Netflix permite, finalmente, visitar o chão realista de Macondo, em Cem Anos de Solidão

O romance que parecia impossível de filmar ganha vida do jeito que García Márquez gostaria, com sotaque costeño, rostos e realizadores colombianos

Bastidores da cena em que dois traficantes de pele viajantes atravessam La Guajira, um deserto na costa da Colômbia, antes de chegarem a Macondo cocom Rebeca Montiel. (Mauro González / Netflix ©2024/divulgação)

Quem nunca imaginou viajar para Macondo na Colômbia e conhecer os lugares onde viveram os Buendía? Muitos demoram pra entender que a aldeia mágica nunca existiu e nunca esteve disponível ao turismo. Pois o poderio econômico da Netflix recriou Macondo com seu casario colonial hispânico, suas varandas e vegetação exuberante, e todo seu esplendor decadente. Mas principalmente com sua fantástica fauna humana.

A série lançada nesta quarta-feira (11) promete algo inédito: a primeira adaptação de Cem Anos de Solidão para as telas. Em meio ao afluxo interminável de séries no streaming, há que se perguntar como as plateias exauridas por maratonas de episódios vão reagir a estas imagens tão calcadas na força da literatura e fiéis ao texto original.

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Baseada no clássico de Gabriel García Márquez, a produção da Netflix leva o romance para a televisão com uma recriação cuidadosa de Macondo, a cidade fictícia que nunca deveria ter existido, mas agora ganha forma no mundo real.

Macondo, o cenário imaginário do romance de 1967 que ajudou García Márquez a conquistar o Prêmio Nobel, surge em um campo nos arredores de Ibagué, na Colômbia. Construída do zero, a cidade é o coração da série, com pássaros de verdade fazendo ninhos em árvores e cães vagando por suas ruas. Essa dedicação ao realismo contrasta com a resistência do autor às antigas ofertas de Hollywood, que ele rejeitou temendo que a obra perdesse sua identidade ao ser traduzida para o inglês ou condensada em um filme de poucas horas.

“García Márquez acreditava que Cem Anos de Solidão era inadaptável,” diz Rodrigo García, filho do autor. Mas a Netflix superou objeções ao propor uma série em espanhol, com elenco majoritariamente colombiano, filmada no país natal do autor. Dividida em duas temporadas, a produção estreou com oito episódios.

A qualidade visual é um espetáculo à parte. Com mais de 20 mil figurantes, 15 locações na Colômbia e uma infinidade de figurinos, a série mantém o alto padrão de outras grandes produções da Netflix. Acompanhamos as gerações da família Buendía, com histórias entrelaçadas de amor, tragédia, guerra e mistério ao longo de um século.

Realismo mágico na tela

Recriar o realismo mágico foi um dos maiores desafios para os showrunners da série. Como retratar o cotidiano surreal de Macondo, onde fantasmas circulam sem espanto, bebês podem nascer com rabo de porco e flores amarelas caem do céu? A solução, segundo os diretores Laura Mora e Alex García López, foi evitar efeitos visuais exagerados e priorizar cenas feitas diante das câmeras. O fantasma que assombra os Buendías, por exemplo, é interpretado por um ator real, enquanto a chuva de flores foi filmada com milhares de pétalas reais e plásticas.

Embora o romance se passe entre os anos 1820 e 1920, a percepção de tempo é elástica e circular, característica que a série abraça, criando uma obra atemporal e visualmente cativante.

A adaptação é fiel à narrativa original, incluindo a célebre frase de abertura:
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.”

Em cenas icônicas, como a chegada do gelo a Macondo, o visual deslumbrante é obtido com jogos de luz e sombra que recriam o deslumbramento dos personagens frente à novidade. Da mesma forma, o sangue que percorre as ruas até à cozinha de Úrsula é apresentado como uma extensão natural de seu sexto sentido.

A série aborda com respeito os elementos mágicos do livro, como o sangue que encontra sua mãe e a praga da insônia, integrando-os à narrativa sem torná-los caricatos.

Tudo foi feito para parecer analógico, artesanal, segundo os diretores. A ideia era que os atores vivenciassem o que estava no set, sem precisar imaginar coisas que não estavam lá.

Uma homenagem à Colômbia

A série também é um tributo à Colômbia. A equipe de produção passou meses pesquisando a história e cultura do país para recriar o período do romance, desde os estilos arquitetônicos do século XIX até os trajes baseados em desenhos da época. Artesãos colombianos confeccionaram cestos, redes e mochilas que adornam os cenários, enquanto plantas típicas da costa caribenha foram trazidas para completar a paisagem.

Os atores também mergulharam na história do país, aprendendo o sotaque costeño e habilidades como caligrafia e bordado.

Para muitos, a produção é mais do que uma adaptação literária; é uma forma de dar vida à rica e complexa história colombiana que inspirou García Márquez. Um realismo mágico que sempre foi muito realista na criatividade prodigiosa do autor.

Uma experiência imersiva

Os detalhes acumulados ao longo da série tornam Macondo tão real que, segundo a diretora de arte Bárbara Enríquez, eles podem não ser vistos, mas certamente são sentidos. A primeira temporada cobre o século XIX, enquanto a segunda avança até o século XX. “Queremos que os colombianos olhem e digam: ‘Sim, era assim mesmo’”, diz Enríquez.

Com sua estréia, a série promete ser uma imersão não apenas no universo de Cem Anos de Solidão, mas também em um pedaço inesquecível da alma latino-americana. Para os fãs do romance e para aqueles que buscam histórias fascinantes, a série é, no mínimo, um convite irresistível a um dos maiores clássicos da literatura mundial.

Com informações do NYT

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