Financiamento em tempos de pandemia: impostos, dívida pública ou moeda
A pergunta-chave, fácil de ser feita e complexa para ser respondida, de maneira não leviana, é dirigida a economistas: por que não se emite moeda para pagar a renda básica universal?
Publicado 09/06/2020 13:48
Uma situação emergencial como nesta pandemia está sendo comparada com Economia de Guerra. Esta é um conjunto de práticas econômicas excepcionais, aplicadas durante certos períodos históricos de extremo isolamento econômico. Geralmente, mas nem sempre, estão ligadas à ocorrência de conflito armado. Tais práticas têm como objetivo manter as atividades econômicas indispensáveis ao país, a autossuficiência em termos de garantia da produção de alimentos e o abastecimento de itens básicos ao consumo.
Para a administração de uma Economia de Guerra, de fato, quando é atacado por inimigo externo, o Estado precisa exercer total controle da economia. Durante uma pandemia, não é o caso de atendimento das necessidades militares como a priorização da autossuficiência em termos de produtos básicos e material bélico produzido pela indústria militar, o aumento da produção da indústria pesada, como a siderurgia, a aplicação de medidas para redução de consumo de energia, o recurso à mão de obra feminina de baixo custo para preencher postos de trabalho antes ocupados por homens convocados pelas Forças Armadas, o fomento da agropecuária produtora de alimentos em lugar da agricultura de exportação, e a administração dos preços agrícolas.
Aplicam-se também medidas de redução do consumo privado, incluindo o racionamento de produtos importados, tanto para a indústria, quanto para as famílias. Dado o esgotamento da capacidade produtiva, adota-se uma política monetária extremamente austera, visando evitar processos de “inflação verdadeira”, quando a demanda monetizada vai além da possibilidade real de oferta de produtos e os preços disparam.
Dois debates públicos estão em pauta. Um diz respeito ao financiamento monetário do déficit público, provocado por gastos sociais necessários para pagamento de auxílio emergencial. Outro se refere a transformar esse auxílio em renda permanente, espécie de Renda Básica Universal (RBU), antevista como necessária, brevemente, quando o desemprego tecnológico por conta da automação e robotização resultantes da 4ª. Revolução Industrial se disseminar pela economia mundial.
A pergunta-chave, fácil de ser feita e complexa para ser respondida, de maneira não leviana, é dirigida a economistas: por que não se emite moeda para pagar a RBU?
Um leviano responderia de “bate-e-pronto”: porque provocaria inflação. Quem responde, precipitadamente desse jeito não tem consideração com o outro. Leviano é aquele capaz de expressar uma opinião sem ter a certeza de ter refletido profundamente a respeito e, portanto, sem ter domínio do assunto.
A “equação das trocas”, representativa da Teoria Quantitativa da Moeda (MV=PQ), sendo a velocidade de circulação da moeda V e a quantidade Q dadas, em um corte temporal, é transformada de uma identidade contábil – a moeda em circulação é igual à quantidade de transações nominais realizadas – em uma função causal como se a oferta de moeda M determinasse automaticamente um aumento de preços P. Ignora uma série de axiomas contrários e, em especial, abstrai as fases do ciclo econômico, ou seja, o grau de utilização da capacidade produtiva.
Ficou claro, para o público interessado no debate público, o Estado ter o poder de gasto ao emitir sua própria moeda, seja impressa, seja eletrônica. Se gastasse além da plena utilização da capacidade produtiva, provocaria pressão inflacionária, mas, se quisesse, antes desse estágio, não precisaria se endividar na própria moeda oficial. Se isso é verdade, por que o governo vende títulos de dívida pública sempre quando surge déficit público? Por que não emite moeda sem aumentar a dívida pública?
Alguns economistas respondem parte da razão ser o hábito ideológico conservador. Sob um padrão-ouro, os governos vendiam títulos para os déficits não colocarem a preciosa moeda-metálica nas mãos de pessoas capazes de a levar para gasto em outros países.
Os endividamentos públicos substituíram a moeda conversível em ouro por títulos do governo não conversíveis. Os Estados teriam passado a vender títulos para reduzir a pressão sobre suas reservas de ouro. O padrão-ouro foi o primeiro sistema monetário internacional e vigorou de 1870 até 1914 com o início da Primeira Guerra Mundial. Em 1944, nos termos dos Acordos de Bretton Woods, o padrão libra-ouro (1870 – 1914) deu lugar ao padrão dólar-ouro. Vigorou até 15 de agosto de 1971. A partir de então, os países adotaram um regime de câmbio flexível com cotações entre moedas sem lastro.
Na verdade, o uso do ouro como dinheiro data de milhares de anos. As primeiras moedas de ouro conhecidas foram cunhadas na cidade-estado grega de Lídia, na Ásia Menor, por volta de 610 a.C. As primeiras moedas cunhadas na China datam de 600 a.C. Durante a Idade Média, a moeda de ouro Soldo do Império Bizantino, circulou pela Europa e Mediterrâneo.
