O “lado bom” do governo Bolsonaro

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Fotomontagem feita com as fotos de: Blaque X/Pexels e Adriano Machado/Reuters

Primeiramente peço desculpas se o título passou a ideia de que haveria um lado bom nesses anos terríveis que vivemos. Que fique claro que não pode haver nada para comemorar em meio às sandices, irresponsabilidades, retrocessos, ataques à democracia e agressões generalizadas que marcam o desgoverno do capitão Jair.

A motivação principal desse texto foi aventar a possibilidade, na verdade, a necessidade de que a sociedade brasileira aprenda algo com essa experiência desastrosa. É preciso refletir a respeito de muitos temas que foram tomados como bandeiras por esse governo fracassado, sustentadas por preconceitos, interesses escusos e um grande esforço em promover a desinformação. Uma reflexão que provavelmente não perdurará por muito tempo nem atingirá os bolsonaristas fanáticos, como bem sabemos, mas que precisa sensibilizar os eleitores arrependidos e permanecer como baliza de sensatez ao menos para as próximas décadas.

São muitas as possibilidades de aprendizado. Cito, a seguir, apenas algumas que me ocorrem, e que podem parecer óbvias para alguns, mas que, a meu ver, merecem ser incluídas nessa lista de reflexões:

– A democracia é frágil e precisa ser valorizada, exercitada e defendida cotidianamente, independente de se gostar ou não dos governantes eleitos.

– A educação é muitíssimo importante e não diz respeito apenas ao ensino de conteúdos ou à formação técnica, mas à formação humana. Paulo Freire sempre esteve certo, e precisa sim ser massivamente lido e aplicado pelo Brasil afora, coisa que ainda não esteve nem perto de acontecer.

– A sociedade brasileira organizou-se a partir de uma cultura de racismo, homofobia, violência e machismo. Colocar no maior grau de evidência midiática sujeitos como os da família Bolsonaro incentivou que esses comportamentos se exacerbassem e que nossos valores morais ficassem ainda mais fragilizados.

– O Brasil é um país extremamente desigual que teve a sociedade forjada por quase quatro séculos de escravidão, abolida, no papel, há apenas pouco mais de 100 anos. Combater as desigualdades produzidas ao longo da história por meio de políticas públicas consistentes é a única forma de tornar o país mais justo e menos violento.

– Histórias de superação (sobretudo de pessoas pobres que conquistam reconhecimento público) são realmente inspiradoras, mas não podem ser usadas para justificar uma meritocracia que não pode existir num país tão desigual. Uma nação justa deve garantir dignidade e oportunidades a todos.

– Todo órgão de imprensa tem uma agenda política, portanto cabe ao povo receber as notícias criticamente. O que não quer dizer que se deve ignorar os fatos ou distorcê-los até que atendam à posição política pessoal de cada um, mas comparar os enfoques de cada veículo de comunicação e manter-se sóbrio e ciente das suas posições políticas.

– O WhatsApp é uma ferramenta interessante de comunicação, mas definitivamente não é uma fonte confiável de informação! Precisamos de regras mais duras de regulação e responsabilização daqueles que veiculam notícias, sobretudo as falsas ou distorcidas, sejam indivíduos ou corporações.

– A política decide nossas vidas, portanto é tema essencial a ser debatido em todos os setores da sociedade. Quem criminaliza o debate político em nome de uma suposta isenção tem evidente interesse em que sua opinião não seja contestada por ninguém.

– A corrupção é um problema humano que não é necessariamente intrínseco a um setor específico da sociedade ou da política. Ser de direita, esquerda, militar ou professor não é garantia de honestidade. A corrupção precisa ser combatida e punida, ao invés de ser meramente politizada.

– A postura individualista e mesquinha do “cada um por si” é danosa para todos. Viver de modo cooperativo e solidário, considerando que as atitudes individuais impactam a vida dos outros, é imperativo. Temos que ter aprendido isso com a gestão caótica da pandemia, e em respeito aos mais de 560 mil brasileiros mortos.

– O meio ambiente não é um problema para o desenvolvimento, muito pelo contrário. A sociedade sustentável é o único modelo possível para assegurar a sobrevivência da humanidade em condições de dignidade e justiça.

