Brasil como extensão de seu umbigo. Esse pano de fundo da luta de classes no Brasil começou a ser tecido quando Getúlio Vargas tomou o poder por meio da revolução de 1930.
Sujeito, predicado e objeto direto
Daquele ano até 1980 — apesar da violenta interrupção do projeto desenvolvimentista com o golpe militar de 1964 — o Brasil destacou-se pelo extraordinário dinamismo de sua economia, passando da categoria de exportador periférico de produtos primários à de país industrial médio. Mas a partir de 1981, principalmente em decorrência das políticas implementadas pelo regime militar, perdemos o fôlego. Por que o Brasil parou desde então é questão que merece ser analisada em primeiro lugar politicamente. Entre 1930 e 1964 o Brasil experimentou um modelo de desenvolvimento que envolvia forte intervenção do Estado na economia. Os militares tentaram mudar esse rumo mas o êxito dos liberais só chegaria efetivamente quando FHC assumiu o poder em 1995.
Pela primeira vez, desde 1930, o projeto liberal no Brasil passou a ter sujeito, predicado e objeto direto. FHC foi eleito no vácuo da reviravolta no cenário mundial, quando a experiência socialista esfarinhou e o projeto social-democrata deu seus primeiros sinais de fraqueza. E, para ajudar, existiam os trilhos políticos adequados, construídos pelo regime militar. Aí foi só encaixar a figura de FHC, cuidadosamente esculpida para assumir a direção daquele processo. Mas a luta política — reflexo da luta de classes — é incessante. Os que encaram as campanhas eleitorais — não as eleições, que são um mero episódio final das campanhas — como algo que não opera transformações enganam-se profundamente.
Torpezas são moeda corrente
Sempre existe saldo positivo no debate político, na participação do povo nos destinos do país. Os defensores do status quo sabem disso e tudo fazem para que as eleições ocorram sem campanhas eleitorais. Preferem os pleitos às campanhas; preferem atos eleitorais simbólicos, espaçados, indiretos e eleitorado despolitizado ao exercício pleno da democracia. Desprezar o valor das campanhas eleitorais, portanto, é uma posição politicamente ingênua. E numa sucessão presidencial como a deste ano o combate ganha satus de vida ou morte — nela estará em jogo nada mais do que a decisão sobre se seguiremos ou não pelo caminho iniciado por Vargas em 1930 e interditado pela era militar-FHC (a eleição de Lula em 2002 foi, inegavelmente, um sinal de retorno a esse caminho).
Há, no entanto, um fato decisivo a se considerar: em uma campanha eleitoral, as torpezas são moeda corrente. As primeiras manchetes do que viria a ser a sórdida onda de ataques ao governo Lula, por exemplo, representou uma espécie de ordem unida para o avanço da direita. Ou seja: soou a voz do dono. Desde então, o que se viu foi a repetição da sordidez outrora usada contra Vargas — que o levou ao suicídio. Como naqueles idos, nunca se vira tanta ignomínia, tamanha crueldade no aviltamento, tão grande sanha para ferir um homem a quem seus acusadores, sem autoridade para sê-lo, só podem imputar o “crime” de pretender encurtar as distâncias sociais existentes em nosso país. Desde a sanha contra Vargas, nunca se viu tanto ódio, tanta torpeza, tantos insultos contra uma pessoa que nada fez para merecer isso tudo.
Viseiras dogmáticas
O que está se passando com Lula é ignóbil. Dia a dia, ultrajam-no mais. Nem a sua família lhe poupam. A “grande imprensa” já cometeu todos os desmandos, ultrapassou todos os limites, rompeu todas as convenções. Nada ficou de pé. E a cada um dos desatinos parece que a única preocupação é superar os anteriores. Seus “analistas” têm o único objetivo de criar um coro alucinado na toada fria e implacável das invectivas, zombando daquele que merece todo o respeito da nação. O objetivo confesso é fazer Lula parecer uma criança órfã, desamparada de pai e mãe. Para tanto, se aproveitam de suas próprias criações, como é o caso da corrupção eleitoral, para vender a idéia de que o país precisa de um salvador da pátria. E assim criam dificuldade para o eleitorado definir o voto.
O que alguns representantes do povo — falo dos verdadeiros, dos que o são de fato — aparentemente ainda não entenderam é que a sucessão presidencial não pode ser medida apenas segundo o candidato (seus traços biográficos, suas características, seus pendores). O mais importante é levar em conta a composição de forças que o lançam ou apóiam, o programa com o qual se compromete, seus laços com o regime democrático — ainda que no nível a que esse regime atingiu em nosso país. Um candidato honesto em suas convicções. A honestidade é ponte segura para as mudanças. E é essa ponte que dá a Lula o direito de pleitear mais quatro anos na Presidência da República. Só não enxerga isso quem, de um lado, está munido de viseiras dogmáticas, ou quem, de outro, está mordido por ter de ceder um pouco do muito que tem.