Pagar soldados, isto é, mercenários estrangeiros, está na origem do mercado de títulos públicos. Seus primórdios, nos séculos XIV e XV, está na sua capacidade de financiar guerras. As cidades-estados medievais guerreavam entre si. Conquistar territórios era o meio de aumentar a riqueza rural.
Em vez de pagar impostos sobre propriedade, para cobrir os déficits provocados pela economia de guerra, os cidadãos ricos optaram por emprestar dinheiro para o governo, dominado por eles mesmos! Em compensação desses empréstimos, em estado-de-guerra, eles recebiam juros. Para a operação não ser caracterizada como usura, condenada pela Igreja católica, o pagamento de juro foi reconciliado com a lei canônica como “compensação para os custos putativos do investimento compulsório”.
Além dos juros, compensou-se os cidadãos ricos também com liquidez: tais títulos de dívida pública podiam ser vendidos a outros cidadãos, caso o investidor necessitasse de dinheiro de imediato. Antes da criação desse mercado secundário, a maior parte das subscrições dos títulos eram realizadas por uns poucos indivíduos ricos.
A razão pela qual o sistema funcionou tão bem foi o fato de os ricos também controlarem o governo local e, desse modo, as finanças públicas. Essa estrutura de poder oligárquico deu sólido fundamento político ao mercado de títulos públicos tipo “Zé com Zé”. Quem os emitia e vendia era também membro da autarquia compradora.
Autarquia significa poder absoluto. É o tipo de governo quando um grupo de pessoas concentram o poder sobre uma Nação. Dessa forma, nasceu a exigência da elite em zelar para seus juros serem sempre pagos, seja por impostos, seja por emissão monetária.
Na Era Moderna, o combate à miséria, à ignorância, à doença e mesmo à insegurança interna e externa passou a justificar a ampliação da dívida pública. Mas a tomada governamental de empréstimos contínuos, em rolagem da dívida pública, é voluntária. Títulos soberanos são uma forma de enriquecer recebendo juros do governo.
A taxa de juros, paga nos títulos do governo, é uma opção política de tecnocratas do Banco Central, de quanto pagar aos detentores dessa riqueza financeira lastreada por títulos de dívida pública. A autarquia em uma economia nacional seria seu Estado obter total independência financeira ao ser capaz de sobreviver apenas com as próprias atividades internas e suas emissões monetárias, sem precisar de nenhum apoio externo.
No entanto, as cadeias produtivas foram globalizadas. Hoje, um limite à emissão monetária é colocado também pela perda de confiança na moeda fiduciária nacional. A fuga para a divisa estrangeira com reserva de valor leva também sua transformação em unidade-de-conta. Daí, com sua cotação em disparada, gera uma hiperinflação pela necessidade de sua conversão na moeda nacional para atuar como meio de pagamento.
Essas ideias, contidas no meu novo livro Mercados e Planejadores Imperfeitos, propiciam reflexões transdisciplinares. Talvez a central diga a respeito da relação do poder de emissão monetária com o pacto republicano. República descreve uma forma de governo onde o Chefe de Estado é eleito pelos cidadãos para exercer o Poder Executivo de maneira controlada e durante certo tempo, com alternância democrática em eleições periódicas. Essa função de presidente da República deve ser exercida durante período previamente delimitado. Tem de ser submetido ao escrutínio eleitoral, após quatro anos, para exercer um novo mandato.
Aí mora o perigo político. Assim como existem os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, para controles mútuos, este último não pode recorrer sem limite à emissão monetária, controlada por suposto Quarto Poder não eleito: o dos tecnocratas nomeados para exercer o poder de Autoridade Monetária. Esse poder econômico-financeiro, caso ilimitado, distorceria a capacidade de atuação do mandatário em benefício político próprio. Visaria apenas a cativar seus eleitores para sua reeleição.
Quem recebeu a incumbência ou a tarefa de representar os habitantes do país, agindo em nome de todos, não pode deter o poder de emissão monetária em suas mãos sem controle social pelos demais representantes políticos. Em última análise, a subordinação às leis e à Constituição serve para regrar a vida política e econômica do país, destacadamente, no caso, da regulação da riqueza mais líquida: o dinheiro. Imagine se o presidente populista de direita puder comprar apoio à vontade, não só do Centrão, mas também das camadas sociais mais pobres dependentes do auxílio emergencial!
Baixe gratuitamente o livro Mercados e Planejadores Imperfeitos, de Fernando Nogueira da Costa.
Pelo “andor da carruagem”, é mais fácil esconder o Paulo Guedes “parasita ypiranga” ou deixá-lo se esconder, do que mostrar os absurdos dos rumos da economia brasileira neoliberalizante e discuti-la, visto os desmandos da destruição nacional rumo ao precipício, contra a população que perdeu percentual elevado da previdência, direitos trabalhistas, direitos de sindicalização, oportunidades trabalhistas (desemprego), destruição da educação, saúde, habitação e outras tantas perdas econômicas e sociais.