Seca no Brasil é a pior em 70 anos e impacta 58% do território nacional
Dados do Cemaden apontam para cenário alarmante. A Coordenadora Geral de Adaptação à Mudança do Clima, do Ministério do Meio Ambiente, Inamara Mélo, analisa a situação
Publicado 06/09/2024 13:52 | Editado 07/09/2024 16:52
O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) publicou uma análise que indica que o ano 2024 registra a maior seca em 70 anos no Brasil. O cenário trágico incide tanto em intensidade, como na extensão que atinge cerca de 5 milhões de km2, o que equivale a 58% de todo o território nacional.
O estudo avalia a quantidade de chuvas e de água que evapora, assim como a transpiração das plantas. Neste quesito, a elevação das temperaturas, provocada pelas mudanças climáticas, tem grande influência, uma vez que quanto mais quente o clima, maior evapotranspiração ocorre. Para medir isto, o Centro utiliza o Índice de Precipitação Padronizado de Evapotranspiração (SPEI, na sigla em inglês), que avaliou o período entre 1950 e 2024.
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Conforme o Cemaden, unidade de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), este ano já superou as secas expressivas 1998 e de 2015/2016, sendo que esta última chegou a atingir 4,5 milhões de km2. Outra constatação coloca que desde os anos 90 os períodos de seca têm se agravado. Mesmo em anos com maior umidade (que podem ser vistos no gráfico em azul), estes foram muito inferiores em comparação com décadas anos anteriores.
Para entender melhor esta situação em relação direta com as mudanças climáticas e o trabalho feito para reduzir seus efeitos, o Portal Vermelho conversou com a Coordenadora Geral de Adaptação à Mudança do Clima, do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Inamara Mélo. Confira!
Qual avaliação é feita sobre os dados apresentados pelo Cemaden, que indica a pior seca desde 1950?
Estes dados recentemente divulgados pelo Cemaden só reforçam o que a ciência vem alertando há tempos sobre a intensificação dos eventos extremos. E é bem importante dizer que não há alarmismo nos alertas apresentados pela ciência. Cientistas já avaliam que se houve um erro nas previsões realizadas até aqui, esse foi o de primar pelo conservadorismo acerca das alterações do clima, que estão se acontecendo cada vez mais rapidamente, afetando sistemas naturais e humanos.
O IPCC, Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, trouxe em seu último relatório, o AR6, que as mudanças climáticas observadas são generalizadas, rápidas, intensificadas e sem precedentes em milhares de anos. E o Brasil está neste contexto, apresentando grandes vulnerabilidades. Nós estamos assistindo isso e fica difícil sustentar o negacionismo climático de alguns.
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São secas e incêndios florestais de um lado e enchentes e tempestades de outro, em desastres que ampliam o número de vítimas e os prejuízos patrimoniais. Agora o que aparece na mídia é a seca, que agrava a questão dos incêndios e impacta a qualidade do ar, além de trazer outros sérios problemas. Mas em um curto período, tivemos a tragédia do RS deste ano, antecedida pelo ciclone extratropical no Sul, a tragédia no litoral norte de São Paulo, outra tragédia com muitas mortes contabilizadas em Pernambuco, municípios em situação de calamidade pública em decorrência de chuvas intensas no sul da Bahia. Nas regiões costeiras, tempestades e ventos fortes causam com maior frequência danos às infraestruturas e prejuízos socioeconômicos em diversos municípios. E, em outras regiões, períodos de seca extrema comprometem o abastecimento de água, a produção agrícola e a geração de energia.
A Plataforma S2ID (Sistema Integrado de Informações sobre Desastres), do Ministério da Integração Regional, informa que o Brasil registrou na última década que 83% dos municípios foram atingidos por esses impactos, afetando perto de 180 milhões de pessoas e causando perdas econômicas de mais de R$420 bilhões, sem contabilizar a tragédia do Rio Grande do Sul. E o que os cientistas nos apontam é que a mudança do clima intensificará ainda mais estes impactos nas próximas décadas, trazendo a urgência de se desenvolver e implementar políticas e planos para aumentar a resiliência do Brasil.
Qual exatamente o papel das mudanças climáticas neste cenário?
