Em vez de carbono, a vida no centro da crise climática
Ao focar em alvos ambientais, ativistas de países ricos correm o risco de colocar suas medidas acima da vida das pessoas vulneráveis.
Publicado 11/10/2020 15:37
A dissonância é suficiente para me fazer desinstalar o Twitter. Talvez seja a fadiga por compaixão [síndrome que acomete os que lidam com sofrimento alheio], talvez seja 2020. Mas se eu for honesta comigo mesma, há um abismo do tamanho do mundo na forma como percebemos a emergência climática nas diferentes linhas do tempo. Em um feed, todos – estadunidenses ou não – são forçados a entrar em sintonia com a política climática de cada candidato porque o destino eleitoral dos EUA está inextricavelmente ligado ao futuro do planeta. Em outro feed, na Índia, 40 novas minas de carvão são oferecidas a qualquer comprador que as queira, enquanto ativistas de direitos civis de uma era diferente da organização ambiental definham na prisão e sua saúde se deteriora.
Estamos em um ponto de inflexão na política climática e ambiental, onde alguns governos preparam planos para a contenção do carbono em 30 e 40 anos, e outros olham para a próxima década com promessas que já têm cinco anos. Enquanto isso, pessoas que sempre sofreram lutam contra as consequências da falta de ação aqui e agora. Precisamos alinhar esses dois cronogramas e ampliar nossa definição de justiça climática, se quisermos alcançar qualquer medida de justiça para os mais vulneráveis. Mas, para fazer isso, devemos aceitar que as políticas climáticas não são mais tão preto no branco.
Enquanto passo por casas pitorescas em Oxford, com bandeiras da Rebelião da Extinção [também XR no Reino Unido, desde 2018, movimento ambientalista não violento – Nota da Redação] em suas janelas, me preocupo que muitos de nós, em altas vozes, ativistas confortáveis do mundo rico, estejamos tentando extrair esperança de promessas climáticas frágeis.
Podemos levar outros a prometer mais, mas sabemos que esses governos falharam em todas as metas anteriores, manipularam as medidas e mostraram pouco respeito pelo Estado de Direito. Parafraseando a famosa demanda aos governos da XR: que “verdade” é, então, que esperamos que digam?
O apelo do movimento climático ocidental para “confiar na ciência” é vital, mas me pergunto se a ênfase esmagadora sobre isso está tornando nossa solidariedade mais misantrópica e apolítica. Na maioria dos dias, parece mais fácil se refugiar em gráficos que detalham a vida útil do metano como gás de efeito estufa nos próximos dois séculos, do que abordar a confusão das relações humanas ou violações urgentes dos direitos humanos. Fico olhando para as frações na “identidade Kaya”, uma fórmula que expressa as emissões de carbono como resultado de quatro fatores: PIB per capita, intensidade energética, intensidade de carbono e população.
E me pergunto se há uma fração que eu possa acrescentar para calcular como virar o mundo de cabeça para baixo, para melhor, enquanto as botas pesadas de governos anticientíficos de extrema direita ressoam ao meu lado. Mas não existe uma fórmula fácil para isso.
Quando o XR foi marcado com a etiqueta de “extremismo”, ou quando Priti Patel [uma política britânica de origem indiana, conservadora – NdaR] descreveu seus ativistas como “criminosos” depois que bloquearam publicações negativas por meio de ação direta, houve rebuliço em seções da imprensa do Reino Unido. Para mim, houve aquele déjà vu dissonante novamente. Como alguém que testemunhou como os movimentos ambientalistas no sul global, sem dúvida o berço da ação direta não violenta, foram vilipendiados como grupos extremistas nos últimos anos, tive vontade de dizer: bem-vindo ao resto do mundo. A União Europeia pode ter anunciado metas ainda mais ambiciosas, mas em muitas partes do mundo para as quais exporta suas emissões, a pandemia está dando lugar a um último plano de recuperação baseado em combustíveis fósseis.
Enquanto isso, muitos de nós aplaudimos inquestionavelmente as promessas climáticas feitas por países como a China, em parte por causa da mudança em grande escala que prometem, em parte porque aparecem como desafios geopolíticos ao poder ocidental dos quais não gostamos, ao mesmo tempo que ignoramos o fato que as vozes locais dificilmente terão permissão para responsabilizá-los. Alguns de nós podem até mesmo nutrir suposições de que a falta de oposição pode tornar esses planos climáticos mais fáceis de implementar.
Então, há uma tendência dominante de reduzir toda a vida a carbono, ver todo o carbono como igual e esperar que, com bastante malabarismo, pressão dos investidores e tecnologia ainda não desenvolvida, acabemos nos anulando mutuamente. Para mim, essa abordagem elimina a diversidade, a complexidade, as experiências vividas e a mudança real do sistema. Black Lives Matter e Dalit Lives Matter [na Índia, a palavra dalit é usada para o que se chamava antes de “intocáveis” – NdaR] deveriam nos empurrar para resolver as rachaduras na fundação do capitalismo como o conhecemos: admitir para nós mesmos que vivemos em uma economia extrativista global construída sobre o abuso de poder ao longo das linhas de casta e classe, raça e religião, norte e sul.
Se é um novo mundo que queremos, devemos olhar além da diversidade simbólica e admitir que não haverá recuperação econômica ou negócio verde sem um plano para trabalhadores de cor de cuja opressão e deslocamento todos nós nos beneficiamos, que trate de questões históricas de posse da terra, acesso aos bens comuns e à justiça.
A crise climática pode não ser o que mantém a maioria de nós acordados à noite, mas explode tudo o que é imperfeito. Não existem respostas fáceis, mas muitas perguntas difíceis. Tudo está para ser reconstruído, e aí reside a necessidade de sermos o mais humanos, mais criativos e lançar a rede mais ampla. É necessário pensar a longo prazo, assim como é necessário deixar de lado o microfone e defender verdades inconvenientes que não se enquadram em na política existente. As emergências já estão aqui e se multiplicando, se pudermos tirar nossos óculos que separam as pessoas sem rosto em pequenas caixas de vítimas do clima e o resto de nós. Vamos nos envolver com essas áreas cinzentas e centralizar a justiça climática em torno dos direitos e da vida, em toda a sua bagunça? É hora de colocar a humanidade e a vida, não apenas o carbono, no centro da crise climática e de nossa solidariedade.
Fonte: The Guardian/ Tradução: José Carlos Ruy;