“A Família Savage”: A morte como cotidiano
Com abordagem crua sobre a velhice e a doença que pode acompanhá-la, a diretora estadunidense, Tâmara Jenkins, trás de volta a discussão sobre pessoas comuns, vivendo situações extremas.
Publicado 25/07/2008 18:23
Alguns filmes têm a virtude de escapar à tendência de privilegiar personagens classe média, vivendo situações que reforçam a eterna juventude. Ampliam o espectro da variedade etária, em que pessoas das mais diferentes idades enfrentam seu cotidiano de acordo com as barreiras que lhes são impostas pela vida. Nada de desencontros, beirando ao romantismo desencantado, regado a drogas e sexo, significando nada mais que a derrocada de seres que não conseguem manter-se na superfície e chafurdam na pura decadência. Preferem buscar saídas na multiplicidade de opções que a sociedade, mesmo diante do impasse atual, ainda oferece. E acabam por traçar um perfil das relações humanas, sem apelar para o falso moralismo ou uma ética que beira o ridículo. Tâmara Jenkins, em seu filme “A Família Savage” enquadra-se nesta tendência ao centrá-lo nas relações entre pai e filhos, no interior do estado de Nova York.
O faz sem compaixão, mostrando como a velhice é um estágio da vida em que a morte torna-se uma presença incômoda, da qual é impossível escapar, por mais que se tente escamotear seu odor, espectro e prenúncio. E os filhos, ao estarem às voltas com ela, têm uma visão de como ela os abordará no futuro e, por isto, buscam desfazer-se de preconceitos, manias e pudores, enquanto ainda é possível desfrutar do que a vida lhes oferece. Wendy (Laura Linney) e Jon (Philip Seumour Hoffman) vivem distantes do pai septuagenário, Lenny (Philip Bosco), entregues que estão a fazeres que não o inclui, – até receberem um telefonema dando conta de que ele adotou um comportamento adverso ao costumeiro. É o suficiente para que um lado seu esquecido e alheio retorne como um fantasma. Nenhum deles está preparado para o que se lhes apresenta.
Irmãos confrontam-se diante da morte inevitável
Wendy, aspirante a dramaturga, passa seu tempo às voltas com tentativas de ter suas peças aceitas e encontros furtivos em seu apartamento com o amante Larry (Peter Friedman), bem mais velho do que ela. E Jon entrega-se a aulas na universidade, onde é professor, a pesquisa para um sempre adiado livro sobre Brecht e hesita entre ficar ou não com sua namorada polonesa. Cotidianos que os colocam fora do grupo de pessoas que levam vidas normais, pelos padrões morais de uma sociedade protestante, como a estadunidense. Estão longe de constituir família e pegar brinquedos de crianças espalhados pela casa. Wendy os substituiu por cães, livros e discussões enfadonhas com Larry sobre a saúde da mulher dele. Enquanto Jon, taciturno, tenta ser racional ao analisar as possibilidades de sobrevivência de sua relação com a polonesa, que vive nos EUA como imigrante clandestina. É o máximo que o aproxima da vida comum.
São pessoas, então, pouco dotadas para enfrentar as situações criadas pela doença do pai. Ácido, mal humorado, Lenny faz tudo para dificultar a relação com os filhos e as tentativas que eles fazem para tornar sua sobrevivência aceitável. Há sempre um mal estar entre eles. Tudo o aborrece. Os modos de Wendy, receosa, temerosa de abordá-lo, irritá-lo, e a maneira direta, clara e incisiva de Jon, para quem a doença que acomete o pai é incontornável, sendo necessário admiti-lo para facilitar o encontro de uma saída melhor. O tempo todo eles se digladiam, procuram uma forma de abrigá-lo à altura do que ambos deveriam ter feito antes e não o fizeram. Deveriam, imaginam, ter ficado ao lado dele, evitado que vivesse solitário, mas logo descobrem que foi o próprio Lenny que os afastou, ao trocar a mãe deles por outra mulher. E a culpa então recai sobre o velho. Eles custam a admitir isto. Wendy é quem mais sofre; é frágil demais para se condoer com a derrocada do pai, outrora vigoroso, ainda que autoritário.