A primeira coisa que devemos ter clara é a responsabilidade humana sobre as variações climáticas e sobre isso as evidências são incontestáveis. Muitos são os estudos que apontam que a mudança climática afeta todo o planeta, de múltiplas formas. Desde a revolução industrial, o modelo de produção capitalista tem provocado efeitos danosos aos ecossistemas e à sociedade, colocando em risco a própria economia. E os esforços de mitigação dos gases de efeito estufa (GEE) adotados até aqui têm sido insuficientes para evitar essas alterações no planeta. Aliás, mesmo se os países estivessem no caminho de alcançar os compromissos do Acordo de Paris, isso ainda seria muito pouco para limitar o aquecimento num padrão seguro para a humanidade. Não temos dúvidas de que os impactos da mudança climática se constituem no maior desafio da atualidade e que para almejar um ambiente saudável e protegido é necessário estabelecer um novo modelo de desenvolvimento em que se possa, de fato, contemplar o desenvolvimento sustentável.
Mas é bom que se diga que os riscos relacionados ao clima resultam tanto de mudanças nos padrões de temperatura e precipitação, quanto socioeconômicos. Temos que lembrar que os desastres não se devem apenas a fatores climáticos, como muita chuva ou ondas de calor. Mas como as populações e os sistemas estão vulneráveis ou expostos a essas ameaças. A pobreza, a desigualdade, a fome, a insuficiência de serviços agravam enormemente os impactos climáticos. São as periferias das grandes cidades, onde se verifica a falta de moradia e de serviços básicos, que mais sentem a mudança do clima. As inundações geralmente acontecem em áreas que não deveriam ter sido ocupadas. A seca vai ser mais sentida por comunidades pobres. São os pobres, que têm normalmente baixas pegadas de carbono, os que são desproporcionalmente afetados pelas consequências adversas das alterações climáticas. E o enorme fosso causado pelas desigualdades sociais também vão moldar as respostas da sociedade a essas mudanças. A necessidade de políticas urbanas, ou de reforma agrária e regularização fundiária, por exemplo, não nasce das mudanças climáticas, são demandas históricas importantes em países em desenvolvimento como o Brasil e que neste contexto de crise climática se constituem em uma agenda cada vez mais relevante.
Quais realizações a sua coordenadoria, e o Ministério, tem realizado para reduzir efeitos como estes?
O fortalecimento da agenda de adaptação à mudança do clima passa por duas frentes. Mas sublinho que não se trata da agenda de um setor do governo. Nós, da Secretaria de Mudança do Clima, avaliamos que é absolutamente necessária a soma de esforços e estratégias dos diversos órgãos e instituições do governo brasileiro para melhorar a capacidade do país para lidar com esse novo contexto de desastres climáticos.
A primeira frente busca assegurar um planejamento efetivo. O governo federal tem o papel de promover a gestão de riscos climáticos nas políticas e estratégias da administração pública (envolvendo ministérios, estados e municípios), bem como sensibilizar e mobilizar os atores relevantes do setor público, do setor privado e da sociedade civil sobre os riscos da mudança do clima. O primeiro Plano Nacional de Adaptação (PNA), lançado em 2016 pela ex-presidenta Dilma, foi um importante esforço, mas que foi deixado de lado no governo anterior.
Pois bem. Após uma interrupção que pode ter custado vidas e gerado um grande prejuízo ao país, nesta gestão do presidente Lula a agenda de adaptação foi retomada e reconhecida como urgente diante das catástrofes que assolam o país. Foi recriado o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM) que tem como uma de suas competências propor atualizações da Política Nacional de Mudança do Clima (PNMC), incluindo as estratégias de mitigação e adaptação. Nós coordenamos o Grupo Técnico de Adaptação, responsável por elaborar essa estratégia nacional e 16 planos setoriais, hoje com 25 ministérios envolvidos. Temos experimentado um intenso processo de engajamento, integração entre setores e capacitação sobre riscos climáticos e temas como adaptação baseada em ecossistemas e justiça climática.
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Até o final do ano, pretendemos entregar um plano que dê conta de reduzir os riscos em cada um dos temas, como agricultura, energia, cidades e gestão de desastres, entre vários outros, e para os quais estamos definindo metas nacionais e meios de financiamento. O propósito é reduzir a vulnerabilidade aos impactos climáticos e promover a capacidade adaptativa no território nacional, tendo como eixo norteador a promoção da justiça climática e a integração do tema da adaptação ao conjunto de outras políticas e planos federais.
Na segunda iniciativa, concomitante ao Plano nacional, o governo busca investir na melhoria da capacidade institucional de estados e municípios. Por meio da iniciativa AdaptaCidades, o MMA pretende apoiar a elaboração de 260 planos locais de adaptação, priorizando os municípios considerados críticos para alcançar as populações na ponta, com a promoção de medidas concretas para minimizar os impactos.