– A ciência é a base do desenvolvimento de qualquer país. Todos os recursos possíveis devem ser aplicados em desenvolvimento científico e tecnológico, assim como deve haver incentivo para que os jovens (de qualquer classe social, gênero ou cor) queiram ser cientistas. O país atrasado em ciência fica à mercê dos mais avançados, em todos os sentidos.

– A universidade pública é uma instituição fundamental para a manutenção da democracia e para a formação da cidadania, pois não forma quadros técnicos qualificados apenas, mas produz espaço vivo de debate democrático sobre a realidade do país.

– O acesso de todos ao ensino superior é uma poderosa ferramenta de transformação social, mudando a vida de famílias inteiras e das gerações que virão. A ideia de que “universidade deve ser para poucos” é conversa fiada e elitista dos que querem continuar com os mesmos privilégios de sempre para si e para sua “família”.

– Os povos tradicionais do Brasil (indígenas, quilombolas e tantos outros) são a essência da identidade do povo brasileiro. Merecem todo o respeito aos seus direitos e a melhor forma de demonstrar isso e garantir sua qualidade de vida é a demarcação de seus territórios.

– É o Estado (e não o Mercado) quem garante a soberania de um país e o acesso justo das pessoas aos seus direitos básicos. Saúde, educação, energia, água, biodiversidade e riquezas minerais são alguns exemplos de serviços que não podem ser meramente entregues a iniciativas privadas.

– Ser de esquerda ou de direita não tem relação direta com autoritarismo ou democracia, uma vez que no mundo há (e houve) governos autoritários de direita e de esquerda. Mas o fato é que, no Brasil, o comportamento histórico da esquerda foi o de sempre estar associada à defesa intransigente da democracia. Por outro lado, é a extrema direita, como estamos novamente presenciando, que não tolera questionamentos de nenhuma natureza e busca impor sua visão de mundo a qualquer preço. Aliás, a bandeira, o hino e demais símbolos nacionais não pertencem a nenhum grupo ideológico específico, mas são representativos de todos os brasileiros.

– O Congresso Nacional tem menos políticos livres voltados ao interesse público do que sujeitos patrocinados a serviço de grupos específicos, como são os casos do agronegócio, dos fabricantes de armas, das igrejas neopentecostais, entre outros. Mas quem coloca essa gente lá é o povo por meio do voto. Esse mesmo povo precisa saber retirar quem não os representa nas eleições seguintes.

– O Estado laico é uma garantia de respeito à liberdade individual. Cada sujeito deve ser respeitado no seu direito de praticar sua religião. Contudo, a imposição de valores de certas religiões aos demais não é aceitável em uma democracia.

– Os Três Poderes são essenciais à manutenção da democracia. Eleger presidente, senadores e deputados requer muita responsabilidade, e o voto de protesto tem (péssimas) consequências. O discurso que diz que “políticos são todos iguais” é falacioso e só favorece os sanguessugas do dinheiro público. Sempre há candidatos(as) melhor preparados, mais honestos e mais comprometidos com as causas populares. O STF precisa ser respeitado e, ao mesmo tempo, acompanhado de perto pela sociedade, assim como a escolha de seus Ministros.

– Quem ocupa (ou almeja ocupar) a Presidência da República não precisa (aparentar) dominar todos os campos do conhecimento ligados à gestão do país, muito menos ser grosseiro e autoritário, passando a ideia de que os problemas serão resolvidos pela sua vontade e autoridade, mas deve ser uma liderança, capaz de lidar com as contradições e disputas políticas, de se cercar de gente capaz e honesta e montar boas equipes, de ouvir os diversos setores da sociedade e dialogar com a oposição, com a imprensa e com o resto do mundo, e de rever suas posições quando necessário.

– A política deve ser feita por disputas, acirradas inclusive, mas nunca cegada pelo ódio, pela ganância, insensatez e ignorância.

Poderíamos seguir por páginas a fio. Certamente cada um poderá acrescentar muitos outros temas, e ainda corrigir as falhas das afirmações acima. O mais urgente é que o povo comece a exercitar esses aprendizados já em 2022. Se eles forem incorporados à compreensão que a maioria da sociedade terá a respeito do Brasil, então poderemos começar a imaginar que algum proveito foi tirado desses anos trágicos.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho

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