Wendy tem caso com o vizinho sem culpa
Wendy, feito por uma Laura Linney distante de seus papéis de coadjuvante, como mulheres que muitas vezes não se nota, aproveita a chance de mostrar-se uma atriz de amplos recursos. Enfrenta com equilíbrio cenas que poderiam cair no grotesco. Quando se deixa abordar por Larry, num diminuto espaço, solta frases curtas; escapa a seu assédio, o indaga sobre a mulher dele, mas acaba por atraí-lo, faminta. Nota-se que há ali uma relação inconclusa, de um homem casado com uma mulher madura, cujas exigências não chegam à vida a dois, mas tão só afeto, atenção e sexo. E isto lhes basta. Nenhuma menção ao fato de ser a outra, a amante, eles se encontram e pronto. Às vezes, ela derrama sobre ele suas lamúrias, de que Larry se aproveita dela para remediar sua crise de meia idade. Ele resmunga, retruca, se defende, sabe, no fundo, que ela o tem e isto também lhe basta.
Uma relação que encerra em si mesma é suficiente para atestar a maturidade da diretora/roteirista Tâmara Jenkins. Não pune ou expõe demais a personagem. O espectador não sente compaixão por Wendy; ela é uma boa pessoa sob aquela couraça de hesitação e fragilidade. Quando ela discute com Jon a mudança de Lenny para outro asilo e ele lhe diz que ela tenta amenizar sua culpa em relação ao pai, por não tê-lo coberto de carinho em outros tempos, ela custa admitir, mas logo cai em si. Mas se enreda numa disputa ridícula com o irmão sobre quem irá sobressair mais que o outro. E se descobre mentindo. Não é esperta o suficiente para manter uma mentira, pelo menos tenta e não se deixa levar. Está numa fase difícil da vida, vivendo de bicos e tramóias, sem perspectiva alguma de que suas peças serão encenadas algum dia. Situação idêntica à de muitos aspirantes a dramaturgos mundo afora.
Trio de atores domina a cena com brilhantismo
Bem diferente de Jon, estabelecido na sala de aula, disposto a pesquisar a obra de Bertold Brecht para descobrir nele humor ácido, coisa inusitada. Intelectual, não dado a emoções rápidas ou tensões que não possa controlar, acaba atraído para o círculo de Wendy. Sempre contesta as escolhas da irmã, mas está sempre ao seu lado, ainda que a criticasse. O autocontrole com que Philip Seymour Hoffman o faz, deixa-o longe de uma apreciação simpática. Muitas vezes, ele a pune por suas fraquezas. Como quando a pega mentindo. Ele, que estava aceitando-a como uma vencedora, descobre-a numa tramóia digna dos corruptos que se valem do dinheiro público para tocar seus projetos. É impiedoso, mais por vingança do que por querer tirá-la de seu caminho. Numa hilariante cena, ele termina por torcer o pescoço e fica pendurado feito um boneco, enquanto trava com ela uma inútil discussão sobre o futuro. Percebe-se que ambos sabem da inutilidade da discussão mais a travam em benefício de uma competição que acabará em nada.
A inteligência que brota das seqüências de “A Família Savage” aumenta quando Wendy e Jon se encontram com Lenny. O trio de ótimos atores se completa. Philip Bosco, acostumado a fazer personagens bem de vida, faz um Lenny barbado, cabelos crescidos penteados para trás, enfiado em pijamas e trajes de jogging, soltando bílis em seqüências impressionantes. Dele não se sente pena, tampouco é simpático. Pelo contrário, em suas costas parece sempre haver malignidade. Quer a todo custo ser tratado sem meias palavras, cuidados excessivos ou como alguém que, enfim, ficará pelo caminho. Ao estar diante dos filhos, num diálogo cheio de sutilezas; ele se irrita ao ser perguntado sobre como gostaria de ser enterrado. Wendy, como sempre, faz voltas para falar o que pretende; Jon se intromete e Lenny esbraveja, numa irritação que os intimida. “Enterrem-me e pronto, idiotas!”, ele diz; quase se levantando da cadeira de rodas a que está confinado.
Espectador fica diante do horror do definhamento
Está ali algo correto, dito num momento de irritação. Lenny sabe que está condenado. A morte está ali mesmo; ele a percebe. Os filhos insistem em adiá-la. Talvez por compaixão, talvez por não o querer encerrado num caixão. O lugar comum da morte se estabelece. A doença de Lenny o leva há cada segundo; logo estará sob a terra. Os filhos não meditam sobre isto, apenas reagem. Quem a torna presente é o enfermeiro nigeriano Jimmy, que numa conversa descontraída com Wendy, explica como o corpo cede à morte. Os sinais que dá; não é mais a doença – dela já se sabe -, agora é a vez do corpo se esvair. Então, o filme sobre a relação dos filhos com o pai doente e sobre como cuidar dele, para amenizar seu sofrimento, se transforma numa obra sobre como aceitar o definhamento do corpo e perceber a chegada da morte. Um horror sem dúvida, muito real também sem dúvida.
Tamara Jenkins não tergiversa, nem escapa para seqüências em que a antiga vivacidade de Lenny se contrapõe à sua agonia atual. Leva o espectador a aceitar uma realidade da qual está consciente, mas que adia, adia até mesmo a consciência de sua inevitabilidade. Completa de forma indireta a abordagem de Sarah Polley, em “Longe Dela”, em que o Mal de Alzheimer consome a lucidez de Fiona (Julie Christie). Lenny tem consciência da gravidade de sua situação, Fiona mal percebe que adentra a outro mundo. Ambas as diretoras não caem no clichê de discussões filosóficas sobre a vida ou a aceitação da morte. Ela é apenas um dado na existência humana. A pregação da eterna juventude a retirou de discussão; a morte no cinema virou uma questão estética. Em câmera lenta nos filmes de Sam Peckinpah (“Meu ódio Será Sua Herança”) e nos de John Woo (“Fervura Máxima”), e imitados em incontáveis produções de segunda e terceira linha ou nem tanto, ela nem é percebida.
Morte em filmes comerciais vira ponto de vídeo game
Os corpos são estilhados, jorra muito sangue, e os corpos ficam lá amontoados, numa alusão explícita à guerrilha urbana estabelecida nas grandes cidades. Dor alguma parece existir. Na televisão ainda dá para sentir a dor colada nos rostos dos parentes e amigos, no cinema os gemidos completam apenas os efeitos especiais. Ninguém agoniza e morre. Puro videogame. Ou, para lembrar outra vertente, na linha de “filmes classe média”, ela surge muito clean: roupas pretas em velório que mais parece “recepção fashion”, com muita comida e, depois, o enterro reduzido ao caixão descendo à cova e os rostos contritos dos presentes. A dor jamais emerge e a morte não está presente. Nada pode, nestes filmes, acabar com a “ideologia da eterna juventude”. As contradições, tão presentes em toda sociedade, não transparecem. As várias etapas da vida são, quando muito, matizadas pela presença de pessoas das mais diferentes faixas etárias. Só isto.
Quando “A Família Savage” aparece com uma discussão em que os personagens têm vidas reais e a morte se intromete através da figura do pai acometido de doença degenerativa, a “ideologia da eterna juventude” esboroa. E então todo o arcabouço feito para o consumismo, traduzido na configuração desta própria ideologia, perde o sentido. É o que não acontece com Jon, vestido como alguém pronto para uma caçada, com bolso por toda a calça, e com Wendy pronta para a labuta diária numa fábrica e Larry para uma ida à padaria da esquina. São, portanto, cidadãos comuns, vivendo situações de cidadãos comuns. Inclusive a de admitir a diversidade étnica na relação de Wendy com Jimmy (Gbenga Akinnagbe). Eles conversam como iguais, sem que ela tenha qualquer precaução em relação a ele. Até quando Jimmy cuida do pai e com ela conversa, o faz como profissional e ela o aceita.
Desnecessário dizer que “A Família Savage” ao cuidar da morte, afirma a vida. Os nós atados ao longo do filme se desatam, pondo a vida a girar de forma diferente. Wendy e Jon descobrem afinal ser necessário ir ao encontro do que pretende sem hesitação. Qualquer temor os fará perder parte do que lhes é precioso. O que ficou para trás faz parte de uma construção, que para ser aceita precisa de trazer a vida à tona. Esta pode estar nos mínimos detalhes, como ir ao encontro da pessoa amada, ou aceitar o parceiro com seus defeitos e virtudes. E sem lição de moral ou mensagens, iguais a: vamos seguir em frente, a vida continua. Afinal, mesmo esse seguir em frente é uma construção. O cão de Wendy seguindo-a é uma demonstração disto. A morte, sem dúvida, é parte do cotidiano. E não apenas dele. Um clichê, portanto. Mas a morte não é um arquétipo cinematográfico; é um dado real que não se pode ignorar sob pena de cair no estereotipo da eterna juventude.
“A Família Savage” (“The Savages”). EUA. Drama. 2007. 114 minutos. Roteiro/direção: Tâmara Jenkins. Elenco: Philip Seymour Hoffman, Laura Linney, Philip Bosco, Peter Friedman e Gbenga Akinnagbe.